Responsabilidade das novas prestadoras do serviço público de saneamento básico
7 de novembro de 2022, 18h08
A ConJur publicou um artigo elaborado por Bernardo Strobel Guimarães, Caio Augusto Nazário de Souza e Flávia Smolka Santana muito interessante sobre o enquadramento jurídico das novas concessionárias atuantes no setor de saneamento.
Em suma, os autores afirmam a inexistência de sucessão entre as empresas (a antiga e a nova prestadora do serviço público) e justificam seu posicionamento argumentando que, por se tratar de arrematação ocorrida em certame de ampla concorrência, os novos contratos importariam em aquisição originária, razão pela qual não há que se falar judicialmente em continuidade de uma relação jurídica previamente estabelecida com os consumidores, já que ela se findou e deu espaço para o surgimento de uma nova relação entre as novas concessionárias e os usuários.
De fato, mostra-se muito difícil sustentar a ocorrência de sucessão empresarial diante do entendimento já pacificado pelo STJ em sede de recurso repetitivo [1]. No entanto, data máxima vênia, a presente questão demanda uma análise mais profunda para dirimir a complexidade do assunto, motivo pelo qual os argumentos utilizados pelos autores estão apenas parcialmente corretos.
Como se pode observar, cinge-se a controvérsia sobre a possibilidade ou não de cumprimento de obrigações pelas novas concessionárias de condenações judiciais fixadas exclusivamente em face do antigo prestador do serviço público ao consumidor litigioso.
Ou seja, a grande questão a ser analisada é: as novas concessionárias são obrigadas a cumprir condenações judiciais proferidas em momento posterior à estabilização da demanda na qual sequer integraram o polo ivo?
À primeira vista, de acordo com os autores supramencionados, a resposta seria negativa, pois entender de modo contrário colocaria em risco o equilíbrio econômico-financeiro da concessão assumida, o que impactaria negativamente nos investimentos necessários à melhoria da operação e, consequentemente, oneraria o valor da respectiva tarifa ada pelo consumidor, prejudicando a coletividade ao prestigiar o consumidor individualmente.
Aliado ao argumento de impossibilidade de cumprimento pelas novas concessionárias há ainda o argumento não mencionado pelos autores, mas que fica subentendido, de que, em regra, a coisa julgada produz efeitos tão somente entre as partes envolvidas no litígio. Logo, como as novas concessionárias não estavam presentes na demanda, antes de sua estabilização, elas não participaram do contraditório, motivo pelo qual não há que se impor o cumprimento de uma condenação direcionada à pessoa jurídica distinta.
De fato, assiste razão ao argumento de inexistência de sucessão empresarial, em virtude da aquisição originária pelo leilão. Contudo, este argumento não é capaz de afastar a responsabilidade das novas concessionárias pelo cumprimento das obrigações de fazer e não fazer. Ademais, são poucas decisões proferidas pelos magistrados impondo às novas concessionárias o cumprimento das condenações havidas em face da antiga prestadora do serviço com base nesse argumento.
O que se observa na prática forense [2] é a predominância de decisões estendendo os efeitos da coisa julgada [3] às novas concessionárias. Este posicionamento do Tribunal se mostra acertado e alinhado com as normativas consumeristas, processualistas e inexiste ofensa aos princípios do Direito istrativo e Regulatório. Explica-se.
Em linhas gerais, as condenações judiciais podem versar sobre obrigações positivas ou negativas (dar coisa certa/incerta, fazer ou não fazer), o que foi genericamente abordado pelos autores como "compromissos assumidos".
Usualmente, na via judicial, argumenta-se a impossibilidade de cumprimento de toda e qualquer condenação, com base nos Temas 467 e 468 (Supervia e Flumitrens), ambos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça na sistemática dos recursos repetitivos, que corroboram a tese de inexistência de sucessão empresarial. Todavia, importante distinção merece ser pontuada.
Os recursos paradigma dos Temas 467 e 468 versavam sobre a possibilidade de cumprimento pela nova concessionária dos ilícitos cometidos pela antiga concessionária. Isto é, há sucessão empresarial capaz de justificar o cumprimento de condenação à restituição por ilícito/abuso de direito praticado pela antiga prestadora do serviço público?
