Opinião

Quem é responsável civilmente pela depredação do 8 de Janeiro em Brasília

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3 de abril de 2023, 17h18

Brasília está conhecendo novas formas de protestos violentos de grupos políticos ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O evento mais grave foi no último dia 8 de janeiro, quando ocorreu a invasão e depredação dos palácios da capital (Planalto, Supremo Tribunal Federal e Congresso), o que levou à prisão e ao indiciamento de centenas de pessoas.

Joedson Alves/Agência Brasil
Joedson Alves/Agência Brasil

Restringimo-nos aqui a questão jurídica, com propósito de responder à questão central: frente a esses fatos multitudinários, quem responde civilmente? O Estado, por ação ou omissão, o agente causador do dano, o organizador ou financiador do evento? Todos ou apenas os civilmente identificados? Com fazer as gradações de culpa individualizada e a dosimetria da pena? Essas questões teóricas serão analisadas no bojo da teoria da responsabilidade civil e a responsabilidade do Estado por ação ou omissão.

O que são essas manifestações de protestos bolsonaristas? São atividades políticas em redes sociais que congregam multidões para protestos generalizados premidos por circunstâncias políticas imediatistas em perigo continuado à democracia. Esses eventos multitudinários distinguem-se de outras formas de protestos por estarem "acampados" na frente dos quartéis do Exército e assim supostamente "protegidos" pelos militares, sendo este local o laboratório para organização das várias manifestações em Brasília.

O que são essas manifestações de protestos bolsonaristas? São atividades políticas em redes sociais que congregam multidões para protestos generalizados premidos por circunstâncias políticas imediatistas em perigo continuado à democracia. Esses eventos multitudinários distinguem-se de outras formas de protestos por estarem "acampados" na
frente dos quartéis do Exército e assim supostamente "protegidos" pelos militares, sendo este local o laboratório para organização das várias manifestações em Brasília.

Eis a contradição política desses grupos bolsonaristas, defendem a ditadura e usam o espaço democrático para negar a própria democracia. Negam os direitos humanos, mas requerem quando precisam, no caso dos presos de Brasília. Negam o que afirmam ou afirmam o que negam. Há baixa razoabilidade de conduta, para não dizer irracionalidade.gregam multidões para protestos generalizados premidos por circunstâncias políticas imediatistas em perigo continuado à democracia. Esses eventos multitudinários distinguem-se de outras formas de protestos por estarem "acampados" na frente dos quartéis do Exército e assim supostamente "protegidos" pelos militares, sendo este local o laboratório para organização das várias manifestações em Brasília.

Contexto das manifestações
As manifestações no Brasil ganharam força nas últimas décadas para contestar contra a atuação do governo, os analistas descrevem de várias maneiras estes protestos como "anti-institucional", "antipolítico", "anticíclico" ou "mal-estar civilizatório".

Onde está a fonte desta combustão? Primeiro, o sistema democrático tem limites em conceder novos ganhos e novos direitos. Essa barreira impõe conflitos a determinados grupos sociais por entenderem que têm "direito sobre os poderes do Estado", assim interpretam à sua maneira e sem limites de obrigação cívica. Houve uma absorção dessa multidão insatisfeita por redes sociais facilmente manobrável em direção à ideologia de extrema-direita (fascista), contudo, há no seu interior uma multidão despolitizada manobrada por grupos específicos.

A questão se apresenta controvertida quando se busca analisar a responsabilidade do Estado em caso de condutas omissivas, ou seja, se quando se verificar uma omissão do Estado se aplicaria a adoção da teoria objetiva ou teoria subjetiva da responsabilidade civil. Por outro lado, há quem entenda que, em caso de omissão, a responsabilidade do Estado é subjetiva, ou seja, deve ser aplicada a teoria da culpa anônima ou da culpa do serviço público, na qual o Estado responde se estiver comprovado que o serviço não funcionou, funcionou atrasado ou funcionou mal.

