Opinião

Medida cautelar do caso "Ucrânia x Rússia" e importância ao Direito Interacional

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  • é procuradora da República no estado de Mato Grosso do Sul especialista em Direito Internacional e Econômico pela Universidade Estadual de Londrina representante do Ministério Público Federal na Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas (Cicad) da Organização dos Estados Americanos (OEA) e na Comissão de Narcóticos da Organização das Nações Unidas (ONU).

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31 de março de 2022, 17h07

No último dia 16 de março, foi publicada uma importante decisão no caso "Ucrânia x Federação Russa", apresentado pelo governo ucraniano à Corte Internacional de Justiça, com fundamento na Convenção de Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio das Nações Unidas, de 1948 (Convenção contra o Genocídio) [1].

Em seu requerimento inicial, apresentado à Corte Internacional de Justiça no dia 25 de fevereiro, a Ucrânia refutou os fundamentos invocados pela Rússia para legitimar a invasão iniciada no dia anterior, denominada de "operação militar especial" pelo presidente Vladimir Putin.

Nesse sentido, afirmou que a Rússia usou indevidamente o conceito de genocídio para justificar um comportamento ilegal e agressões indevidas, desvirtuando o objeto e os fins da Convenção contra o Genocídio. Sustentou que está sofrendo um ataque militar catastrófico e não provocado pelo Estado requerente, alertando ainda que, enquanto durarem as agressões russas, os direitos humanos do povo ucraniano serão gravemente violados.

Ademais, acusou a Rússia de estar planejando atos de genocídio e estar intencionalmente matando e causando lesões graves aos membros do grupo nacional ucraniano, condutas tipificadas como crime de genocídio pelo Artigo II da Convenção contra o Genocídio.

Diante dessas circunstâncias — descritas na petição como "sem precedentes" —, e considerando ainda os graves danos causados ao seu território e à sua população (civil e militar), a Ucrânia requereu à Corte a emissão de medida cautelar determinando suspensão imediata da operação militar em curso, e obrigando a Rússia a impedir operações promovidas por unidades militares ou armadas irregulares, organizações e pessoas sob a sua direção ou com o seu apoio.

Na decisão do dia 16 de março, por 13 votos a 2, a Corte Internacional de Justiça deferiu os pedidos da Ucrânia. Na mesma ocasião, por unanimidade, determinou que os litigantes devem abster-se de ações que possam agravar ou estender a controvérsia perante o tribunal ou dificultar sua resolução [2].

A medida cautelar em questão pode ser vista como mais uma forma de reação de parcela da comunidade internacional contra a guerra e as agressões indevidas à Ucrânia. Logo após a deflagração dos ataques, iniciaram-se intensas discussões sobre as sanções que deveriam ser adotadas por Estados e Organizações Internacionais em desfavor da Rússia.

Certamente, as medidas mais divulgadas pela mídia mundial e debatidas e por especialistas de todas as áreas são aquelas referentes às sanções econômicas e financeiras, adotadas contra o Estado, bancos, empresas e indivíduos russos.

Ocorre que, a despeito da inquestionável relevância de tais sanções, decisões como a Corte Internacional de Justiça são de alta relevância, não apenas em virtude de seus efeitos sobre o conflito em andamento, mas também para a reafirmação dos institutos essenciais do Direito Internacional, a preservação dos marcos civilizatórios conquistados até o momento, e o fortalecimento da confiança da comunidade internacional na atuação dos tribunais internacionais.

A conformação atual do Direito Internacional decorre de séculos de litígios concretos e discussões dogmáticas, e seu desenvolvimento ocorreu de forma pendular. Durante esse longo período de evolução, diversas controvérsias internacionais moldaram os princípios e institutos desse ramo do direito (inclusive duas guerras mundiais), o que culminou na consolidação dos chamados mecanismos pacíficos de solução de controvérsias.

Sobre o tema, destaca-se o Artigo 33 da Carta das Nações Unidas:

"As partes em uma controvérsia, que possa vir a constituir uma ameaça à paz e à segurança internacionais, procurarão, antes de tudo, chegar a uma solução por negociação, inquérito, mediação, conciliação, arbitragem, solução judicial, recurso a entidades ou acordos regionais, ou a qualquer outro meio pacífico à sua escolha" [3].