No entender do e.STJ, a resposta é pela negativa, entretanto, verifica-se que essa posição diz respeito tão somente às condenações que versavam sobre obrigações pecuniárias (uma das espécies de obrigações de dar coisa certa). Observa-se, assim, que não foram objeto de análise as obrigações de fazer e não fazer inerentes à própria concessão assumida pelo novo prestador de serviço. Conclui-se, portanto, que os temas 467 e 468 devem ser lidos à luz, apenas, das obrigações de dar coisa certa, sendo necessário fazer a distinção para os casos em que são veiculadas obrigações de fazer e não fazer.
Assim, surge o novo questionamento: e para as hipóteses de obrigações (de fazer e não fazer) fixadas em face da antiga concessionária que não são mais íveis de cumprimento, em virtude da transferência da concessão? Nesses casos a nova prestadora do serviço pode ser intimada para cumprimento?
Imagine, por exemplo, que um consumidor ingresse na justiça exclusivamente em face da antiga prestadora do serviço público e o juízo determine, em sentença transitada em julgado, a instalação de novo hidrômetro no imóvel.
Não é possível exigir que o usuário ajuíze novamente demanda com pedido idêntico agora em face da nova concessionária, devendo esta cumprir a decisão ante a impossibilidade da antiga prestadora fazê-lo, já que não mais possui ingerência sobre a gestão comercial do serviço.
Ainda que não se possa falar em sucessão empresarial, há que se reconhecer a necessidade de que as novas concessionárias respeitarem as decisões judiciais já transitadas em julgado que veicularam obrigações de fazer. A uma porque essa obrigações são inerentes à própria concessão assumida. A duas porque, ainda que não integrantes da lide originária, essas novas concessionárias são terceiros juridicamente interessados e, como tal, sujeitam-se aos efeitos reflexo da coisa julgada.
Assim, a pacificação social trazida pela decisão judicial que fixou a obrigação deve alcançar não somente as partes do processo, como também a todas as outras relações e situações jurídicas conexas ao objeto da sentença.
Nesse sentido, é perfeitamente justificável a intimação da nova concessionária para dar cumprimento às obrigações de fazer e não fazer, inerentes à concessão assumida. Afinal, seria contrário ao fim precípuo da jurisdição de pacificação social itir o desrespeito a uma decisão transitada em julgado e que vinha, regularmente, produzindo seus efeitos jurídicos em face da concessão, apenas em função da troca do prestador.
Há que se entender que a relação jurídica estabelecida pelo usuário é com o próprio serviço público e não com o prestador. De fato, é indiferente para o usuário quem está entregando o serviço, bastando que haja a prestação adequada.
Além disso, sendo possível o cumprimento dessas obrigações não há que se falar em conversão em perdas e danos e extinção do processo, já que eventual condenação pecuniária (restituição) já transitada em julgado deve prosseguir regularmente em face da antiga concessionária (Tema 467 e 468/STJ), observado o marco temporal de sua responsabilidade após a perda da concessão, sob pena de se fomentar o ressurgimento de infindáveis demandas com objetos idênticos, prejudicando, em última análise exclusivamente os consumidores que, por vezes, esperam anos aguardando o deslinde processual, em virtude da morosidade do Judiciário.
É justamente nesse sentido que se evidencia o posicionamento majoritário dos magistrados fluminenses que, respaldados pela orientação de LIEBMAN, em Eficácia e Autoridade da Sentença (Forense, RJ, 3ª Ed., p 89/93), elaboraram, inclusive, dois enunciados persuasivos (Aviso Conjunto TJ/Cedes nº 12/2022) [4].
Portanto, ainda que caiba "ao concessionário antigo responder por todos os compromissos por ele assumidos", observa-se que o entendimento de inexistência de sucessão empresarial não é capaz de afastar a responsabilidade pelo cumprimento das obrigações de fazer e não fazer pelas novas concessionárias, ainda que fixadas em processo movido exclusivamente em face da antiga concessionária.
