Apelação parcial e a profundidade dos efeitos devolutivo e translativo
23 de novembro de 2022, 14h02
Sabemos que a apelação é o recurso por excelência. Tem por objetivo atacar os fundamentos da sentença, consubstanciando esses dois atos, nos mais importantes do processo.
Ao proferir a sentença, o magistrado de primeiro grau exaure a sua função jurisdicional, salvo raras exceções [1], ficando ao arbítrio do sucumbente a eventual interposição do recurso cabível.
O artigo 1.013 do Código de Processo Civil vigente, diz que a apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada.
É dito pela doutrina como sendo efeito devolutivo da apelação, aquele onde os capítulos decisórios impugnados transportam ao tribunal o conhecimento de todos os fundamentos exarados pelo magistrado para decidir a questão [2].
Exemplo disso, está nos julgamentos nulos proferidos em decorrência de serem ultra ou citra petita a sentença, ou seja, quando o juiz concede a mais ou a menos, respectivamente, do que fora requerido.
Nesses casos, o tribunal está autorizado a adequar o julgado ao pedido, reformando-o quando concedido a mais, ou anulando-o quando concedido a menos, a depender do caso concreto.
Em que pese a clareza da lei, podem surgir situações em que a solução ou o consenso acerca dessa devolutividade a a não ser tão simples, exigindo do intérprete um maior esforço cognitivo.
Os dois primeiros parágrafos do artigo mencionado atestam que serão, objeto de apreciação e julgamento pelo tribunal todas as questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que não tenham sido solucionadas, desde que relativas ao capítulo impugnado, e que quando o pedido ou a defesa tiver mais de um fundamento e o juiz acolher apenas um deles, a apelação devolverá ao tribunal o conhecimento dos demais.
Claro fica, dessa leitura, que o C autoriza a interposição de um recurso parcial.
O parágrafo primeiro é enfático ao dizer que todas as questões suscitadas e discutidas no processo serão devolvidas para o conhecimento do tribunal, fazendo a ressalva de que, necessariamente, devem constar de capítulo decisório manifestamente impugnado.
Outrossim, o parágrafo segundo diz que, relativamente ao capítulo expressamente impugnado, serão remetidos ao órgão revisor, todos os fundamentos relativos aquele capitulo, mesmo aqueles não acolhidos.
A lei processual deixa claro, que é autorizado ao tribunal competente para apreciar a apelação, a revisão de todas as teses e fundamentos adotados pelas partes e pelo magistrado na resolução do conflito de interesses posto, desde que aquele capítulo decisório tenha sido, repita-se, efetivamente, impugnado.
Nesse momento é que surgem algumas controvérsias, com aclaradas vozes defendendo opiniões divergentes.
Por alguns tem-se que, mesmo em caso de recurso parcial de apelação, deve-se entender ter o apelante impugnado toda a sentença, por se tratar de um ato jurisdicional indivisível [3].
Nessa ótica, não haveria a possibilidade de uma apelação parcial, impugnando apenas um ou alguns capítulos da sentença, ao o que esse ato processual não seria ível de impugnação fracionada.
Não é o que se vislumbra pela doutrina e jurisprudência atuais. Comungando desse entendimento, é plenamente possível que o recorrente apenas leve ao tribunal parcela do conteúdo decisório no qual foi vencido, transitando em julgado, por falta de impugnação, o restante da sentença [4].
Deve-se esse entendimento a teoria dos capítulos da sentença, afirmando que, em que pese ser um ato uno e incindível, a sentença divide-se em capítulos decisórios, revestidos de autonomia entre si, portanto, íveis de serem impugnados individualmente, sem prejuízo da boa técnica processual.
É nesse momento que surge outra importante questão: se é permitido ao tribunal apenas a análise de questões diretas ou indiretas dos capítulos efetivamente impugnados, pode aquele analisar as matérias de ordem pública a despeito de provocação?
Enquanto o efeito devolutivo diz respeito a escolha do recorrente em levar ao duplo grau de jurisdição toda a matéria decidida ou apenas parte dela, a doutrina consolidou há tempos o chamado efeito translativo do recurso de apelação.