Devido à importância desse mecanismos para a manutenção da paz mundial (que acabara de ser profundamente abalada pela 2ª Guerra Mundial), a Carta também criou a Corte Internacional de Justiça, que substituiu a Corte Permanente de Justiça Internacional (criada após a 1ª Guerra Mundial), e tornou-se o principal órgão judicial da Organização das Nações Unidas, dotada de competência consultiva e contenciosa.

No exercício da competência contenciosa, são julgados apenas litígios entre Estados, e as decisões possuem efeitos vinculantes entre as partes. Devido às particularidades que caracterizam a jurisdição internacional, não há mecanismos próprios para a execução dessas decisões pela própria Corte Internacional de Justiça, e é justamente em razão dessa ausência de coercitividade que muito se questiona quanto à eficácia de sua atuação.

É importante ressaltar que, nas hipóteses de descumprimento da sentença por uma das partes em litígio, a parte contrária terá o direito de recorrer ao Conselho de Segurança, que poderá fazer recomendações ou decidir sobre medidas a serem tomadas para o cumprimento da decisão (Artigo 94.2 da Carta das Nações Unidas). Entretanto, a efetivação de medidas executórias pelo Conselho de Segurança é igualmente limitada, em virtude do poder de veto concedido aos cinco membros permanentes (entre os quais está a Rússia).

Considerando as circunstâncias narradas, não há dúvidas de que a ausência de coercitividade configura um obstáculo substancial à efetividade das decisões da Corte Internacional de Justiça.

Não obstante, é necessário considerar também que a efetividade do direito internacional não pode ser analisada com a mesma lógica e os mesmos parâmetros aplicáveis ao direito interno. Isso porque, no plano internacional, o estudo das estruturas e ferramentas jurídicas deve partir da premissa da interdependência entre os Estados.

Essa característica da interdependência entre os Estados é muito evidente nos casos de cooperação jurídica internacional em matéria penal.Ainda que, nessas situações, os interesses imediatos e aspectos práticos apresentem particularidades (notadamente porque envolvem a cooperação entre órgãos internos dos Estados envolvidos), o fundamento é o mesmo das demandas judiciais internacionais, qual seja, a insuficiência da atuação isolada e fragmentada dos Estados para a tutela de seus interesses.

Como já mencionado, a conformação atual do Direito Internacional é fruto de séculos de conflitos e discussões dogmáticas, que se desenvolveram de forma pendular. Além disso, seus institutos e instituições seguem em transformação, em virtude de circunstâncias fáticas (como a guerra em curso) e jurídicas (como a decisão da Corte Internacional de Justiça analisada neste artigo).

Por esses motivos, em que pese a ausência de coercitividade das decisões da Corte Internacional de Justiça, a medida cautelar proferida no Caso "Ucrânia vs Federação Russa" possui particular relevância para o conflito em curso, e para a evolução do Direito Internacional.

Nesse contexto, torna-se imperioso compreender e acompanhar a atuação da Corte Internacional de Justiça, a fim de nortear a tomada de decisões no plano interno, notadamente porque seus entendimentos possuem o condão de afetar os Estados em relevantes questões de cunho social e econômico.

Ademais, na resolução das controvérsias judiciais, a Corte Internacional de Justiça pode aplicar suas próprias decisões como meio auxiliar para a determinação das regras de direito (artigo 38.1, alínea d, do Estatuto da Corte), tornando ainda mais relevante o conhecimento dessas decisões pelos Estados submetidos à jurisdição da Corte.

Por fim, é importante registrar que o Brasil, na condição de Estado membro da Organização das Nações Unidas, deve zelar pelo cumprimento das obrigações assumidas perante todos seus órgãos.

Portanto, é essencial que os efeitos práticos e desdobramentos deste e de outros casos da Corte Internacional de Justiça sejam devidamente acompanhados por agentes políticos e jurídicos, de modo que as decisões e posicionamentos nacionais respeitem os compromissos externos do Estado brasileiro, assegurando, assim, a adequada integração brasileira ao cenário global, e evitando casos de responsabilização internacional.


[1] https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/182/182-20220227-PRE-01-00-EN.pdf

[2] https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/182/182-20220316-SUM-01-00-EN.pdf

[3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm

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  • é procuradora da República no estado de Mato Grosso do Sul, especialista em Direito Internacional e Econômico pela Universidade Estadual de Londrina, representante do Ministério Público Federal na Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas (Cicad) da Organização dos Estados Americanos (OEA) e na Comissão de Narcóticos da Organização das Nações Unidas (ONU).

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