[1] Tema 467, STJ: A concessão da exploração do serviço de transporte ferroviário de ageiros em favor da Supervia, mediante prévio procedimento licitatório, não implicou sucessão empresarial entre esta e a Flumitres.
[2] "Em decorrência, não havendo a sucessão de empresas, será necessário afastar a responsabilidade da nova concessionária referente a obrigação de pagar (ou restituir valores), bem como qualquer condenação por ato ilícito.
Não obstante, quanto a obrigação de fazer ou não fazer, concernente ao cálculo de tarifa (fato jurídico), emergirá o efeito natural da sentença, tendo em vista que a situação fática já foi pacificada no mundo jurídico, com efeito expansivo em face de todos, em homenagem à segurança jurídica.
Inequívoco, pois, que a nova concessionária estará vinculada aos efeitos reflexos da coisa julgada formada nesta demanda quanto às obrigações de fazer que se vencerem após a concessão, diante dos efeitos jurídico-materiais propagados (as alterações produzidas pela sentença, considerada um fato jurídico), que não se caracteriza fato novo ou estranho aos serviços prestados, mas a mera continuidade de uma situação inerente aos serviços, já sedimentada na ordem jurídica". (Trecho extraído da sentença proferida no processo 0054345-30.2019.8.19.0038).
[3] AGRAVO DE INSTRUMENTO. OBRIGAÇÃO DE FAZER. ALEGAÇÃO DE ILEGALIDADE DA COBRANÇA PELO FORNECIMENTO DE ÁGUA POR MEIO DA MULTIPLICAÇÃO DA TARIFA MÍNIMA PELO NÚMERO DE ECONOMIAS DO IMÓVEL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA DEFERIDA EM RELAÇÃO À CEDAE. NOVOS CONTRATOS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO DE SANEAMENTO PÚBLICO FIRMADOS EM RAZÃO DO LEILÃO OCORRIDO EM 2021. SERVIÇOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA E ESGOTAMENTO SANITÁRIO QUE ARAM A SER PRESTADOS PELA CONCESSIONÁRIA ÁGUAS DO RIO, COM EXCEÇÃO DA CAPTAÇÃO E TRATAMENTO DE ÁGUA. OBRIGAÇÃO QUE SOMENTE PODE SER CUMPRIDA PELA NOVA CONCESSIONÁRIA. EXTENSÃO DOS EFEITOS DA TUTELA DEFERIDA. REFORMA DA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA. Tutela antecipada deferida em face da Cedae. No curso da lide, a sociedade ÁGUAS DO RIO assumiu os serviços que eram prestados pela Cedae de distribuição de água e esgotamento sanitário na região do imóvel objeto deste litígio por força do contrato de concessão de serviço público. Firmado o contrato de concessão, a AEGEA se tornou a única responsável pela prestação dos serviços na região do imóvel do agravante, sendo, portanto, a única que pode cortar ou não o fornecimento do imóvel ou modificar a forma de cobrança. Extensão dos efeitos da tutela à concessionária ÁGUAS DO RIO. Reforma da decisão. Conhecimento e provimento do recurso. (0027732-82.2022.8.19.0000 – AGRAVO DE INSTRUMENTO. Desembargador (a). ROGÉRIO DE OLIVEIRA SOUZA — Julgamento: 03/08/2022 — SEXTA CÂMARA CÍVEL)
[4] Enunciado 1: É cabível a intimação de Águas do Rio, na condição de terceira juridicamente interessada, para cumprimento da obrigação de fazer imposta por sentença transitada em julgado à Cedae, quanto ao critério de cobrança da tarifa de água.
Enunciado 2: O ajuizamento de ação em face da Águas do Rio para observância de critério de cobrança da tarifa de água, quando já condenada a Cedae por sentença transitada em julgado, configura hipótese de falta de interesse processual, possibilitando o indeferimento da petição inicial. RIO DE JANEIRO, Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: http://www4.tjrj.jus.br/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=292616&integra=1. o em: 28 de outubro de 2022.
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