O pacto federativo nas eleições
19 de outubro de 2022, 16h06
Com o advento das eleições gerais neste ano, a população por meio do voto direto conferido na Constituição Federal de 1988, decidiu pelo segundo turno para o páreo executivo nacional entre os candidatos a presidente do Partido dos Trabalhadores e do Partido Liberal.

A título de exemplificar a ausência desse entendimento, tomemos como base o caso do eleitor que deixou de fornecer alimentos a uma idosa carente, pelo simples fato de que disse não votar no candidato de sua preferência — sem mencionar que fez questão de filmar e divulgar todo o ocorrido.
Outro exemplo foi o da advogada de Minas Gerais, que gravou vídeos com amigas disparando uma série de ataques e ofensas contra a população da região nordeste do país, pelas mesmas "motivações" eleitorais. E ainda recentemente, tivemos o lamentável episódio de ataques racistas a um dos maiores artistas brasileiros vivos, Seu Jorge, por supostamente manifestar-se politicamente, em evento na cidade de Porto Alegre.
Esses são apenas sintomas da celeuma do preconceito arraigado e que remonta ao caráter paternalista herdado pelas elites em nosso país. Tal porque, nem ao menos consideram que pessoas de classes sociais abissalmente distintas das suas, quase sempre, vão possuir realidades e objetivos opostos aos seus. E é legítimo que tenham visões e aspirações díspares de mundo, sobretudo no varejo da política.
Sobre a herança escravocrata do colonialismo, vale lembrar que o jusnaturalismo teve importante papel nas discussões sobre raça. Muitas das justificativas para a escravidão, e para o racismo que a amparava ideologicamente, tinham como base a ideia de uma ordem natural que "fundamentava" a escravidão de determinados povos e a superioridade de outros. Portanto, leis positivas que amparavam a escravidão nada mais faziam do que espelhar uma ordem já determinada pela "natureza das coisas", por "Deus" ou pela "razão".
No Brasil, a razão invocada por muitos juristas do século 19 para se opor à abolição da escravidão residia na necessidade de se manter o respeito ao direito natural de propriedade. E, perante o direito, escravos eram considerados propriedade privada, mais especificamente, bens semoventes, ou seja, coisas que se movem com tração própria, semelhantes a animais.[1] (ALMEIDA, p. 81 – 82).
O maior problema do racismo não decorre apenas do fato que ele desvirtua os princípios de uma sociedade liberal. Na verdade, o problema é que ele nunca permitiu que essa sociedade existisse. O racismo opera de forma institucional e sistêmica. Pessoas brancas controlam praticamente todas as instituições públicas e privadas deste país, o que permite operar de acordo com os interesses do grupo racial dominante.
Mais do que isso, essas instituições não atuam de forma isolada. As mesmas motivações que informam a operação de uma também informam a operação de outras. O racismo que torna a escola um ambiente hostil para crianças também motiva o comportamento discriminatório de policiais militares em relação a negros que também influencia a forma como negros são tratados no sistema judiciário. Por ser uma prática coletiva, ele informa o funcionamento de instituições públicas e privadas, afetando diversas dimensões das vidas de pessoas negras neste país.[2] (MOREIRA, 2017).
É fato que as eleições revelaram mais uma faceta da elite brasileira, que insiste em reiteradamente trazer à tona um discurso de cunho manifestamente xenofóbico. Óbvio que me refiro aqui ao fantasma do movimento separatista, pautado de forma enfática desde a disputa presidencial das eleições 2014 — aquela mesma em que o candidato derrotado não aceitou o resultado e pediu recontagem dos votos —, e que assola o repertório das classes dirigentes, capitaneadas por grupos sectários nos estados do sul e sudeste do país.[3] (RIBEIRO, p. 411 – 412).
A narrativa vergastada, insiste em agredir escolhas políticas diferentes das suas, mesmo tendo sido sufragada por milhões de votos de nossos irmãos dos estados do Nordeste. Mais uma vez, o discurso do separatismo atenta contra cláusula pétrea estabelecida na Constituição.
São discursos inflamados, munidos de ódio, preconceito e ignorância. Relutam sobre as motivações pelas quais a região nordeste haveria referendado um candidato distinto ao que eles (elites da região Sul e Sudeste) não aprovam. Essa é a demonstração inequívoca do legado escravocrata deixado ao último país a abolir a escravidão nas Américas.
Felizmente, o prognóstico é de que tais movimentações são incipientes e sem força política alguma. Basta ver que são discursos reacionários e que em grande parte se dão no âmbito das redes sociais — o que não os desvincula de inúmeras vicissitudes outras desencadeadas no âmbito de uma sociedade miscigenada e tão desigual como a brasileira.
Feita a breve e indispensável introdução, mister abordar alguns conceitos importantes da doutrina constitucionalista no que se refere ao federalismo e o pacto federativo, temas caros ao presente artigo.
