Opinião

Punição da pobreza e desperdício de recursos públicos

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  • é mestre em Direito Justiça e impactos na Economia pelo Cedes (Centro de Estudos de Direito Econômico e Social 2023). Possui graduação em Direito pela USP (Universidade de São Paulo 2003. É juiz de Direito no TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) desde 2010.

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26 de agosto de 2023, 6h08

Esta ConJur publicou, no último dia 20 de agosto, notícia sobre agravo de execução penal julgado pela C. 13ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), em que se extinguiu a punibilidade de uma ex-detenta, independentemente do pagamento de uma pena de multa imposta a ela, por conta da hipossuficiência da parte[1].

A relevância e o impacto do assunto no dia a dia forense, bem como sobre milhares de sentenciadas e sentenciados, demandam sejam trazidos alguns dados para debate.

A alteração introduzida no Código Penal pelo "pacote anticrime" (Lei 13.964/2019), na esteira do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da ADI 3.150, determinou que a execução das penas de multa se dê "perante o juiz da execução penal". Até então, tais cobranças vinham sendo feitas pela Procuradoria do Estado, nas Varas de Execução Fiscal.

Conforme dados da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, apenas 6.833 execuções fiscais haviam sido ajuizadas, nas Varas de Execuções Fiscais, durante a vigência da Lei 9.286/1996.

Com a alteração da competência, e ada a titularidade ao Ministério Público, a partir de 2019 (dados de 31/03/2023) foram propostas 208.022 execuções de penas de multa nas Varas com competência de execução criminal no estado de São Paulo.

Em outras palavras, enquanto no período de mais de vinte anos (de 1.996 até 2.019) eram 6.833 processos a cargo do Poder Judiciário, em pouco mais de três anos, com a mudança de entendimento formulada pelo Supremo Tribunal Federal e a consequente modificação do Código Penal, esse acervo teve um aumento de quase 3.000% [2].

Apesar da avalanche de novos processos, o valor anual, no período entre 2017 e 2021, de arrecadação para o Fundo Penitenciário do Estado de São Paulo decorrente das multas criminais (artigos 49 e 50 do Código Penal, de acordo com a Lei Estadual n° 9.171 de 31/05/1995, artigo 2º, item VI) foi o seguinte, segundo dados do Sistema Siafem: R$ 8.842.830,03 (2017), R$ 7.010.806,91 (2018), R$ 8.313.249,70 (2019), R$ 5.038.147,70 (2020) e R$ 6.731.394,09 (2021).

Como se percebe, o aumento exponencial de cobranças judiciais não teve qualquer impacto na arrecadação, a demonstrar que a mudança elevou a sobrecarga no sistema de Justiça sem qualquer melhora prática.

Partindo-se do pressuposto que o custo de uma execução é de R$ 4.685,39[3], quando a cobrança cabia à Procuradoria Geral do Estado, as execuções custavam ao Poder Judiciário do Estado de São Paulo R$ 32.015.269,87 (6.833 execuções x R$ 4.685,39). Esse valor é ligeiramente menor que a soma da arrecadação dos últimos anos ao Fundo Penitenciário do Estado de São Paulo (R$ 35.936.428,43).

Com a mudança legislativa e a explosão de novas execuções em andamento, a tramitação dessas novas 200 mil execuções ou a custar aos cofres públicos quase R$ 1 bilhão, cerca de 30 vezes mais que a arrecadação dos últimos cinco anos.

Cabe lembrar que o valor unitário de R$ 4.685,39 foi estimado pelo Ipea em 2011.

Corrigido esse valor pela taxa Selic, o custo unitário aria a R$ 11.700,60 e o total, consideradas as 200 mil execuções, alcançaria a impressionante cifra de quase R$ 2,5 bilhões.

Ainda que se entenda pela inaplicabilidade dos cálculos do Ipea, analisando-se o perfil das execuções em trâmite no âmbito do TJ-SP, verifica-se que quase metade delas são de valores inferiores aos das próprias despesas necessárias ao processamento da execução (carta de citação, mandados de penhora, pesquisas de bens pelos sistemas informatizados via SisbaJud, RenaJud, etc.).

Justifica-se esse gasto para cobrar as penas de multa?
Não se está aqui diante de evidente desperdício de recursos públicos?
Poder-se-ia contra-argumentar que a lógica dessas execuções não é arrecadatória. O Tribunal de Justiça, de forma unânime, reforma as sentenças extintivas de primeiro grau que reconhecem a antieconomicidade, sob o fundamento de que uma sentença penal condenatória transitada em julgado, com força cogente, não pode ficar à mercê de atos istrativos e de critérios de conveniência e oportunidade de autoridade istrativa sobre valores mínimos para execução civil e fiscal, sob pena de tornar letra morta o conteúdo de condenação penal prolatada pelo Poder Judiciário[4].

Foram levantados exemplos de cobranças de R$ 88,00, R$ 104,50, R$ 136,88 e R$ 159,00 cujo prosseguimento foi determinado em grau recursal.

