Indisponibilidade de bens e processos de improbidade istrativa em curso
27 de outubro de 2022, 13h03
Até o advento da Lei nº 14.230/2021 era praticamente automática a decretação de indisponibilidade de bens dos réus nas ações de improbidade istrativa, ainda na fase inicial do processo.
Isso ocorria em razão de os magistrados dispensarem a demonstração do periculum in mora para a decretação de indisponibilidade de bens na ação de improbidade, embasados na tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça no Tema Repetitivo nº 701 [1].
No entanto, com as alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021, a Lei de Improbidade istrativa (Lei nº 8.429/92) ou a prever expressamente que a indisponibilidade de bens do réu exige a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo (artigo 16, §3º).
A mudança no regramento acarreta, em relação aos processos de improbidade em curso, a possibilidade de revisão das decisões de indisponibilidade de bens decretadas com fundamento no periculum in mora presumido, anteriores à inovação legislativa.
Isso porque, a indisponibilidade de bens consiste em típica medida processual acautelatória, modalidade de tutela provisória [2]. Por se caracterizar como norma processual, o regramento a respeito dos requisitos para concessão da indisponibilidade de bens tem aplicação imediata aos processos de improbidade em curso, conforme previsão do artigo 14 do Código de Processo Civil [3].
Nesse aspecto, a reapreciação das decisões de indisponibilidade de bens anteriores à Lei nº 14.230/2021 não configura aplicação retroativa da norma processual, nem viola o dever de respeito aos atos processuais praticados e às situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada (artigo 14, C).
Com efeito, a medida de indisponibilidade não caracteriza um ato processual pontual, que, quando praticado, exaure seus efeitos, tornando-se imune à legislação superveniente. Em verdade, trata-se de uma modalidade de tutela cautelar que, como as demais modalidades de tutela provisória, conserva sua eficácia na pendência do processo, podendo, a qualquer tempo, ser revogada ou modificada, tal como expressamente prescreve o artigo 296 do C [4].
Portanto, não há que se falar em isolamento do ato processual que decretou a indisponibilidade de bens (tempus regit actum) [5]. As medidas de tutela provisória tem seus efeitos continuados no curso do processo, de forma que estão sujeitas às alterações dos pressupostos fáticos e jurídicos que lhe deram e (caráter rebus sic stantibus).
Nesse sentido lecionam Daniel Amorim Assumpção Neves e Rafael Carvalho Rezende Oliveira [6]: "Entendo que essas circunstâncias supervenientes jurídicas aptas ao reexame podem ser uma novidade legislativa, devendo a tutela de urgência se adequar à lei vigente durante toda a extensão de sua existência. Tratando-se de tutela continuada, que dura, pelo menos em regra, até ser confirmada ou revogada pela tutela definitiva, durante todo o seu tempo de vigência deve atender àquilo que a lei exige para sua concessão. Não parece, afinal, correto se apontar a existência de um direito adquirido da parte beneficiada pela tutela de urgência, até, e em especial, por conta da provisoriedade da medida".
Situação diferente ocorre, por exemplo, em relação à alteração promovida pela Lei nº 14.230/2021 em relação ao prazo para apresentação defesa (artigo 17, ª 7º). O ato processual referente à concessão de prazo para apresentação de defesa ocorre e se exaure naquele momento específico, isoladamente, de forma que não perpetua seus efeitos no decorrer do processo, diferente do que ocorre em relação à tutela provisória de indisponibilidade de bens do réu.
Na jurisprudência, já é possível identificar posição favorável dos Tribunais à revogação das medidas de indisponibilidades proferidas antes da vigência da Lei nº 14.230/2021 com fundamento no periculum in mora presumido. Nesse sentido são as recentíssimas decisões proferidas pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região [7] e pelos Tribunais de Justiça do Estado de São Paulo [8], de Minas Gerais [9] e de Santa Catarina [10].
Portanto, nos processos de improbidade istrativa em curso, a superveniência da Lei nº 14.230/2021 permite a reapreciação das decisões provisórias de indisponibilidade de bens concedidas anteriormente, com fundamento no periculum in mora presumido.
[1] REsp nº 1.366.721/BA, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, relator para acórdão ministro Og Fernandes, Primeira Seção, julgado em 26/2/2014, DJe de 19/9/2014.
[2] Nesse sentido: PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade istrativa comentada: aspectos constitucionais, istrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2018. p. 168.
[3] Artigo 14, C. A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada.
[4] Artigo 296, C. A tutela provisória conserva sua eficácia na pendência do processo, mas pode, a qualquer tempo, ser revogada ou modificada.
[5] A "Teoria dos Atos Processuais Isolados" preceitua que cada ato processual deve ser considerado separadamente dos demais para o fim de se determinar qual a lei que o rege, de forma que a lei que rege o ato processual é aquela em vigor no momento em que ele é praticado (STJ — REsp nº 1.404.796/SP).
[6] Comentários à reforma da lei de improbidade istrativa: Lei 14.230, de 25.10.2021 comentada artigo por artigo. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 62/63.
[7] TRF 1ª R.; AI 1035325-19.2021.4.01.0000; Segunda Seção; relator desembargador federal Wilson Alves de Souza; Julg. 20/07/2022; DJe 01/07/2022.
[8] TJSP; AI 2003209-74.2022.8.26.0000; Ac. 15785077; Campinas; Oitava Câmara de Direito Público; relator desembargador José Maria Câmara Junior; Julg. 22/06/2022; DJESP 28/07/2022; Pág. 2295.
[9] TJMG; AI 2566178-65.2021.8.13.0000; Décima Nona Câmara Cível; relator desembargador Leite Praça; Julg. 28/07/2022; DJEMG 04/08/2022 e TJMG; AI 1400288-91.2021.8.13.0000; Segunda Câmara Cível; relator desembargador Caetano Levi Lopes; Julg. 31/05/2022; DJEMG 01/06/2022.
[10] TJSC; AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 5037130-27.2022.8.24.0000/SC; 2ª Câmara de Direito Público; relator desembargador FRANCISCO JOSÉ RODRIGUES DE OLIVEIRA NETO; disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 2694476v33 e do código CRC 4556bb8b, Data e Hora: 12/9/2022, às 10:24:23.
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