Grande parcela dos defensores do ideário separatista, sequer sabem que o próprio texto constitucional, é categórico ao não salvaguardar a abordagem do tema. Logo no artigo primeiro[4] já é materializado o pacto federativo, sacramentando-se que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos estados, municípios e do Distrito Federal.
Ou seja, explicita o princípio da indissolubilidade do pacto federativo e determina que a união dos estados-membros, do DF e dos municípios não poderá ser desfeita. Veda, portanto, o direito de secessão em face da federação brasileira, inclusive, alcançando o status de cláusula pétrea — mesmo não estando no rol do artigo 60 da CF/88, àquele destinado aos dispositivos dessa natureza.[5] (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, p. 932).
Em linhas gerais, o pacto federativo define a forma de Estado adotada no Brasil, sendo a federação nada mais que uma forma de Estado na qual há mais de uma esfera de poder dentro de um mesmo território e sobre uma mesma população.
As entidades integrantes da Federação brasileira não possuem soberania. No entanto, gozam de autonomia deferida pela Constituição — diferentemente da soberania, corresponde a um quadro interno de competências, rigidamente demarcadas.[6]
A Federação é resultado da descentralização política, que se origina da união indissolúvel de mais de uma organização política, no mesmo espaço territorial do Estado, compartilhando o seu poder. A repartição de competências entre a União e os estados-membros constitui o sustentáculo do Estado federal.
Assim, no Brasil, a União, os estados-membros, o DF e os municípios possuem sua autonomia, norteada e limitada pelos princípios consagrados na Constituição.
Importante salientar que em casos extremos, onde o ente federativo insiste na secessão — tal qual o discurso apregoado pelos separatistas —, a própria Constituição oferece remédio para a equação. Está positivado no artigo 34 que a União não intervirá nos estados nem no Distrito Federal, salvo para a própria mantença da integridade nacional[7].
Noutras palavras, a separação de entes federativos sequer dá margem para ser pautada no debate nacional. Quem o faz ou o incita, implica em ofensa clara e direta aos primados esculpidos a duras penas pelo constituinte.[8] (HESSE, p. 178).
Para tanto, indispensável distinguir as formas de federalismo debatidas na doutrina. A primeira, a forma centrípeta, possui traços unitaristas, repartindo pouco as extensas competências constitucionais, criando um ente federal corpulento em detrimento de outros entes quase microscópicos.
A segunda é a formatação centrífuga, ideal para modelos consagrados e consolidados em considerável lapso temporal. Deposita enorme confiança em que os entes federativos atuem em sintonia, com a finalidade de legitimar o órgão federal. A terceira e derradeira forma, é a equilibrada, na qual se mantém a presença federal em paridade aos demais entes federativos.
No período republicano, sob a vigência da Constituição de 1891, recepcionou-se o "federalismo dual ou clássico", de inspiração norte-americana, segundo o qual a Constituição estabelecia expressamente as competências da União e resguardava para os estados-membros todas as demais — implicando em maior autonomia e descentralização política.[9] (COÊLHO, 2022).
Desde a promulgação da vigente Constituição de 1988, foi consagrado um novo pacto federal, em que seu coroou a forma mais aperfeiçoada do federalismo por aqui, o "federalismo cooperativo ou de equilíbrio" — o último dos três modelos anteriormente mencionados.
Nesta formulação, o pressuposto parte da igualdade entre os entes federativos, os quais têm suas respectivas competências repartidas pela própria Constituição, seguindo o critério da predominância do interesse.[10] (MENDES, 2008).
Contudo, causa estranheza compreender o Brasil como um modelo equilibrado, sobretudo por ser um modelo que concentra na União o papel de ente arrecadador principal das receitas tributárias, trazendo consigo um rol de competências privativas extenso para a União, um rol sintético aos municípios, e um subsidiário quanto aos estados.
Acontece que esse novo federalismo, no qual os estados-membros e municípios estariam aptos a exercer em sua plenitude a autonomia em suas respectivas territorialidades, também se depara com outros obstáculos.
Tanto de ordem financeira, haja vista a principal fonte de receita do Poder Público — a arrecadação tributária por parte do contribuinte – ser substancialmente retida pelo governo federal ou nele concentrada, de modo que os estados-membros e municípios tornam-se material e economicamente dependentes dos condicionamentos da União.[11] (MORAES, p. 478).
E também de ordem jurídico-constitucional, já que a centralização excessiva não raramente decorre de decisões do Supremo Tribunal Federal, a quem toca definir as estremas dos entes federativos, no que tange a autonomia. Nessa senda, o STF, garantidor do pacto federativo, encontrou grande aliado em favor da centralização, o que dificulta a autonomia dos estados e municípios, precisamente o "princípio da simetria".