No caso manifesto de omissão dos eventos de janeiro em Brasília, se o dano vier de atos ilícitos causados pelos agentes a serviço da istração Pública, a indenização será devida, pois o fato istrativo é de interesse público. Assim, a União tem o direito de exigir a indenização para que retorne ao seu perfeito estado de conservação o patrimônio público, além da responsabilização funcional.

Segregação processual de responsabilidade dos fatos multitudinários
A responsabilidade civil implica o direito do titular (União ou do particular) requerer a devida reparação de dano, em regra, se processa por meio de ação de indenização, onde a legislação separou as responsabilidades, que pode ser da seguinte forma:

1º Caso: Ação geral contra os depredadores
1.1. Pessoas físicas: A União Federal, via Advocacia Geral da União (AGU), move ação contra os depredadores.
a) órgão julgador: Supremo Tribunal Federal (STF);
b) legitimação: o advogado-geral da República; por representação do presidente da República; das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado e do presidente do Supremo Tribunal Federal;
c) instrumento: ação de responsabilidade civil com e pedido de indenização material e moral, e restrição de direitos;
d) objeto principal: litisconsórcio ivo ou ação judicial individual para aferição de culpa/dolo responsabilidade civil;
e) efeito imediato e específico: 1) bloqueio de valores materiais dentro das formas legais; 2) comunicação ao órgão pagador caso for servidor público; 3) restrição de direitos, se for o caso; 4) comunicação ao órgão responsável pela execução.

Esta hipótese da ação contra dos depredadores alcança a todos que de forma direta e indireta relacionam-se com as depredações de Brasília. Aplica-se o princípio constitucional da individualização da pena, ancorada na proporcionalidade dos fatos multitudinários.

A questão torna-se mais complexa quando aparece a conduta omissiva da União nos fatos multitudinários. No contexto de culpa da União em que não agiu quando deveria agir para evitar a depredação ou não obstou a sua ocorrência, foi omisso em seu dever de garantir a ordem pública, deve responder dentro de um juízo de proporcionalidade. "Não existe razão, de ordem lógica ou legal, para que se faça distinção entre as duas modalidades de conduta (comissiva ou omissiva) para o efeito de responsabilização do Estado" [1].

A defesa jurídica da istração Pública, em regra, não aceita a tese da conduta omissiva em seu dever de garantir a ordem pública.

1.1. Pessoas jurídicas: A União, via Advocacia Geral da União (AGU), move ação contra as empresas e associações, para aferir a devida responsabilização na organização, financiamento e e logístico (transporte, alimentação e "ajuda de custo" aos depredadores).
a) órgão julgador: Supremo Tribunal Federal (STF);
b) legitimação: o advogado-geral da República; por representação do presidente da República; das mesas da Câmara dos Deputados e do Senado e do presidente do STF;
c) instrumento: ação de responsabilidade civil com e pedido de indenização material e moral, e restrição de direitos;
d) objeto principal: litisconsórcio ivo ou ação judicial individual para aferição de culpa/dolo responsabilidade civil;
e) efeito imediato e específico: 1) bloqueio de valores materiais dentro das formas legais; 2) restrição de direitos, se for o caso; 3) comunicação ao órgão responsável pela execução.

Neste caso, cabe a devida responsabilização de empresas e associações que organizaram, financiaram e deram o e logístico aos eventos gravosos pela interpretação alargada do artigo 3º da Lei 9.605/98, já que é possível identificar a entidade organizadora e financiadora.

1.3. Inocentes úteis: Nesse caso, isenta-se de responsabilidade o manifestante que não causou nenhum dano, protegido pelo manto constitucional de liberdade de expressão. Nesta hipótese temos a sua simples exclusão de culpa ou no máximo a responsabilização subjetiva do agente causador do dano.

