Um decálogo para Millôr Fernandes
16 de agosto de 2023, 8h50
1. Antes de mais nada, Millôr era um excelente mau desenhista. Eu, que desenho muito melhor e muito pior que Millôr Fernandes, posso afirmar que nunca vi desenhos feios tão bonitos; impecavelmente imperfeitos, desarmonicamente belos e apolineamente dionisíacos. A arte de Millôr Fernandes só se deixa apanhar por oxímoros.
2. Em 1974-75, meus pais assinavam a revista Veja. A edição de 28 de maio de 1975, com Sílvio Santos na capa — "o senhor Senor Abravanel" — também trazia uma entrevista com Millôr, humorista da casa desde 1968. Li não sei quantas vezes aquelas três páginas amarelas. A parte que eu mais gostava era quando ele definia cada um de seus colegas com uma frase, embaixo dos respectivos desenhos: Jaguar, Fortuna, Ziraldo ("o mais técnico de todos nós"). Essa revista mudou minha vida: nunca mais esqueci que o nome de Sílvio Santos era Senor Abravanel.

Spacca
3. A página dupla do Millôr na Veja (1968-1982) era como uma revista dentro da revista. Sempre foi senhor absoluto dos seus espaços na imprensa e os preenchia com liberdade e inventividade irrestritas. Tinha seções, crônicas, máximas, provérbios, poemas, cartuns, as "Fábulas Fabulosas", o nome do autor em perspectiva cubista e o subtítulo "enfim, um escritor sem estilo" no estilo inimitável de Millôr Fernandes. Que, se tivesse estilo, seria imitável.
4. Millôr tinha duas datas de nascimento: 27 de maio (a oficial) e 16 de agosto (quando efetivamente veio a lume). A primeira era plausível: geminianos são bons de papo e Millôr vivia no mundo das palavras. Mas só um leonino ia a declaração abaixo:
"É um dos orgulhos que tenho, há muitos, muitos e muitos anos, que eu, apesar de ser uma pessoa sozinha, trato com as pessoas com quem eu trabalho — quero dizer, com os big shots — de potência para potência."
Roda Viva, 1989.
5. Lucidez implacável. Um dito popular, um lugar-comum que caísse sob seu rigoroso e descompromissado (olhaí, mais um oxímoro) exame lógico-humorístico jamais seria o mesmo. A singela frase "minha vida é um livro aberto", por exemplo, foi irrevogavelmente desconstruída, no instante em que Millôr observou: "depende do livro. Foi escrito em sânscrito? É de física nuclear"?

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6. Quando, em 1985, ganhei o concurso na Folha de S.Paulo para novos talentos, antes mesmo de ser contratado pelo jornal, fui ao sebo e comprei alguns livros do Millôr, "Trinta Anos de Mim Mesmo", "Que País é Este?" e "Diário da Nova República", para dali extrair exemplos e lições do mestre. Minhas pretensões eram modestas: eu só queria ser inteligente como o Millôr, engraçado como o Glauco, crítico como o Henfil, bonito como o Angeli e imbrochável como o Ziraldo. Não necessariamente nessa ordem.
7. Millôr recusava o título de "pensador" e não por modéstia (defeito que, como vimos em #4, ele não possuía). Apesar de eu o achar parecidíssimo com Voltaire (autor de um "dicionário filosófico" cheio de graça), Millôr não era filósofo. Quando lemos, de sua lavra, uma análise cristalina da realidade contemporânea ou uma reflexão penetrante sobre o sentido da existência e os enigmas do universo, sempre no final o humorista sabota a coerência e revela o caos. Millôr perde a metafísica mas não perde a piada. Foi, portanto, um humorista, ou o filósofo mais honesto que jamais existiu.
8. Mas o terceiro mandamento do "Decálogo do Verdadeiro Humorista" (em O Pif-Paf / O Cruzeiro, 1955 e Trinta Anos de Mim Mesmo, 1972) delimitou, com argúcia filosófica, o campo e a matéria-prima do verdadeiro humorista:
"Para escrever, o humorista deve escolher sempre o assunto mais sério, mais triste, mais chato, ou mais trágico. Só um falso humorista escreve sobre assuntos humorísticos."

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9. Certa vez, trocou fluídos corporais à distância com Chico Buarque num bar do Leblon. Também arremessou contra o compositor o que tinha na mesa, errando todas. "Não bato em velho", justificou Chico. "Não acredito em idealista que lucra com o seu ideal", alfinetou Millôr. Duelo de titãs. Mais um exemplo do "potência x potência" (ver #4).
10. Enfim, um escritor lapidar. Hoje, mais do que nunca.
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