Business improvement district: natureza, instituição e aplicabilidade no Brasil
16 de abril de 2023, 6h35
Um dos grandes desafios da istração pública municipal é o desenvolvimento e gerenciamento eficaz de instrumentos urbanísticos de cogestão para a tomada de decisões sobre a regulação urbana.
No Brasil, uma série de instrumentos de gestão urbanística foram regulamentados no Estatuto da Cidade, merecendo destaque, a previsão de planos setoriais e a operação urbana consorciada e, em especial, a gestão orçamentária participativa. Este último instrumento, em muitos estudos, revelaram que o orçamento participativo é ineficaz, diante da pouca disponibilidade orçamentária e escolha de temas poucos importantes, diante da ampla margem discricionária do poder público municipal nessa definição. Não apenas isso, muitas vezes, as soluções apresentadas pelos interessados em determinada área urbana nem sempre são harmoniosas com os interesses políticos e prioridades orçamentárias.
Nesse contexto, para conceber um modelo de cogestão público-privada na gestão de interesses urbanísticos, foi pensado, no cenário internacional o business improvement district, ou BID, que é um modelo singular de contrato, o qual visa a cooperação entre o setor público e o setor privado diretamente afetado para permitir a gestão urbanística privada de determinada área, visando o seu desenvolvimento habitacional ou econômico.
É possível encontrar esse modelo de parceria em diversos países desenvolvidos, como Estados Unidos e Inglaterra. Nesse último, nota-se que as primeiras experiências já se iniciaram nos anos 2000, com a "Circle Initiative" [1]. No Brasil, por outro lado, é possível diagnosticar que houve modelo de parceria inspirada no BID, como é o caso do projeto "Reviver Centro", na cidade do Rio de Janeiro [2].
Contudo, não existe no ordenamento jurídico brasileiro a institucionalização jurídica desse tipo de modelo de parceria, que envolve determinadas particularidades que o distancia de outros modelos já institucionalizados. Isso nos faz questionar sobre a natureza jurídica do instituto e se seria inviável a sua utilização no Brasil sem a prévia regulamentação federal [3].
Afinal, quais são as particularidades do BID que o torna tão singular?
O BID possui o objetivo primordial em proporcionar a valorização dos locais nos quais é implantado e/ou melhorar as condições de convivência na área de atuação. Para isso, diversas medidas podem ser adotadas para a formulação do plano de atuação, como a melhora da segurança local, a correta manutenção da iluminação, o adequado recolhimento de lixo e resíduos sólidos e as atividades urbanísticas para melhorar o aspecto visual – como a poda das vegetações e a limpeza de monumentos — também podendo atuar de forma complementar nos serviços já fornecidos. Com o BID, busca-se melhorar vários indicadores de convivência no local objeto de gestão privada, do ponto do desenvolvimento estético, da segurança, de utilidades públicas, serviços públicos e do comércio local, que agregam uma melhor qualidade de vida local e maior valorização imobiliária.
Por esse motivo, a autoridade deve estar diretamente envolvida no planejamento das políticas e planos a serem adotados [4], bem como acompanhar todo processo de instituição do mecanismo — ou até mesmo participar da gestão. Nesse caso, também é fundamental a participação daqueles afetados pelo projeto em debates organizados, inclusive com votações, buscando identificar as melhores medidas para alcançar os objetivos almejados, notadamente viabilizando a participação popular por meio da capilarização do atendimento das demandas locais, mas também explanando sua dependência do engajamento da população a ser atendida.
E o especial no BID é que essa conciliação de interesses se dá em razão de um contrato em que se delega poderes de gestão urbanística para uma entidade privada, a qual tem a prerrogativa de recolher e gerenciar uma espécie de taxas locais, a serem cobradas diretamente dos usuários beneficiários pela cogestão.
Assim, além de ter que haver uma espécie de contrato para "delegação" de poderes locais e prerrogativas de planejamento urbanístico, a instituição de uma nova espécie de tributo, a ser cobrado diretamente dos beneficiários, é estrutural para esse modelo. O orçamento oriundo dessa arrecadação específica na maioria das experiências constatadas no exterior, é istrado por instituições privadas sem fins lucrativos, a partir da criação de um fundo para essa finalidade [5].
Diante dessas particularidades de sua natureza jurídica, é natural o questionamento sobre a possibilidade de aplicação do modelo no Brasil, em vista dos institutos jurídicos já existentes. A solução para esses questionamentos é fundamental, na medida em que devem guiar a análise de viabilidade jurídica do modelo, diante de instrumentos de concessão, termo de parceria ou contrato de prestação de serviços e outros modelos urbanísticos já preexistentes.
Primeiro, não se pode afirmar que o BID se assemelha às operações urbanas consorciadas. Este instituto, regulamentado pelo no artigo 32, do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), define-se por um "conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental". Por essa definição, é fácil perceber que é inadequada a equiparação jurídica das operações urbanas consorciadas com o BID, tendo em vista que este modelo é gerenciado pelos particulares, através de renda tributária, enquanto aquele depende incisivamente da participação do poder público.
Segundo, também não se pode afirmar que o BID seria uma espécie de modelo de "Gestão Democrática da Cidade", nos termos do artigo 43, do Estatuto da Cidade. A participação democrática na gestão municipal (artigo 43), se dá através de órgãos colegiados, audiências públicas etc. O que há no BID é uma gestão direta privada, não para fins participativos, mas através de um instrumento contratual de gestão.
