Opinião

IRPF: não incidência sobre a cessão de precatório com deságio

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  • é discente do Mestrado Profissional em Direito Regulação e Políticas Públicas pela Universidade de Brasília especialista em Direito Estado e Constituição pelo Instituto Faculdades Integradas da União Educacional do Planalto Central analista Judiciário no Superior Tribunal de Justiça assessora de Ministro do Superior Tribunal de Justiça.

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  • é mestrando pelo Programa de Mestrado Profissional em Direito Regulação e Políticas Públicas da Universidade de Brasília (UnB) especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Fundação Ensino Superior de Rio Verde (Fesurv) e é analista judiciário do Superior Tribunal de Justiça (assessor de ministro).

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2 de novembro de 2022, 15h17

A execução (lato senso) de obrigação de pagar quantia certa contra a Fazenda Pública possui regras próprias e pode basear-se em título executivo judicial ou extrajudicial. Em se tratando de título judicial, o procedimento é previsto nos artigos 534 e 535 do C (cumprimento de sentença); na hipótese de título extrajudicial, aplica-se o disposto no artigo 910 do C. Em qualquer dos casos, a Fazenda Pública não é chamada ao feito para pagar, e sim para impugnar a cobrança. Não havendo defesa (impugnação ou embargos) ou sendo ela rejeitada, expedir-se-á ordem de pagamento (precatório ou requisição de pequeno valor) em favor do exequente, na forma do artigo 100 da CF/88.

O precatório é uma ordem de pagamento expedida pelo juízo da execução ao presidente do respectivo tribunal. O juízo da execução pode ser um membro de tribunal (exempli gratia ministro presidente da Segunda Seção do STJ), nas execuções de procedimentos iniciados no próprio tribunal (exemplo: execução nos autos de ação rescisória). O precatório veicula um crédito líquido, certo e exigível, proveniente de uma decisão judicial transitada em julgado ou de um título executivo extrajudicial em face da Fazenda Pública devedora, que é oficiada acerca da requisição de pagamento.

Contudo, o pagamento do precatório não ocorre de imediato. O atual §5º do artigo 100 da Constituição estabelece que o valor correspondente deve ser incluído no orçamento da entidade de direito pública devedora, até 2 de abril, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte. Antes da vigência da EC 114/2021, o prazo para inclusão era 1º de julho. Como se percebe, a nova regra é mais benéfica à Fazenda Pública devedora, especialmente porque o crédito sujeita-se apenas à incidência de correção monetária, não havendo a incidência de outros encargos (exempli gratia juros de mora) se o pagamento ocorre no prazo constitucional.

Nesse cenário, surge o interesse de o credor ceder o seu crédito. Ressalte-se que a própria Constituição faculta a cessão do crédito, independentemente da concordância da Fazenda Pública devedora (artigo 100, §13). Contudo, é evidente que o cessionário não vai pagar o valor correspondente ao precatório, cujo pagamento ocorrerá no futuro, ainda que possa utilizá-lo para outras finalidades (exempli gratia quitação de débitos parcelados ou débitos inscritos em dívida ativa do ente federativo devedor — artigo 100, §11, I, da CF/88). Assim, é comum que a cessão ocorra mediante pagamento de valor correspondente a apenas uma parte do montante do precatório (exempli gratia 70%). A título de exemplo, caso o valor de face do precatório seja um milhão de reais e seja cedido com pagamento de valor correspondente a 70% de seu montante, o cedente receberá setecentos mil reais na operação. Esse tipo de operação é o que se denomina cessão com deságio. A indagação que surge é a seguinte: incide imposto de renda, a título de ganho de capital, nessa operação?

Em procedimento de consulta formulado pelos contribuintes, a Receita Federal entende que há incidência do imposto. Na Solução de Consulta Disit/SRRF03 nº 3021 de 2019, a RFB afirmou que "a cessão de direitos representados por créditos líquidos e certos contra a Fazenda Pública (precatório) está sujeita à apuração de ganho de capital, sobre o qual incidirá imposto de renda na forma da legislação pertinente à matéria".

Esse entendimento da Receita leva em consideração que, na primeira operação, o valor de aquisição do precatório é zero. Assim, quando recebe o valor referente à cessão, há um ganho de capital correspondente a essa operação, ou seja, entende-se que há uma diferença positiva entre o valor da alienação (mediante cessão) e o custo de aquisição.