Nesse ponto, não se pode perder de vista a advertência de Nicolás Rodríguez-García e Fernando Andrade Fernandes sobre os riscos de potencializar a ideia de que a persecução deve ocorrer a qualquer custo, mesmo quando se cuidam de lesões do bem jurídico para as quais os ativos tutelados são insignificantes, ou de situações em que os conflitos se referem a ativos de pouco valor:

O julgamento de todos esses fatos insignificantes de acordo com a estrita aplicação do princípio da legalidade processual causaria inevitavelmente uma sobrecarga na atividade judicial, com a qual, em última instância, as vítimas de crimes de médio e grande porte, em particular, e a sociedade, em geral, é que sofreriam as consequências da morosidade em julgar[5].

E, aqui se traz outro dado relevante para o debate.

A alteração legislativa, além de não ter levado em conta que a imensa maioria das multas cobradas é de baixo valor, está longe de configurar aquela situação vislumbrada pelo Supremo Tribunal Federal, de execuções que envolvem crimes contra a istração Pública —como também nos crimes de colarinho branco em geral—, delitos para os quais a parte verdadeiramente severa da pena, a ser executada com rigor, há de ser a de natureza pecuniária.

De fato, os crimes contra a ordem tributária, de particular contra a istração, da lei de licitações, de corrupção ativa, de peculato e de lavagem de dinheiro representam apenas 0,3% das condenações às penas de multa.

Por outro lado, 63,82% das incidências penais no estado de São Paulo ocorreram devido ao delito de tráfico de drogas. Esse crime constitui a maioria esmagadora dos tipos penais mais recorrentes no sistema penitenciário da unidade federativa mais populosa do país.

Esse contingente não é composto, em sua maioria, por grandes chefes do tráfico, tais como aqueles retratados nos filmes e nas séries da Netflix, mas sim de um número substancial de pequenos traficantes, que muitas vezes se valem do crime para sustentar o próprio vício[6].

Executar bens desses sentenciados (se é que existem) não é punir a própria pobreza?
Isso porque é razoável supor que o egresso enfrentará maiores dificuldades para conseguir um emprego formal, e, se vendo em dívida com o Estado, terá, na pendência da multa, mais uma dificuldade na regularização da documentação e dos direitos eleitorais.

Prevalecia, até então, no Tema Repetitivo n. 931 do Superior Tribunal de Justiça, que, na hipótese de condenação concomitante à pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária obstaria o reconhecimento da extinção da punibilidade.

Em decorrência, porém, da posição do STF e da alteração do Código Penal, em setembro de 2021, o STJ, no Recurso Especial nº. 1.785.861/SP, reformou a tese do Tema 931 para dispor que "Na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária, pelo condenado que comprovar impossibilidade de fazê-lo, não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade".

Ao realizar essa modificação de entendimento, aquele Tribunal itiu que a realidade dos condenados social e economicamente hipossuficientes é diversa daquela dos criminosos de colarinho branco, de modo que impedir a extinção da punibilidade após o cumprimento integral da pena privativa de liberdade em crimes relacionados à pobreza reforça a estigmatização causada pela pena e dificulta ainda mais a recolocação do condenado (ou ingresso) no mercado de trabalho.

Aquele entendimento, contudo, poderia ter ido mais longe.

O pedido originário da Defensoria Pública era que fosse reconhecido tratamento similar, na espécie, ao que destina a jurisprudência dos Tribunais Superiores aos crimes fiscais, ao referir ser atípica a conduta prevista como crime tributário para valores até R$ 20.000,00, o que, segundo sustenta, deveria também levar a se acolher tal parâmetro monetário para fins de isenção de multa aos crimes patrimoniais em relação a condenados hipossuficientes.

O STJ, contudo, negou essa parte do pleito, deixando que isso seja analisado o caso a caso, o que acabou por não resolver o problema do excesso de judicialização das execuções das multas e nem o da punição da pobreza.

Diversos julgados têm imposto aos sentenciados a produção de prova diabólica[7], qual seja, a de provar que são hipossuficientes[8]. Enquanto isso, continuam com os direitos políticos suspensos e sofrem todo o estigma dali decorrente.

Por outro lado, caso se imponha que poderá ser reconhecida a hipossuficiência apenas após todas as pesquisas de bens via sistemas informatizados e expedição de mandado de penhora, o gasto público já terá sido realizado- e a regra, não a exceção- é a de que a maioria dos sentenciados não terá mesmo condições de saldar as multas, sobretudo as de valores mais elevados.

É fato notório que a cobrança de créditos por meio de execução fiscal possui baixíssima eficácia, considerando-se tanto o ínfimo percentual de débitos garantidos quanto o pequeno índice de extinção da execução pela satisfação.

