Garantia ou mera recomendação no reconhecimento de pessoas?
28 de agosto de 2023, 11h18
No dia 26 de junho deste ano, ao negar provimento ao Habeas Corpus nº 227.629/SP, a 1ª Turma do STF (Supremo Tribunal Federal) entendeu que a regra do artigo 226 do Código de Processo Penal "não exige, mas recomenda a colocação de outras pessoas junto ao acusado, devendo tal procedimento ser observado sempre que possível" [1]. Tal decisão da relatoria do ministro Barroso dá sobrevida a uma jurisprudência que parecia prestes a ser superada depois do julgamento paradigmático do da 6ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça), em outubro de 2020 [2].
Neste estudo, analisamos o julgamento recente do STF à luz da teoria do garantismo penal de Luigi Ferrajoli, demonstrando que o dispositivo em questão não pode ser entendido como mera recomendação, uma vez que intimamente ligado à legitimidade do reconhecimento enquanto meio de prova e à própria legitimidade da justiça.
Ferrajoli, em Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal, afirma que o garantismo é "um esquema epistemológico de identificação do desvio penal, orientado a assegurar o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo" [3]. Trata-se de garantir que o poder judiciário, ao reconhecer um crime, o faça de modo empiricamente fundamentado e racionalmente apto à verificação ou refutação.
O autor frisa que enquanto outros atos jurídicos e normas são validados exclusivamente pela vontade política ou normas superiores, "a legitimidade dos atos jurisdicionais penais está condicionada pela sua verdade [4] processual"; deduzindo disso o axioma "a verdade faz o juízo/julgamento, não a autoridade" [5]. Verdade é, portanto, uma das primeiras garantias e condição de legitimidade para o exercício do poder punitivo, ao lado da liberdade.
Esse princípio-valor atravessa toda a discussão em torno do reconhecimento de pessoas, pois hoje se sabe o quão imbricado por questões cognitivas, psicológicas e estruturais é este ato. Assim, levar em conta tudo isso permite alcançar um reconhecimento mais confiável, legítimo e, quiçá, verdadeiro.
A memória não é como um rolo de filme ou uma fotografia, à qual o possuidor retorna quando bem entender [6]. Ela é suscetível e sugestionável; e vários os fatores que afetam a sua credibilidade. Tratando-se do reconhecimento de pessoas, por exemplo, importa saber o tempo de exposição do rosto, claridade do local, presença de armas, grau de nervosismo da vítima, entre outros que aumentam as chances de erros e falsos positivos.
Do mesmo modo, diferentes estudos demonstram os diferentes mecanismos que induzem vítimas a "reconhecerem" inocentes, como sugestões verbais, insistências e confirmações, entre outros detalhes que põem a vítima em um esforço de contribuição para com o caso [7].
Uma prática frequente e especialmente criticada é a que se constata no HC em comento: o chamado show up. Nessa prática investigativa, um suspeito em particular é colocado, presencialmente ou não, diante da vítima e lhe é perguntado se aquela é a pessoa que praticou o delito em apuração. Para a professora Matida [8], este é o modo mais precário de reconhecimento, pois o desejo de contribuir da vítima se transforma em esforço para reconhecer a pessoa diante dela: "se o suspeito é suficientemente parecido à memória do autor do crime, o 'reconhecimento' acontece" [9]. Ela alerta, ainda, que reconhecimentos posteriores não sanam o primeiro viciado, porquanto, a partir dali, a memória se cristaliza na pessoa erroneamente reconhecida.
Vê-se, portanto, que o disposto no P é inseparável da própria credibilidade do reconhecimento a ser realizado. O molde do artigo 226 implica em um reconhecimento mais próximo da verdade, logo, base para decretos condenatórios mais legítimos. Do contrário, frustrar a ordem legal provoca, necessariamente, um ato carente de fidedignidade, que beira mero simbolismo. Levando ao extremo, pode se afirmar que o reconhecimento carente das formalidades legais beira uma prova ordálica, ligada mais à fé do que à memória do fato.
Na verdade, o artigo 226 é insuficiente [10], existindo uma série de medidas que aumentariam a confiança no procedimento de reconhecimento. Entre elas: o alinhamento de pessoas semelhantes e que não se destaquem; um procedimento duplo cego, onde condutor e vítima não saibam quem é o suspeito; alerta de que o suspeito pode não estar entre as pessoas alinhadas e que não há problema, caso não se reconheça o autor.
