Opinião

O direito dos museus sobre as fotos de suas coleções

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18 de agosto de 2023, 6h35

Em interessante acórdão datado de 23/12/2016, o Conselho de Estado francês, órgão de cúpula da justiça istrativa, estabeleceu sua tese jurídica acerca do direito dos museus de negarem a fotógrafos particulares o o às suas obras para fins comerciais. No caso analisado, a requerente, uma empresa de fotografia profissional, alegava ter direito a tomar retratos de algumas obras do Museu de Belas Artes de Tours, que seriam depois usadas para seu proveito econômico.

O prefeito, autoridade competente para o caso na França, implicitamente negou seu pedido, o que levou à discussão da lide no tribunal istrativo de Orléans. Após intensa batalha no contencioso istrativo francês, chegou a vez do Conselho de Estado de pronunciar a palavra final.

Tânia Rêgo/Agência Brasil
O Museu Nacional, no Rio de Janeiro
Tânia Rêgo/Agência Brasil

Para compreender a decisão, será preciso referir-se primeiramente ao Código Geral de Propriedade das Pessoas Públicas, que estabelece as normas gerais definidoras do patrimônio público na França, bem como as norteadoras de seu uso. As coleções dos museus, conforme o artigo L2112-1, 8º [1], estão compreendidas entre os bens públicos móveis, e na sua utilização predomina o princípio da supremacia do interesse público, explicitado no artigo L2121-1: "Os bens sob domínio público são utilizados de acordo com sua afetação à utilidade pública. Nenhum direito, de nenhuma natureza, será consentido se trouxer obstáculo a esta afetação". Dispõe, ainda, no artigo L2122-1, que qualquer utilização de bem público por particular que ultrae o direito de uso que pertence a todos será precedida por autorização da autoridade istrativa competente.

Dadas tais disposições legais, resta saber se o registro em fotografia de alta qualidade para uso profissional configura uso privativo de bem público. Se, de fato, tal atividade se enquadra na disposição legal, está dentro do juízo de conveniência e oportunidade do poder público conceder ou negar a autorização de uso. Se não, a ação do prefeito configura excesso de poder.

Alegou a parte autora que não, pois o registro fotográfico não impediria a fruição dos bens culturais pelos visitantes do museu. Não foi este, porém, o entendimento do Conselho de Estado:

"Tal qual foi decidido pelo Conselho de Estado no contencioso nº341173 de 29/10/2012, a tomada de registros de obras pertencentes às coleções de um museu público, com fins de comercialização das reproduções fotográficas assim obtidas, deve ser visto como utilização privativa de bem público móvel, implicando a necessidade, para aquele que pretende assim proceder, de obter uma permissão tal como previsto no art. L2122-1 do Código Geral de Propriedade das Pessoas Públicas. Esta autorização poderá ser concedida desde que, em virtude do art. L2121-1 deste código, esta atividade seja compatível com a afetação das obras ao serviço público cultural e sua conservação. É, porém, permitido à coletividade pública que afeta as obras constantes na categoria de bens mencionados no 8º do art. L2112-1 do mesmo código — dentro do respeito ao princípio da igualdade e sob o controle do juiz [istrativo] do excesso de poder — não autorizar um uso privativo deste bem público móvel.
[…] os motivos propostos pela comuna para justificar a decisão implícita de recusa impugnada pela sociedade requerente consistem em sua pretensão de conservar um controle sobre as condições nas quais são criadas e difundidas as reproduções fotográficas das obras expostas no museu; e de que uma difusão excessiva destas reproduções poderia prejudicar a atratividade do museu e lesar sua frequentação pelo público. Ao julgar que tais motivos, que dizem respeito ao interesse do domínio público e de sua afetação, eram de natureza apta a fundamentar legalmente a decisão, a corte não cometeu erro de direito e não motivou insuficientemente seu acórdão."

Acertadamente reconheceu o conselho que este proveito do particular configura uso privativo. Com efeito, embora as obras dos museus sejam de domínio público, a exploração econômica da propriedade material dos bens culturais é exclusiva do seu titular — neste caso, o poder público. A cessão deste direito, ainda que parcial, situa-se dentro do juízo de conveniência e oportunidade da istração. Do contrário, a difusão dos bens culturais traria consigo uma exclusividade de o a eles por meio dos particulares que os registram — dado que as fotografias, por sua vez, não seriam de domínio público, mas estariam sob o direito autoral do fotógrafo ou da pessoa jurídica que a encomendou, segundo o parecer dos julgadores.