Como destacado por André Luiz de Almeida Mendonça, “não faz sentido insistir em fórmulas comprovadamente custosas, morosas ou ineficientes. Litigar por litigar, como mandaria a tradição brasileira forjada na cultura adversarial, especialmente em relação à recuperação de ativos, somente tem o condão de assoberbar o Judiciário com processos e requerimentos cujos fins se exaurem em si mesmos, já que os índices de recuperação, isto é, o retorno efetivo aos cofres públicos, historicamente foram ínfimos ou, na melhor das hipóteses, insatisfatórios”. MENDONÇA, André Luiz de Almeida. Recuperação de Ativos e Combate à Corrupção. In: BECHARA, Fábio Ramazzini et. al. (Coord.). Corrupção: diálogos interdisciplinares. São Paulo: Almedina, 2020, p. 219).

Mais de cem anos atrás, no projeto para o Código Penal de 1913, de Galdino Siqueira, a multa foi eliminada do quadro das penas sob o argumento de que constituía impunidade para o rico e escárnio para o pobre, vício que não desaparecia em tornar o valor da multa proporcional às condições econômicas do condenado[9].

Não teria chegado a hora de retomar esse debate?

 

 


[1] TJ-SP extingue multa aplicada a condenada em situação de pobreza Revista Consultor Jurídico. 20 de agosto de 2023. Disponível em: /2023-ago-20/tj-sp-extingue-multa-aplicada-condenada-situacao-pobreza. o em:  24 ago 2023.

[2] Os dados completos da pesquisa apresentada neste artigo estão disponíveis na dissertação de mestrado profissional Execução da multa penal: explosão de novos feitos em andamento após a mudança do artigo 51 do Código Penal pela Lei 13.964/19 (LAMAS, Guilherme Lopes Alves- https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=13719909).

[3] INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Custo unitário do processo de execução fiscal na Justiça Federal. Brasília: IPEA, 2011. (Comunicados do IPEA, n. 83). Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/110331_comunicadoipea83.pdf. o em:  24 jan. 2022.

[4] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravo de Execução Penal nº 0008754-34.2021.8.26.0344, 16ª Câmara de Direito Criminal. Diário de Justiça Eletrônico: Caderno Judicial: 2ª instância, ano XV, edição 3436, p. 4294, 28 jan. 2022.

[5] RODRÍGUEZ-GARCIA, Nicolás; FERNANDES, Fernando Andrade, Análisis crítico de la posible utilización del principio de oportunidad en el enjuiciamiento penal de los delitos de corrupción. Justicia. Revista de derecho procesal, año 2012, Núm. 1, p. 256-257.

[6] Pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo concluiu que 60,46% dos apontados como traficantes tinham apenas o primeiro grau completo. JESUS, Maria Gorete Marques de; OI, Amanda Hildebrando; ROCHA, Thiago Tadeu da; LAGATTA, Pedro. Prisão Provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo. Núcleo de Estudos da Violência. São Paulo, 2011. Disponível em:https://nev.prp.usp.br/publicacao/priso-provisria-e-lei-de-drogas/. o em: 05 mar 2023).

[8] Exemplificativamente, SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravo de Execução Penal nº 0001284-27.2021.8.26.0028, 15ª Câmara de Direito Criminal. Diário de Justiça Eletrônico: Caderno Judicial: 2ª instância, ano XV, edição 3476, p. 3137, 29 mar.2022; SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravo de Execução Penal nº 0000658-34.2022.8.26.0590, 2ª Câmara de Direito Criminal. Diário de Justiça Eletrônico: Caderno Judicial: 2ª instância, ano XV, edição 3575, p. 3074, 22 ago.2022; SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravo de Execução Penal nº 0001294-10.2022.8.26.0037, 3ª Câmara de Direito Criminal. Diário de Justiça Eletrônico: Caderno Judicial: 2ª instância, ano XV, edição 3562, p. 3336, 4 ago.2022.

[9] Nelson Hungria, sobre a contribuição de Galdino Siqueira para o Direito Penal brasileiro: “Dele se pode dizer que foi quem introduziu, entre nós, o estudo do lídimo direito penal como ciência normativa. Antes dele o que havia era a insipiência do conhecimento, a indisciplina das idéias, o superficialismo exegético, a dubiedade dos critérios, a dispersão dos rumos, a improvisada biografia more mercatorio, os comentários sem espírito de sistema. (…) Foi com os seus dois volumes sobre o ‘Direito Penal Brasileiro’ (1921/1924) que se alcançou, afinal, uma inteligível e minuciosa construção dogmática do nosso então fragmentário direito positivo em matéria penal… Até então, a literatura jurídico-penal no Brasil não ava de epítomes destinados a estudante vadio ou a anotações lacônicas e rotineiras, que estavam para a ciência penal como um fio d’água está para um rio caudaloso”. DRUMOND, J. E. PIZARRO. Galdino Siqueira e a Ciência Penal no Brasil.  Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 139, n. 583 e 584, jan-fev 1952, p. 523-525).

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  • é mestre em Direito, Justiça e impactos na Economia pelo Cedes (Centro de Estudos de Direito Econômico e Social, 2023). Possui graduação em Direito pela USP (Universidade de São Paulo, 2003. É juiz de Direito no TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) desde 2010.

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