Opinião

Complexidade da definição dos ativos virtuais: do caso SEC vs. Rippley (EUA)

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2 de agosto de 2023, 17h17

Repercute, no âmbito internacional, decisão proferida nos Estados Unidos relativa à ação judicial ajuizada pela Securities and Exchange Comisson (SEC) — órgão equivalente à Comissão de Valore Mobiliários (CVM) — contra a sociedade Ripple Labs, Inc. (Ripple), emissora do "token" denominado XRP, uma criptomoeda utilizada para transferências internacionais e como investimento.

Na referida ação judicial, a SEC alega que a Ripple negociou o ativo XRP como valor mobiliário (mais especificamente, como contrato de investimento coletivo), sem a observância das regras da Seção 5 do "Securities Act", norma que regulamenta a negociação de valores mobiliários e que exige, em especial, o registro da operação no órgão supervisor americano; enquanto a Ripple, em seu turno, argumenta que o XRP não teria natureza de valor mobiliário e constituiria um ativo comum, como ouro ou prata, por exemplo.

Este artigo analisa brevemente a decisão judicial proferida nos Estados Unidos, com o escopo de evidenciar como debates a respeito da natureza jurídica de tokens (representação digital de ativos) tendem ocorrer no Brasil, mormente após a vigência da Lei n° 14.478, de 21 de dezembro de 2022, marco legal dos ativos virtuais. Ademais, o complexo assunto seria preponderante à delimitação das competências da CVM e do Banco Central (BC), a quem o Decreto n° 11.563, de 13 de junho de 2023, que regulamenta a Lei n° 14.478, de 2022, atribuiu o dever de regular a prestação de serviços de ativos virtuais e as entidades que atuam no setor.

A decisão norte-americana, ainda não definitiva, dividiu em categorias as negociações do ativo XRP, efetuadas pela Ripple, das quais se destacam, para fins do presente artigo, as: 1) negociações com investidores institucionais, que financiariam os negócios da sociedade; e 2) negociações em prestadoras de serviços de ativos virtuais (as denominadas "exchanges"). Para verificar se a operação caracterizaria a oferta de valor mobiliário, a juíza aplicou o denominado "Teste Howey", parâmetro criado pela Suprema Corte dos EUA, no caso SEC contra W.J. Howey CO., de 1946, que delimita as características de um contrato de investimento coletivo.

Em síntese, a decisão asseverou que as negociações com investidores institucionais constituiriam oferta de contrato de investimento coletivo sem o devido registro na SEC, em afronta ao Securities Act, principalmente porque tais investidores teriam adquirido o XRP com a expectativa de que aufeririam ganhos econômicos derivados dos esforços e da atividade desempenhada pela Ripple. Contudo, a decisão compreendeu que as negociações nas exchanges não exigiriam o registro na SEC, uma vez que os compradores do XRP não teriam sequer conhecimento de quem seriam os vendedores do ativo (portanto, não teriam comprado o XRP com o escopo de investir na Ripple).

ando ao âmbito nacional, é importante observar, em primeiro lugar, que a Lei n° 14.478, de 2022, buscou delimitar as competências istrativas do BCB e da CVM. Nesse sentido, a lei previu expressamente a sua não incidência sobre ativos representativos de valores mobiliários — que sequer podem ser considerados ativos virtuais (artigo 3º, inciso IV) — e a subsistência das competências da CVM (artigo 1º, parágrafo único). Em seu turno, o recente Decreto n° 11.563, 2023, conferiu ao BCB a atribuição de regular a prestação de serviços de ativos virtuais e as entidades que atuam no setor.

Ademais, no artigo 3º da Lei n° 14.478, de 2022, esboça-se um conceito de ativo virtual, baseado principalmente na definição de instrumentos que não constituem ativo virtual, a exemplo da moeda eletrônica referida na Lei n° 12.865, de 9 de outubro de 2013, e dos já mencionados valores mobiliários. Assim, ainda que haja a "tokenização" ou representação digital de um contrato de investimento coletivo (valor mobiliário previsto no artigo 2º, inciso IX, da Lei n° 6.385, de 7 de dezembro de 1976), para viabilizar transações em tecnologia de registro distribuído ("blockchain"), aquele contrato não poderia ser considerado um ativo virtual, nos termos da Lei n° 14.478, de 2022.

Apesar dos esforços do legislador para trazer clareza à disciplina dos ativos virtuais, percebe-se que a própria complexidade desses instrumentos — que podem servir a diferentes funções, como pagamento, o o a produtos ou serviços ou a mera representação de outros ativos —, dificulta uma conceituação precisa. É, nesse contexto, que surgem debates como o travado entre a SEC e a Ripple e que se vislumbra, no âmbito nacional, possíveis pontos de contato entre as competências atribuídas à CVM e ao BCB.

De modo a delimitar o seu campo de atuação, a CVM, antes mesmo da edição da Lei n° 14.478, de 2022, expediu o Parecer de Orientação n° 40, de 2022, que define quando um token é referenciado a um valor mobiliário. Como as decisões judiciais norte-americanas, a CVM utiliza o teste Howey para a avaliação e, assim, compreende que um contrato de investimento coletivo é valor mobiliário quando houver: 1) investimento – aporte em dinheiro ou bem suscetível de avaliação econômica; 2) formalização — título ou contrato que resulta da relação entre investidor e ofertante, independentemente de sua natureza jurídica ou forma específica; 3) caráter coletivo do investimento; 4) expectativa de benefício econômico – seja por direito a alguma forma de participação, parceria ou remuneração, decorrente do sucesso da atividade referida no item 5) a seguir; 6) esforço de empreendedor ou de terceiro — benefício econômico resulta da atuação preponderante de terceiro que não o investidor; e 7) oferta pública — esforço de captação de recursos junto à poupança popular.

A CVM reconhece, no entanto, que os parâmetros fixados no parecer não servem para consolidar uma definição taxativa dos tokens existentes e conclui que a sua atuação depende da análise dos casos concretos e suas particularidades.

Ao Banco Central incumbirá principalmente a edição de regras voltadas à atuação das prestadoras de serviços de ativos virtuais, como a autorização para funcionamento, mas parece inevitável que, no desempenho de suas atribuições de regulador do setor, tenha que avaliar o enquadramento de determinado instrumento como ativo virtual, conforme a Lei n° 14.478, de 2022. Assim como a atuação da CVM, é possível que as avaliações porventura efetuadas pelo BC venham a ocorrer caso a caso, com a necessidade de se examinar a essência econômica dos ativos negociados por prestadores de serviços.

Nesse cenário desafiador, instrumentos de cooperação e de diálogo entre os reguladores configurariam importantes ferramentas para evitar posicionamentos conflitantes, tendentes a gerar insegurança no mercado e até mesmo inibir o seu desenvolvimento. Ademais, ainda que se reconheça a dificuldade de conceituação dos ativos virtuais, seria oportuno avançar no estabelecimento formal das balizas ou parâmetros que guiarão as decisões dos reguladores.

Percebe-se, assim, que a complexidade do tema em análise não se restringe ao campo tecnológico e, ao atingir a própria definição dos ativos virtuais, afeta os limites da atuação das entidades reguladoras. Dessa forma, é importante a avaliação da adoção de medidas de cooperação pelos reguladores e do desenvolvimento de regulamentação que garanta mais segurança ao desenvolvimento do setor.

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