2º caso: Ação contra os agentes públicos em serviço por ação ou omissão
A AGU move ação contra agentes públicos em serviço por ação ou omissão, para aferição de responsabilidade.
a) órgão julgador: Justiça Federal de Brasília;
b) legitimação: o AGU; por representação do presidente da República; das mesas da Câmara e do Senado e do presidente do Supremo;
c) instrumento: ação de responsabilidade civil contra servidores públicos civis e militares com e pedido de indenização material e moral, e restrição de direitos; deputados e do Senado e do presidente do STF;
d) objeto principal: litisconsórcio ivo ou ação judicial individual para aferição de culpa/dolo responsabilidade civil por ação ou omissão;
e) efeito imediato e específico: 1) bloqueio de valores materiais dentro das formas legais; 2) comunicação ao órgão pagador; 3) restrição de direitos, se for o caso; 4) comunicação ao órgão responsável pela execução.

A União responsabilidade independe de culpa, mas para o agente público a responsabilidade depende de culpa: pois aquela é objetiva, esta é subjetiva e se apura pelos critérios gerais do Estatuto do servidor civil ou Estatuto Militar.

A responsabilidade objetiva da istração não exclui o abuso no exercício das funções por parte do agente público. Desde que a istração defere ou possibilita ao seu agente a realização de certa atividade istrativa (guarda de Palácio dos Três Poderes), assume o risco de sua execução e, caso este se omita, responderá civilmente pelos danos.

De outro lado, a confirmar-se omissão diante da eclosão das depredações onde a União deixou de empregar todos os meios necessários para prevenir danos aos Três Poderes, quando isto era possível, responderá o agente pelos danos daí advenientes.

3º caso: Ação contra os agentes públicos militares da ativa "fora de serviço" por ação
A AGU move ação contra os agentes públicos militares da ativa "fora de serviço" por ação.

a) órgão julgador: Justiça Federal ou Justiça Militar de Brasília, conforme o caso;
b) legitimação: o advogado-geral da República; por representação do presidente da República; das mesas da Câmara e do Senado e do presidente do Supremo;
c) instrumento: ação de responsabilidade civil contra servidores públicos militares com e pedido de indenização material e moral, e restrição de direitos;
d) objeto principal: litisconsórcio ivo ou ação judicial individual para aferição de culpa/dolo responsabilidade civil por ação, já que é proibido que o militar participe de manifestações de natureza político-partidária.
e) efeito imediato e específico: 1) bloqueio de valores materiais dentro das formas legais; 2) comunicação ao órgão pagador; 3) restrição de direitos, se for o caso; 4) comunicação ao órgão responsável pela execução.

Neste caso, a responsabilidade independe de culpa pois é objetiva, por expressa violação no regulamento militar (não participar de atividade política) e se apura pelos critérios gerais do Estatuto do servidor militar. Além de proibir o militar da ativa de participar de manifestações, o Regulamento Disciplinar do Exército (Decreto nº 4.346/2002) prevê outras restrições, como "tomar parte, em área militar ou sob jurisdição militar, em discussão à respeito de assuntos de natureza político-partidária ou religiosa". Também é proibido que o militar participe de "manifestações de natureza político-partidária" fardado. O militar também não pode "discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado".

4º caso: Ação dos particulares lesados contra a União
Neste caso, os particulares que tiveram seus bens depredados ou incendiados (veículos automotores) movem ação contra a União, e esta por via regressiva, move ação contra os depredadores para aferição de responsabilidade, culpa/dolo e indenização. O Estado indeniza a vítima; o agente indeniza o Estado, regressivamente.

Para se obter a indenização, basta o lesado acionar a Fazenda Pública e demonstrar o nexo causal entre o fato lesivo e o dano, bem como o seu montante. Comprovados os dois, surge então a obrigação de indenizar, que pode ser o dano emergente e os lucros cessantes. A indenização por dano moral também é cabível.

Solução jurídica possível
A Constituição não autoriza criminalizar os movimentos sociais por ser a essência das pulsações do Estado democrático, mas autoriza a condenação dos seus integrantes, seja pessoa física ou jurídica, de forma individualizada quanto a culpa e da pena (artigo 5º, XLVI, CF), e pelos atos produzidos por agentes públicos (artigo 37, §6º CF). Desta forma, o sistema jurídico não está autorizado a criminalizar os movimentos sociais, mas as pessoas físicas ou jurídicas que perpetram depredações. Dentre as possíveis soluções judiciais está na análise concreta dos fatos no uso da hermenêutica jurídica, saindo da análise genérica da responsabilidade civil.