Terceiro, existe uma dificuldade em se equiparar o BID como uma espécie de concessão comum, ou parceria público-privado, em suas modalidades de concessão istrativa ou patrocinada. Isto porque é evidente que inexiste a cobrança de tarifa ou contraprestação pública pela gestão de um serviço público ou equipamento público. O que há é verdadeira delegação de poderes istrativos para uma entidade privada, que é financiada por tributos, e não tarifas, cobrados e gerenciados diretamente pelo parceiro privado.
Por fim, pode-se se discutir seu enquadramento como uma parceria convenial, tal como realizada com entidades do terceiro setor, por meio de acordo de cooperação (inciso VIII-A, artigo 2º, Lei nº 13.019/2014), o que nos parece ser um instrumento jurídico mais próximo e adequado à natureza e regime jurídico do BID, em vista da natureza não lucrativa do parceiro privado e da convergência de interesses das partes contratantes (ausência de caráter sinalagmático).
Todavia, a estruturação do BID através de uma parceria voluntária com uma Organização da Sociedade Civil (Lei Federal nº 13.019/2014) ou Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) — Lei Federal nº 9.790/1999 — traz inúmeros questionamentos de adequação jurídica. Por exemplo, questiona-se: quais os serviços públicos poderiam ser executados e/ou aprimorados pelo BID? Haveria legitimidade convenial para decisões privadas no âmbito do planejamento urbanístico, sem a participação direta do setor público? Como ficaria regulamentado o poder de fiscalização, aplicação de multas a usuários e de realização de atos materiais para notificações privadas de inconformidade, como uma espécie de "autuação" típica do poder de polícia? Poderia o parceiro privado ser titular da capacidade tributária ativa, isto é: poderia cobrar tributos?
Esses e os outros questionamentos — ainda que se note algumas intersecções entre o Direito brasileiro e a modelagem pensada para o BID — prescindem, para serem respondidos, ao nosso ver, da adequada implementação de regulamentação própria para esse instrumento. Difícil imaginar tanta delegação de funções públicas sem uma previsão legal específica, editada pelo ente federativo competente.
É inegável que a adoção do modelo no Brasil proporcionaria inúmeros benefícios para a população, tendo em vista que a descentralização das competências executivas tende a beneficiar o atendimento mais adequado das demandas públicas, ainda mais levando em consideração a diversidade urbana brasileira e os altos números populacionais. Contudo, há necessidade de discussão legislativa para definir, primordialmente, a limitação de suas atividades, sua natureza jurídica, o modelo de cooperação a ser adotado e a instituição da espécie tributária para seu financiamento.
O BID, certamente, é um modelo bastante tentador para o desenvolvimento urbanístico local, porém, não vemos, ainda, arcabouço jurídico para sua efetiva utilização, sem a prévia deliberação legislativa federal para delimitação das prerrogativas públicas íveis de serem delegadas para o parceiro privado, bem como para a capacidade municipal na criação de tributos específicos para o financiamento do modelo.
Cabe a nós desenvolvermos o debate sobre este interessante modelo para que entre na pauta da agenda legislativa.
Referências bibliográficas
UNITED KINGDOM. Information and guidance on Business Improvement Districts. Documento on line. Disponível em: <https://www.gov.uk/guidance/business-improvement-districts>. o em 20/12/2022.
ASSOCIATION TO LONDON GOVERNMENT. Local Authority Guide To Business Improvement Districts. Documento on line. Disponível em: <https://web.archive.org/web/20111008061849/http://www.ukbids.org/files/files/LA-BIDs.pdf> . o em 20/12/2022.
ÁVILA, Paulo Coelho. Desenvolvimento urbano por meio dos Business Improvement District. Documento on line. Disponível em: <https://conjur-br.diariodoriogrande.com.br/br/989664/desenvolvimento-urbano-por-meio-dos-business-improvement-district> o em 20/12/2022
VALE, Murilo Melo. A Natureza Jurídica do Princípio Democrático. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2018.
[1] Local Authority Guide to Business Improvement Districts. Disponível: https://web.archive.org/web/20111008061849/http://www.ukbids.org/files/files/LA-BIDs.pdf. o em 20/12/2022. Pág. 3
[2] Magalhães, Luiz Ernesto. Conheça projeto inspirado nos ‘Business Improvement Districts’ de Nova York e Londres para requalificar o Centro do Rio. Disponível: https://oglobo.globo.com/rio/conheca-projeto-inspirado-nos-business-improvement-districts-de-nova-york-londres-para-requalificar-centro-do-rio-1-25249990 o em: 06/01/2023.
[3] Ex vi o princípio da legalidade istrativa (art. 37, caput, da CR88) e competência privativa da União legislar sobre normas gerais de contratos istrativos e de instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano (art. 21, XX e art. 22, XXVII, da CR88)
[4] Local Authority Guide to Business Improvement Districts. Pág. 4.
[5] Business Improvement Districts. Information and guidance on Business Improvement Districts. Disponível: https://www.gov.uk/guidance/business-improvement-districts. o em 20/12/2022. Ponto 4.
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