O federalismo brasileiro de cooperação e equilíbrio, vem apresentando uma dinâmica centralizadora — do federalismo centrípeto —, oportunizando a hipertrofia do governo federal em detrimento dos governos estaduais e municipais.
Essa interpretação é contrária à prática até então prevalente no STF, de centralização de competências em torno da União. Agora, a Suprema Corte parece fazer acenos ao federalismo centrífugo, concedendo maior autonomia para estados e municípios.
No direito constitucional, é fundamental, de um lado, que estados exerçam o respectivo espaço de autonomia constitucional, assinalado na Constituição e, de outro, que o Supremo, instância fiadora do pacto federativo, revisite a tese de sua interpretação centralizadora do nosso federalismo, formalizada no princípio da simetria, para assegurar o pleno exercício do constitucionalismo estadual e das respectivas competências constitucionais.
É possível concluir que, esse desafio põe o federalismo brasileiro em um embate temporal único, na medida em que se reconhece a efetiva autonomia constitucional estadual prevista na Constituição, voltada à defesa e proteção de direitos fundamentais, operando-se a releitura do pacto federal e se alterando a dinâmica para um federalismo centrífugo.
Ou, por outra ótica, se mantém a tendência centralizadora do federalismo centrípeto, dando preponderância às decisões do governo federal, correndo o risco de frustrar o próprio texto constitucional no que há de mais precioso: a defesa da vida e da dignidade da pessoa humana. [12]
Por fim, considerando as características culturais e doutrinárias sobre a concepção do pacto federativo no Brasil, é necessário que esforços sejam tomados e autocríticas sejam feitas pela sociedade civil organizada, e balizas sejam impostas pela classe política e jurídica comprometida. Isso para que se possibilite o reexame do discurso xenofóbico arguido pelos separatistas, uma vez que ações dessa natureza não possuem resguardo no ordenamento constitucional, inclusive, incorrendo em afronta cristalina de cláusula pétrea.
[1] ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. p. 81 – 82.
[2] MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: Ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Revista de Direito Brasileira, set./dez. 2017, v. 18, n. 7. p. 393 – 421. DOI: 10.5585/rbd.v18i7.635.
[3] A integração econômica da região Sul do Brasil se alcançou, como se vê, através da criação de sucessivos vínculos mercantis que a ataram mais ao restante do país do que às províncias hispano‐americanas vizinhas. […] Apesar dessas forças integrativas, mais de uma vez se teve de apelar ao uso das armas para manter o Brasil sulino atado ao Brasil. […] Em função dessas tensões e das disputas que elas geravam, o Brasil se viu diversas vezes envolvido nas guerras platinas. Em certas ocasiões, movidas por ambições expansionistas próprias; em outras, como partes que eram de um conjunto de nacionalidades em confronto no processo de autodiferenciação, unificação e fixação de suas fronteiras. O poder central teve também de fazer frente e submeter pelas armas movimentos aspirantes à autonomia da região, muito mais vigorosos e instrumentados que os de outras áreas. Diversos fatores se conjugaram para ativar essas tendências separatistas. Entre eles, o fato de ser uma vasta e longínqua região com interesses próprios irrenunciáveis e que, não sendo adequadamente atendidos, ensejavam tensões disruptivas ‐ conducentes à ruptura com o poder central. Soma-se a isso a circunstância de viver apartada do resto do Brasil e submetida a influências intelectuais e políticas de centros urbanos culturalmente avançados, como Montevidéu e Buenos Aires. Nessas condições, não podiam deixar de surgir aspirações de independência, inspiradas às vezes na concepção de que o Sul melhor realizaria suas potencialidades como um país autônomo do que como um estado federado; motivadas outras vezes por ideários políticos arrojados, como as lutas anti‐escravistas e a campanha republicana dos farrapos. (RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 411 – 412).
[4] Artigo 1º, caput, da Constituição Federal de 1988.
[5] A organização federativa de um Estado pressupõe a afirmação de um núcleo central de poder, donde emanam as normas gerais e a coordenação das políticas nacionais, ao mesmo tempo em que assegura a autonomia dos entes federados, reconhecendo-se a pluralidade das realidades nas unidades subnacionais. A doutrina afirma a existência de elementos nucleares qualificadores do Estado federal, em que se destacam a presença de ordens parciais, a autonomia política e istrativa das unidades da federação e a proibição de dissolução da federação. (SARLET, Ingo; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 932).
[6] Art. 18. A organização político-istrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.
[7] Artigo 34, inciso I, da Constituição Federal de 1988.
[8] […] a livre unificação de totalidades políticas diferenciadas, fundamentalmente com os mesmos direitos, em regras regionais que, deste modo, devem ser unidas para a colaboração comum. (HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre, 1998. p. 178).
[9] COÊLHO, Marcus Vinicius Furtado. O pacto federativo ante o enfrentamento à Covid-19 e a jurisprudência do STF. Conjur, ISSN 1809-2829, 11.04.2022.
[10] MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
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