Em sentido semelhante, o Tribunal Civil de Florença decidiu há alguns meses pela ilicitude do uso da imagem do Davi de Michelangelo sem a prévia autorização da autoridade competente, reconhecendo um direito à imagem do patrimônio nacional [2] — autorização que deverá, ordinariamente, ser obtida pelo pagamento de taxas, se a utilização for para fins comerciais, uma aplicação direta dos artigos 107 [3] e 108 [4] do Código dos Bens Culturais (Decreto Legislativo 42/2004).

Embora o texto legal permita ao gestor público uma certa discricionariedade para decidir se irá ou não cobrar taxa de uso, essa abertura foi significativamente reduzida pelo Estado italiano com o Decreto Ministerial nº 161, de 11/04/2023, do Ministério da Cultura, que estabeleceu taxas mínimas para o uso de bens culturais, ainda que de domínio público; além de ter alargado significativamente o conceito de "fim comercial" que exigirá compensação pecuniária ao poder público. A norma atual considera que exercem atividades de fins comerciais, por exemplo, revistas de divulgação cultural e científica que não sejam inteiramente gratuitas, o que gerou grande repercussão na sociedade civil italiana e europeia pela sua indevida restrição do o à cultura e da liberdade de expressão [5].

Entretanto, não é convincente o argumento de que a difusão gratuita de reproduções digitais fiéis das obras dos museus, principalmente para uso pessoal e acadêmico, levariam à redução de sua frequentação. A Google Arts and Culture, por exemplo, uma iniciativa sem fins lucrativos, tem feito parcerias bem sucedidas com inúmeros museus pelo mundo para concretizar o o à cultura a qualquer pessoa com conexão à internet, o que de modo algum lesou as instituições parceiras — várias delas, aliás, brasileiras.

Convém, por isso, que as reproduções fotográficas das obras dos museus sejam difundidas pelas próprias autoridades, seja gratuitamente em formato digital para usos não-comerciais, seja em forma impressa com preços íveis, como aliás vários museus mundo afora já o fazem, como o Museo del Prado e o Rijksmuseum. Este último alcançou grande sucesso em razão da ampla difusão das obras em seu acervo pela plataforma Rijkstudio, que permite a qualquer usuário o de uma versão em alta resolução das suas obras para qualquer uso, inclusive sua adaptação com propósitos lucrativos. istrativamente correta, a política dos museus de Tours e Florença peca, ainda, na promoção do direito à cultura.

 


[1] "Sem prejuízo das disposições aplicáveis em matéria de proteção dos bens culturais, fazem parte do domínio público móvel da pessoa pública proprietária os bens que apresentam interesse público do ponto de vista da história, da arte, da arqueologia, da ciência ou da técnica, notavelmente: […] 8º As coleções dos museus;"

[2] CASO, Roberto. Michelangelo’s David and cultural heritage images. The Italian pseudo-intellectual property and the end of public domain. Kluwer Copyright Blog. Disponível em: https://copyrightblog.kluweriplaw.com/2023/06/15/michelangelos-david-and-cultural-heritage-images-the-italian-pseudo-intellectual-property-and-the-end-of-public-domain/. o em: 8 de Agosto de 2023.

[3] "O Ministério, as regiões e outras entidades públicas territoriais podem permitir a reprodução, bem como o uso instrumental e temporário de bens culturais sob sua custódia, ressalvadas […] as normas de direitos autorais."

[4] "As taxas de concessão e as contrapartidas relacionadas à reprodução de bens culturais são determinadas pela autoridade que possui a custódia dos bens, levando em consideração: […] d) o uso e o propósito das reproduções, bem como os benefícios econômicos obtidos pelo requerente."

[5] Vide: Cultural heritage photo fees, associations appeal to minister. Finestre sull'Arte. Disponível em: https://www.finestresullarte.info/en/policy/cultural-heritage-photo-fees-associations-appeal-to-minister. o em: 8 de Agosto de 2023.

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