Não obstante a evolução histórica da responsabilidade civil do Estado, ainda não há ainda uma legislação específica que regule a responsabilização do Poder Público pelos danos decorrentes de fatos multitudinários. No Brasil, não há lei que expressamente reconheça indenização às vítimas de danos causados por multidões (PL 5952/13). Para sustentar essa tese em um processo recorre-se ao que existe na doutrina, na jurisprudência e na Constituição.

Cabe lembrar que a responsabilidade civil do Estado nos casos de atos de multidões não é inovação no ordenamento jurídico comparado que oferecem legislação que garante o direito de indenização às vítimas de danos causados por atos multitudinários: na Argentina, França, Itália, EUA  e Portugal.

A jurisprudência há muito tempo analisa a questão, entretanto, constatou-se que ela oscila entre a responsabilidade estatal e a não responsabilidade. A doutrina também é extremamente dividida acerca do tema, uma parte da doutrina entende que o Estado não tem como responder por tais danos, eis que este não gerou tais prejuízos.

Na solução judicial do caso concreto usam-se os instrumentos disponíveis do sistema de justiça, com o uso do devido processo legal, do contraditório, da interpretação dos fatos, da produção da prova, da defesa jurídica das partes. Quanto à condenação, será aferido o grau e a intensidade de culpa apenas no caso concreto, aferido no processo judicial entre provas e perícias.

Considerações Finais
Na democracia ite-se as manifestações, mas não se aprova a violência. Podem-se fazer protestos, mas responde juridicamente quem abusar deste direito. Esta é regra do jogo democrático. Erra quem defende a depredação, confundindo-a como patriotismo ou como direito de quebra-quebra. As pessoas que perpetram fatos multitudinários argumentam que não são responsáveis pelas depredações e que estas são decorrentes do uso dos recursos constitucionais da liberdade de expressão.

Assim, por fim, quem responde civilmente pelas depredações em Brasília? Todos que causaram danos, conforme o grau e a intensidade da culpa, seja o Estado, as empresas, as associações responsáveis em litisconsórcio ou individualmente. Trata-se de uma responsabilidade estatal extracontratual, de cunho patrimonial com a reparação de danos, decorrentes de condutas lícitas ou ilícitas, comissivas ou omissivas, dos agentes públicos.

A interpretação e aplicação no caso das manifestações públicas e dos fatos multitudinários perpetrados por pessoas jurídicas seria uma interpretação alargada da tipicidade do artigo 3º. da Lei 9.605/98. A teoria geral das obrigações ministra ser o fundamento genérico do artigo 927, do Código Civil e não a leitura exegética do artigo 37, §6º, da Constituição da responsabilidade do Estado pelos danos causados por fatos multitudinários.

Diante do cenário turbulento de mudanças, e ao mesmo tempo, vazio de ideias e novas proposições, prefere-se continuar acreditando na necessidade de novas utopias à restaurar a esperança de uma sociedade mais justa.

A questão relativa à natureza jurídica da responsabilidade do Estado por fatos multitudinários é complexa e agrava-se pela ausência normativa no Brasil, que deve ser solvida pela hermenêutica. Pela gravidade dos fatos e pela complexidade da matéria deve sim ser solvida com lei integrativa a ser aprovada pelo Congresso.

Por fim, as possíveis soluções judiciais estão na análise concreta dos fatos no uso da hermenêutica jurídica saindo da análise genérica da responsabilidade civil, já que esta não funciona pelas especificidades dos fatos e pela multiplicidade de variáveis.

Apresenta-se como solução judicial dentro do devido processo legal a devida aferição de culpa e pena, respectiva, incorporando na análise da matéria — o risco democrático — para a garantia do Estado de direito, para que isso nunca mais se repita.

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[1] GANDINI, João Agnaldo Donizeti. Responsabilidade do estado por movimentos multitudinários: sua natureza objetiva.
Brasília: Revista CEJ, 18, p. 125-135, jul/set. 2002, p. 134.

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