Opinião

Herança digital e controvérsias na sucessão de criptoativos

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30 de novembro de 2022, 21h06

Um assunto ainda pouco explorado no contexto da regulação dos criptoativos é a herança digital, que consiste no conjunto de contas virtuais, materiais, conteúdos e os digitais deixado por quem morre. No âmbito dos criptoativos (e.g. Bitcoin, Ethereum, NFTs e outros), espécie de ativo que compõe a herança digital, a problemática pode ser resumida na seguinte pergunta:

Quando você falecer o que acontece com os criptoativos que você adquiriu em vida?

A questão se mostra especialmente relevante considerando que, segundo dados da Agência Senado, em 2021 as negociações de compra e venda de criptoativos no Brasil atingiram o marco histórico de R$ 215 bilhões [1]. O que demonstra a pertinência econômica do assunto e evidencia a aderência desse mercado pelo investidor brasileiro.

Em relação a sucessão, a legislação prevê que, imediatamente após o falecimento, abre-se a sucessão e transmite-se a herança [2], que pode ser definida como o conjunto de bens, direitos e obrigações a ser transferido aos herdeiros.

Nesse contexto sucessório, o tema que tem ganhado tração no Brasil diz respeito a inclusão do acervo digital, isto é, do conjunto de bens de potencial valor econômico detidos em ambiente virtual, ao conceito de herança e como operacionalizar sua sucessão.

Isso porque, embora os ativos armazenados virtualmente em hard drives e pastas virtuais em computadores sejam facilmente transferíveis — uma vez que acompanham a mídia tangível que o contém — houve um aumento significativo na aquisição de ativos digitais armazenados em nuvem, disponíveis mediante a contratação de determinados serviços on-line cuja transferência é regida pelos próprios prestadores do serviço, comumente através de e senha.

Especificamente em relação aos criptoativos, o registro de dados se dá em um sistema de cadeia contínua de forma descentralizada, isto é, sem a figura do intermediário (e.g. bancos), sendo que cada movimentação é validada utilizando tecnologia blockchain. Na prática, para cada transação envolvendo esses ativos será gerada uma nova chave de o distinta e única. Todos esses fatores garantem a independência, segurança e transparência desse sistema.

Por outro lado, a ausência de um órgão regulador definido, de um indexador oficial que forneça o valor de conversão do criptoativo para a moeda do país e de uma regulamentação própria no Brasil, gera um ambiente de insegurança jurídica para o investidor, inclusive no tocante a sucessão decorrente do falecimento do proprietário destes ativos. Nesse sentido, importante destacar também que é comum que esses investimentos sejam feitos no exterior. A lei brasileira impede o o à herança de bens deixados fora do país, sendo necessário nesse caso observar as disposições da legislação da jurisdição estrangeira.

Além da lacuna jurídica, os problemas se estendem para o viés operacional dado que, na ausência de um órgão regulador responsável, quem os herdeiros poderiam acionar para disponibilizar as informações de o do titular, caso esta não tenha sido informada pelo falecido em testamento ou em vida, para que seja realizada a transferência de titularidade do ativo? Com quem os herdeiros poderiam obter informações acerca da extensão do acervo digital detido pelo falecido?

Não só, ainda que seja possível efetuar a transferência de ativos digitais detidos pelo falecido, a ausência do órgão regulador responsável e, consequentemente, de visibilidade em relação a extensão do acervo digital detido por este, resulta na potencial impossibilidade de os herdeiros verificarem a observância do quinhão cabível a cada um.

A despeito destas controvérsias não se mostrarem tão frequentes atualmente nas discussões doutrinárias e jurisprudenciais relativas a inventário e sucessão, trata-se de um tema emergente cujos efeitos arão a integrar tais fóruns em um futuro não tão distante.

Questões como a natureza jurídica dos criptoativos, indexador oficial de conversão e de aspectos jurídicos relacionados à sua sucessão são vitais não só para a segurança jurídica do investidor, mas também para que seja possível inferir a tributação aplicável na transmissão desses ativos.

Explorado o contexto da discussão, considerando que os investimentos em criptoativos são uma realidade atual, é necessário identificar possibilidades de solução considerando 1) os projetos de lei em trâmite; 2) o direito comparado; e 3) instrumentos jurídicos já disponíveis.

Dentre os projetos de lei ("PL") em trâmite no Senado Federal e na Câmara dos Deputados, voltados para regulamentar criptoativos destacam-se: 1) o PL nº 4.401/21 trata das prestadoras de serviço de negociação, transferência e custódia de criptoativos mas não dispõe sobre a sucessão de tais ativos; 2) o PL nº 3.050/20 pretende complementar o Código Civil para dispor expressamente que a sucessão obrigatória também engloba ativos digitais pertencentes ao falecido; e 3) o PL nº 5.820/19 que além de prever expressamente que a sucessão engloba ativos digitais, permite que o falecido dê instruções sobre a transferência de tais ativos em sua manifestação de última vontade e propõe um conceito de herança digital para compor nosso ordenamento jurídico.

No Reino Unido [3] e nos Estados Unidos da América [4] já se vê a implementação de soluções simples como: 1) a anotação da chave de o em um documento e seu armazenamento em cofres físicos; 2) testamento digital utilizando smart contracts; e 3) um sistema de ausência desenvolvido em contas de e-mail pelo qual, verificado determinado período sem utilização, seria disparada a chave de o para os beneficiários indicados, entre outras.

Em relação aos instrumentos jurídicos já disponíveis, vê-se que os óbices operacionais e o vácuo jurídico brasileiro podem ser contornados mediante a utilização de estruturas constituídas no exterior (e.g. Private Investment Companies, PIC, ou Private Investment Fund, PIF) que poderiam atrair benefícios de ordem tributária e sucessória. Outra alternativa seria dispor expressamente sobre o acervo digital, chave de o, instruções para transferência e beneficiário em testamento cerrado. Essas e outras alternativas podem ser exploradas no detalhe em outra oportunidade.

Estamos longe de esgotar o tema, mas o que se espera é que tais preocupações sejam endereçadas ou, minimamente esclarecidas pelo Poder Legislativo, para trazer segurança jurídica ao investidor. Até lá, é importante que o investidor de criptoativos tenha conhecimento de tais controvérsias e monitore seu desenvolvimento, bem como que os profissionais da área do planejamento patrimonial e sucessório estejam atualizados e instrumentalizados com alternativas que enderecem essas preocupações.

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