Segundo a Receita, a incidência do imposto de renda sobre o ganho de capital, consubstanciado na diferença positiva entre o valor da alienação e o custo da aquisição do precatório, tem como fundamento os artigos 1º a 3º e 16 da Lei 7.713/88, c/c os artigos 2º e 18 da Lei 8.134/90 e artigos 12 e 52 da Lei 8.383/91 e artigo 21 da Lei 8.981/95.

Nos termos do artigo 21 da Lei 8.981/95, o ganho de capital percebido por pessoa física em decorrência da alienação de bens e direitos de qualquer natureza sujeita-se à incidência do imposto sobre a renda, conforme as alíquotas previstas nos respectivos incisos. O ganho de capital tributável consubstancia-se na diferença positiva entre o valor do custo de aquisição e o montante percebido na alienação, no que concerne a bens ou direitos de qualquer natureza (artigo 3º, §2º, da Lei 7.713/88). Por sua vez, o artigo 16 da Lei 7.713/88 estabelece parâmetros para fins de fixação do valor do custo de aquisição. Em se tratando de bem ou direito cujo valor não possa ser determinado de acordo com tais parâmetros, o custo de aquisição será considerado zero (§4º do artigo 16).

A Receita considera que o titular originário do precatório não teve nenhum custo no momento da aquisição do precatório. Por essa razão, no momento da cessão do precatório, determina seja considerado zero o valor de aquisição, a fim de que o imposto incida a título de ganho de capital, sobre o valor da alienação.

Registre-se que são hipóteses distintas de incidência do imposto de renda, a incidência sobre a cessão do precatório, a título de ganho de capital, e sobre o valor correspondente ao próprio precatório, sendo que esta última ocorre mediante retenção na fonte, no momento do efetivo pagamento do título, conforme será explicitado mais adiante.

O ganho de capital indicado pela Receita, para fins de incidência do imposto de renda, decorrente da cessão do precatório efetuado pelo titular originário, não encontra amparo na jurisprudência do STJ. Isso porque, sendo "sabido que essas operações se dão sempre com deságio", não há "o que ser tributado em relação ao preço recebido pela cessão do crédito" (AgInt no REsp 1.768.681/RJ, 2T, 2018). No exemplo acima, caso considerada a diferença entre o valor de face do precatório (um milhão de reais) e o montante recebido pelo cedente (setecentos mil reais, que equivale a 70% do valor de face), fica evidenciado que não houve nenhum ganho de capital.

A jurisprudência esclarece que a incidência do imposto de renda, na hipótese, ocorrerá mediante retenção na fonte por ocasião do pagamento do precatório (REsp 1.859.259/RJ, 2T, 2020). A obrigação tributária relativa ao imposto de renda nasce em momento anterior ao efetivo pagamento do precatório, tendo como sujeito ivo o "titular do direito que foi reconhecido em juízo (beneficiário), não podendo ser modificada pela cessão do crédito, por força do artigo 123, do CTN" (REsp 1.505.010/DF, 2T, 2015).

Não obstante, o artigo 46 da Lei 8.541/92 elege como critério temporal de incidência do imposto de renda o efetivo pagamento do precatório, ou seja, o imposto de renda "será retido na fonte pela pessoa física ou jurídica obrigada ao pagamento, no momento em que, por qualquer forma, o rendimento se torne disponível para o beneficiário".

Em informativo publicado recentemente — Informativo 751 —, o STJ reiterou que "não incide imposto de renda (IR) sobre o preço recebido em virtude de cessão com deságio de precatório" (REsp, 1.785.762/RJ, 2T, 2022). No caso, o STJ reformou acórdão de Tribunal de segundo grau, sendo que este adotou a tese defendida pela Receita, especialmente ao afirmar que: "Apesar do deságio ocorrido na cessão onerosa do crédito do precatório, o cedente não teve nenhum dispêndio monetário anterior para auferir aquela riqueza e, considerando que os créditos do precatório ainda não integravam seu patrimônio, é de se concluir que o custo de aquisição é igual a zero, nos termos do §4° do artigo 16 da Lei nº 7.713/88. A diferença entre o custo de aquisição (ZERO) e o valor efetivamente recebido constitui ganho de capital a ser apurado e tributado à alíquota de 15%, nos termos da legislação aplicável".