Esse, diz respeito a possibilidade do órgão revisor em analisar matérias não decididas, mas que seriam de ordem pública, iveis de conhecimento em qualquer grau de jurisdição, existindo controvérsia, até mesmo, se estariam sujeitas ao requisito do prequestionamento nos recursos excepcionais.
Resta claro que, ao juiz, e, por conseguinte aos órgãos hierarquicamente superiores, é permitido o conhecimento de questões de ordem pública de ofício, pois o novo C em nada alterou essa sistemática.
Portanto, é possível concluir que a apelação é dotada, também, de efeito translativo, em franca exceção ao efeito devolutivo expresso.
Esse permissivo é importante, ao o que o magistrado singular pode não ter se atentado a questões de ordem pública no caminhar da demanda, como a falta de alguma das condições da ação ou de pressuposto indispensável para válida continuação e prosseguimento do processo.
Vale destacar que não é só o recurso de apelação dotado de efeito translativo, podemos citar, também, o agravo de instrumento como aderente àquele efeito.
Em que pese doutrina majoritária apontar a exposição do recurso de apelação ao efeito translativo como sendo válido, importante ponderação merece ser feita.
Esse efeito autoriza a averiguação, pelo tribunal, de questões de ordem pública não decididas em primeira instância, e não aquelas decididas e não recorridas.
Em esclarecedora lição, o desembargador James Eduardo Oliveira, do TJ-DF, elucida o assunto, afirmando que questões de ordem pública desde que solucionadas judicialmente, submetem-se aos efeitos da preclusão consumativa e, por via de consequência, não podem ser ressuscitadas em sede de apelação [5].
A meu ver, matérias de ordem públicas já decididas nos autos não são imunes ao instituto da preclusão, que deve se sobrepor.
Além disso, a profundidade do efeito devolutivo da apelação se deve ao esforço intencional do recorrente, esse leva ao tribunal os fundamentos do seu descontentamento com a decisão impugnada, restringindo o exame a toda a matéria, alegada ou não, apenas àquele capítulo.
A reforçar esse argumento, o fato de que o julgamento de um recurso, a exemplo do que ocorre em primeiro grau, pode ocorrer fora dos limites dos pedidos recursais.
A decisão colegiada deve manter-se nos limites dos fundamentos e pedidos trazidos pelo recorrente, em manifesta coerência e unidade do sistema processual.
Portanto, as matérias de ordem pública aptas a atrair a competência do tribunal são aquelas sequer debatidas nos autos, pois não estariam cobertas pelo fenômeno endoprocessual da preclusão.
As já decididas e não trazidas no corpo argumentativo do recurso não podem se sobrepor àquele fenômeno, estando impossibilitado o recorrente em rediscutir o assunto.
Exemplo esclarecedor diz respeito a um tribunal estadual analisar o recurso, constatar que a competência é da justiça federal e remeter os autos, caso em que matéria sequer havia sido debatida no primeiro grau de jurisdição.
Portanto, há a possibilidade de interposição de uma apelação parcial, que ataca parcialmente a argumentação exarada na sentença, devolvendo ao tribunal em toda a sua extensão e profundidade, os fundamentos daquele capítulo, ainda sendo possível a análise, de ofício, das questões de ordem pública existentes nos autos, quando ainda não decididas.
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[1] Artigo 494, do C.
[2] LUIZ GUILHERME MARINONI e SÉRGIO CRUZ ARENHART, Curso de Processo Civil, Volume 2, 7ª ed., RT, p. 523.
[3] JORGE AMERICANO, Comentários ao Código de Processo Civil, 4º Volume, 2ª ed., Saraiva, 1960, p. 9.
[4] MARCUS VINICIUS RIOS GONÇALVES, Direito Processual Civil Esquematizado, Saraiva, 2011, p. 494.
[5] Acórdão 1099833, 20130710061009APC, Relator: JAMES EDUARDO OLIVEIRA, 4ª TURMA CÍVEL, data de julgamento: 16/5/2018, publicado no DJE: 4/6/2018.
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