É nesse sentido que vem se posicionando o STJ, por liderança do ilustre ministro Rogério Schietti, que, no julgamento do HC nº 598.886/SC, assentou que as formalidades do artigo 226 do P são "garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando de 'mera recomendação' do legislador". Para ele, é urgente que os Tribunais adotem um novo "rumo na compreensão das consequências da atipicidade procedimental do ato de reconhecimento formal", pois a noção de mera recomendação "acaba por permitir a perpetuação desse foco de erros judiciários e, consequentemente, de graves injustiças" [11].
ado pouco mais de um mês da decisão do STF e já se constata o efeito sobrevida no entendimento decadente da "mera recomendação" nas formalidades para o reconhecimento de pessoas. Apenas no STJ já se encontram dois julgados citando diretamente o acórdão do STF e repristinando a interpretação irracional do artigo 226 do P [12]. Logo, é fundamental que a mais alta Corte supere o entendimento defasado e assente de vez uma postura garantista perante o reconhecimento de pessoas.
Como alerta Antônio Vieira [13], o Brasil é o único país da América Latina que não atualizou seu sistema processual penal após o fim da ditadura. A norma do artigo 226 do P foi escrita há 82 anos, quando se dispunha de muito menos dados sobre memória e erros judiciários, de modo que sua atualização é mais que urgente. Para o autor, um bom exemplo a ser seguido se encontra na reforma do Código de Processo Penal uruguaio, que hoje determina:
"a) que a testemunha deverá informar se voltou a ver o suspeito depois do dia do crime ou se sua imagem lhe foi exibida antes do ato; b) que a testemunha deverá ser advertida que o autor do crime pode estar ou não dentre os participantes da roda de reconhecimento; c) que a roda será formada com pelo menos quatro pessoas (o suspeito e mais três) que necessariamente devem características morfológicas semelhantes e vestimentas similares às do suspeito; d) que a defesa poderá ainda incorporar outros dois fillers à fila de reconhecimento; e) que o suspeito pode escolher a posição que ocupará na fila; f) que não se poderá colocar mais de um suspeito em cada fila; g) como em todo procedimento probatório, deverá necessariamente estar presente o defensor do suspeito/acusado; h) que, não sendo possível fazer a identificação de forma presencial, o reconhecimento poderá ser feito por imagens fotográficas ou vídeos, desde que observadas as mesmas regras aplicáveis ao reconhecimento presencial; i) que todo o ato deverá ser registrado mediante gravação de áudio ou vídeo" [14].
[1] STF. Ag. Reg. no Habeas Corpus nº 227.629 – SP. Primeira Turma, rel. min. Roberto Barroso. J. em 16 e 23 de jun. de 2023. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=768970183
[2] STJ. Habeas Corpus nº 598.886 – SC. Sexta Turma, rel. Min. Rogério Schietti. J. em 27 de out. de 2023. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/documentos/noticias/27102020%20HC598886-SC.pdf
[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, 2002, p.30.
[4] Conceito usado pelo autor como verdade aproximativa e não como verdade real ou realidade em si.
[5] FERRAJOLI, op. cit., p. 437.
[6] DIGES, Margarita; PÉREZ-MATA, Nieves. La prueba de identificación desde la psicología del testimonio. In: Identificaciones fotográficas y en rueda de reconocimiento: Un análisis desde el Derecho procesal penal y la psicología del testimonio. AA.VV. Madrid: Marcial Pons, 2014, p. 33-86.
[7] Ibid.
[8] MATIDA, Janaína; CECCONELLO, William. Outra Vez Sobre o Reconhecimento de Pessoas. Consultor Jurídico, 1. out. 2020. Coluna Limite Penal. Disponível em: /2021-out-01/limite-penal-outra-vez-reconhecimento-fotografico
[9] Ibid.
[10] Como defendem Janaína Matida, William Cecconello, Antônio Vieira, Vítor de Paula Ramos e outros.
[11] Todas citações extraídas do relatório do ministro Schietti para o HC nº 598.886 – SC (vide nota de ref. 2)
[12] AgRg. HC 759.871 e AgRg. HC 809.382.
[13] VIEIRA, Antônio. Riscos Epistêmicos No Reconhecimento de Pessoas: o que aprender com a reforma do Código Processual Penal uruguaio. In: COUTINHO, Jacinto (Dir.); et al. Reflexiones Brasileñas sobre la Reforma Procesal Penal en Uruguay. Santiago, Chile: CEJA e Observatório da Mentalidade Inquisitiva, 2019, pp. 355 e ss.
[14] Ibid.
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