Como supra afirmado, esse entendimento contraria a orientação do STJ, o qual "possui entendimento consolidado no sentido de que a alienação de precatório com deságio não implica ganho de capital no preço recebido, motivo pelo qual não há que se falar em incidência da tributação pelo Imposto de Renda por ocasião do recebimento do preço pela cessão do referido crédito" (REsp, 1.785.762/RJ).

Não obstante a orientação do STJ, cabe registrar que a tese defendida pela Receita tem sido prestigiada no âmbito dos Tribunais Regionais Federais (TRF's). Em razão da ausência de recurso dirigido ao STJ ou por falha nos requisitos de issibilidade, algumas decisões transitam em julgado reconhecendo a legitimidade da tributação. A título de exemplo, é oportuno citar o acórdão proferido pelo TRF-2 nos autos do processo nº 0003722-19.2013.4.02.5101. Na oportunidade, quando do julgamento da apelação, ficou decidido, em síntese, que: "Com a cessão dos créditos dos precatórios, os cedentes efetivamente auferiram ganho de capital, na medida em que tiveram acréscimo patrimonial sem qualquer custo, ou seja, aumentaram seus patrimônios sem despenderem qualquer valor, já que não houve a disponibilização dos valores atinentes aos precatórios. A cessão do crédito previsto no precatório judicial está sujeita à tributação pelo imposto de renda não por se tratar de rendimento, e sim por haver ganho de capital pelo cedente, a teor do disposto no artigo 3º, §3º, da Lei 7.713/88, submetendo-se, pois, à tributação do Imposto de Renda". O contribuinte apresentou recurso especial, que foi initido na origem. Interposto agravo nos autos (AREsp 1.352.504/RJ), não foi conhecido (decisão monocrática) em virtude da ausência de impugnação específica dos fundamentos da decisão agravada. A decisão foi confirmada em sede de agravo interno e os embargos de declaração sucessivos foram rejeitados. Interposto recurso extraordinário em face do acórdão proferido pelo STJ, teve seguimento negado. Cabe ressaltar que, no caso, também houve recurso extraordinário interposto em face do acórdão do TRF-2, o qual foi initido. Interposto agravo nos autos (ARE 1.242.511/RJ), o ministro Presidente do STF negou seguimento, "sob os fundamentos de ausência de ofensa constitucional direta e de incidência da Súmula 279 do Supremo Tribunal Federal", sendo que tal decisão foi confirmada em sede de agravo interno (ARE 1.242.511 AgR, Tribunal Pleno, 2020), operando-se o trânsito em julgado.

É oportuno mencionar que os "os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente", conforme determina o caput do art. 926 do C. Nessa mesma linha, estabelece o artigo 927, III e IV, do C/2015 que os juízes e tribunais devem observar "os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos"; e os "os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional". Nesse contexto, seria interessante que o STJ utilizasse tais mecanismos, a fim de conformar o entendimento das instâncias ordinárias, evitando-se, dessa forma, que jurisdicionados em situações similares estejam sujeitos a decisões diversas em relação a uma mesma questão.

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Referência
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: EXECUÇÃO / Fredie Didier Jr., Leonardo Carneiro da Cunha, Paula Sarno Braga, Rafael Alexandria de Oliveira — 7ª ed. rev, ampl. e atual. Salvador, 2017.

Autores

  • é discente do Mestrado Profissional em Direito, Regulação e Políticas Públicas pela Universidade de Brasília, especialista em Direito, Estado e Constituição pelo Instituto Faculdades Integradas da União Educacional do Planalto Central, analista Judiciário no Superior Tribunal de Justiça, assessora de Ministro do Superior Tribunal de Justiça.

  • é mestrando pelo Programa de Mestrado Profissional em Direito, Regulação e Políticas Públicas da UnB (Universidade de Brasília). Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Fundação Ensino Superior de Rio Verde-Fesurv/Univ. de Rio Verde (GO). Graduado em Direito pela UnB. Atualmente é analista judiciário do Superior Tribunal de Justiça (assessor de ministro).

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