O que pode e o que não pode o STF fazer?
9 de setembro de 2022, 13h11
Há muita confusão de conceitos neste Brasil, sem contar a briga de narrativas, principalmente em ano eleitoral. Por ser um assunto que importa igualmente a todos, em grau e extensão, decidi escrever pinceladas sobre o pouco que entendo de tudo isso, encaixando dentro do cenário político que vivenciamos.
Pois bem.
No último dia 5 de setembro, o ministro Edson Fachin, por meio de liminar nas ações protocoladas pelo PT e PSB, restringiu os efeitos dos decretos editados pelo presidente Jair Bolsonaro, os quais tinham o escopo de facilitar a aquisição de armas de fogo e munições (prioridade máxima de sua campanha).
Os Decretos nº 10.627, 10.629 e 10.630 flexibilizavam as normas do Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03) e ampliavam o o a armas de fogo, aumentando a quantidade permitida de compra por pessoa; alterando os critérios de análise dos pedidos de concessão de porte; e reduzindo a lista de artefatos considerados necessários ao controle do Exército.
Todos esses decretos vinham sendo questionados no Congresso e também no Supremo Tribunal Federal, inclusive com votos já declarados pela inconstitucionalidade desses, manifestados por Edson Fachin (relator das ações), Rosa Weber e Alexandre de Moraes. As ações estão com pedido de vista pelo ministro Kassio Nunes Marques.
Antes dessas ações, já haviam outras protocoladas pelos partidos PSOL e Rede, nas quais a ministra Rosa Weber havia deferido liminar suspendendo vários dispositivos desses decretos. A ação da ministra foi questionada pelo governo e também pelo Congresso como sendo um ato de ativismo judicial.
Há muita confusão no emprego do termo ativismo judicial e, com esse gancho, assim chegamos ao ponto nevrálgico deste texto: ativismo judicial é a adoção de uma atitude específica e proativa que visa a interpretar a Constituição ou qualquer outra norma de modo que expanda seu sentido e alcance.
Tudo bem, há a possibilidade tanto de "intervenção" (se é que podemos chamar dessa forma) pelo STF nas pautas do Congresso, quanto nas pautas do Poder Executivo (quando da edição de decretos presidenciais). Perante o Legislativo, há previsão constitucional para tanto (artigo 102, CF). Chama-se de controle preventivo de constitucionalidade, em que um parlamentar impetra a ação constitucional pela via do mandado de segurança, de caráter preventivo, visando coibir atos praticados no processo legislativo que se mostrem incompatíveis com as disposições constitucionais.
A ação mandamental, nesses casos, visa retificar vícios formais, ou seja, de caráter procedimental. Um exemplo de fácil visualização é o vício de iniciativa na apresentação de um projeto de lei, por exemplo. Para contextualizar, vício de iniciativa é quando a prerrogativa de legislar determinada matéria é privativa de um órgão/pessoa e quem apresenta o projeto é pessoa desprovida de tal competência. Vejamos no caso de regime jurídico dos militares — artigo 61, § 1º, II, f, da CF/88 —: a competência de iniciativa é exclusiva do chefe do Executivo e, caso algum parlamentar apresente projeto de lei versando sobre a matéria, estar-nos-emos diante de um processo legislativo viciado formalmente, autorizando assim o manejo do mandado de segurança ao STF.
O escopo do mandado de segurança, portanto, é justamente proteger o devido processo legislativo.
Há somente um tipo de controle preventivo: o formal. Isso significa dizer que é inviável o controle preventivo de constitucionalidade material dessas mesmas normas em curso de formação. Vale dizer: cabe o controle a fim de prevenir vícios formais quando do nascimento da norma, mas nunca questioná-las antecipadamente (ou preventivamente) no que toca ao seu teor (direito material).
Permitir essa análise prematura é provocar um controle abstrato repressivo, não existente em nosso ordenamento jurídico, e negar a atuação dos outros poderes da república, porque negar vigência a uma lei antes de sua entrada em vigor por questões de incompatibilidade material dessa com as já existentes é refutar que os parlamentares, especificamente no caso em questão, farão seu papel e vetarão questão material inconstitucional.
Em outras palavras: devemos confiar nos parlamentares que votamos! Simples.
Por outro lado, perante o Executivo, quando da edição de decretos presidenciais, precisaremos de outro recorte:
Decretos são normas de autoria do chefe do Executivo e visam regulamentar lei já existente, cuja vigência é imediata. O decreto funciona para criar regras mais específicas para uma norma jurídica geral.
Os decretos de Bolsonaro questionados visavam alterar regras do Estatuto do Desarmamento, lei já em vigor. É cabível, mas com ressalvas. Digo ressalvas porque não se pode, por meio de decreto, modificar, ampliar ou reduzir direitos.
Os decretos presidenciais possuem funções limitadas e puramente istrativas. Em relação a isso, a Constituição Federal, a Seção II, intitulada "Das atribuições do Presidente da República", em seu artigo 84, diz que:
Art. 84: Compete privativamente ao Presidente da República:
VI – dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da istração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;
b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;
Na prática, o presidente da República apenas toma decisões istrativas através de decretos presidenciais, já que dispõem de questões técnicas, como criação de consulados, composição de conselhos e comissões e alterações em outros decretos já existentes.
No caso aqui discutido, o presidente quis ampliar direitos, flexibilizando o o a armas de fogo. Nesse caso, extrapolou-se a competência do chefe do Executivo, autorizando reclamos tanto perante o STF quanto ao Congresso.
Sim! Um decreto presidencial, como é o caso, pode ser derrubado através, por exemplo, de um decreto legislativo. Aliás, isso já ocorreu em 2019 exatamente com relação a essa questão de porte de armas (veja aqui). Jair Bolsonaro editou o Decreto nº 9785 e o Poder Legislativo o derrubou quando editou outro decreto sobre a matéria.
A prática é possível, já que, pela lógica da pirâmide de hierarquia, os decretos presidenciais são os que detêm menos competências.
Ao STF, de igual forma, cabe o manejo de Ação de Inconstitucionalidade. Um partido político, por exemplo, pode solicitar ao Supremo que avalie a inconstitucionalidade de uma lei ou decreto. À corte cabe a suspensão do decreto, parcial ou totalmente, declará-lo constitucional ou ainda improceder a ação.
Não há nada de errado na prática. Inclusive é permitida pela própria CF.
Ao que tudo indica, portanto, não há que se falar, de forma alguma, em ativismo judicial, mas sim de cumprimento, pelo STF, de guarda e cumprimento da Constituição.
Lembremos que ao Supremo é dado o dever de guardião da Constituição e, justamente por isso, as pautas e entendimentos por vezes são decididas de forma contramajoritária. O STF não decidirá conforme a ânsia da maioria, mas sim pelo direito das minorias, e isso pode causar desconforto (como de fato causa).
Recomendo a todos a leitura atenta do nosso texto constitucional, visando principalmente combater todo e qualquer tipo de desinformação. A campanha pela desinformação começa por nós mesmos.
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