Diário de Classe

Qual a combatividade esperada do Ministério Público em uma democracia?

Autor

9 de dezembro de 2023, 11h39

A coluna de hoje [1] abordará um tema muito caro ao nosso professor Lenio Streck: Ministério Público. A instituição é um marco para a democracia brasileira, tema também afeto da Crítica Hermenêutica do Direito. E, ao fim e ao cabo, refletir sobre a atuação do Ministério Público é pensar acerca do próprio Estado Democrático de Direito.

Recentemente, o nome do promotor Jacson Zilio recebeu atenção especial da imprensa em razão de a Corregedoria-Geral do Ministério Público do Paraná ter requerido a sua remoção da 9ª Promotoria de Justiça Criminal do Foro Central da Região Metropolitana de Curitiba. Segundo o órgão, o promotor estaria se precipitando ao utilizar precedentes das cortes superiores acerca da ilegalidade nas buscas pessoais e domiciliares em casos de tráfico de drogas. Isso na medida em que o membro estaria reconhecendo nulidades antes mesmo da instrução processual para fins de adequação do precedente ao caso concreto, o que poderia implicar, na concepção da Corregedoria, prejuízo ao desempenho das funções institucionais do Ministério Público. [2]

De fato, foi instaurada “a sindicância n. 001/2023-CGMP para apurar falta de zelo do representado na emissão de parecer pela rejeição de denúncia no processo criminal”. A Corregedoria fala em “‘pouquíssima combatividade’ e oposição reiterada aos entendimentos dos promotores da fase de investigação (…) [e] que essa ‘reduzida combatividade’, especialmente em delitos de tráfico de drogas, obstaculizou qualquer análise de mérito dos processos criminais”.

O órgão viu com maus olhos ter constatado “(…) inúmeras manifestações de rejeição de denúncias, sob argumento de nulidade/ilegalidade de busca pessoal e/ou domiciliar (…)” e localizado “(…) um recurso de apelação do representado a favor do réu”. Pior, lista rejeições de denúncias por solicitação do promotor, absolvições promovidas por recursos do membro do Ministério Público do Paraná manejados em face de sentenças condenatórias, tudo com base na jurisprudência dos tribunais superiores, preterindo o “(…) entendimento Institucional emanada da Subprocuradoria-Geral de Justiça para Assuntos jurídicos — Coordenadoria de Recursos Criminais, em tema de busca pessoal e/ou domiciliar”.

Embora o Conselho Nacional do Ministério Público já tenha determinado a suspensão do procedimento[3], a pergunta que fica é: qual, afinal, é o papel institucional do Ministério Público no Estado Democrático de Direito Contemporâneo?

O Ministério Público deve atuar como acusador imparcial. Afinal, como poderia ser diferente em um sistema que supostamente superou o modelo inquisitorial e encampou legalmente o modelo acusatório inerente ao Estado Democrático de Direito? Assim, não deveria ser novidade que não cabe ao Ministério Público agir como perseguidor implacável, capaz de atropelar nulidades e garantias para obter a condenação.

Cabe ao Ministério Público e aos seus membros (promotores e procuradores de justiça) promover justiça, não condenações. Os integrantes da instituição inclusive possuem as mesmas garantias da magistratura e devem, portanto, atuar com a mesma imparcialidade. O Ministério Público é órgão do Estado e, justamente por isso, exerce a soberania, de modo que não pode exercê-la numa atuação estratégica em face do jurisdicionado, ainda que possua legitimidade para acusá-lo, sob pena de evidente prejuízo ao hipossuficiente.

Viver em um Estado Democrático de Direito implica reconhecer que não há poder ilimitado, nem mesmo o Estado pode violar as regras do jogo. A sua função é tutelar os direitos e garantias fundamentais, muitas previstas no art. 5º da Constituição Federal, como a presunção de inocência. Ou seja, cabe ao Ministério Público, titular da ação penal, primeiramente se convencer da necessidade de denunciar a prática de um ilícito, com a formação da opinio delicti em sede de investigação, e instaurar o respectivo processo criminal, que deve ser a exceção, não a regra, sendo-lhe ainda imputado o ônus de provar não ser inocente o denunciado.

Neste contexto, é preocupante falar em “falta de zelo” de um promotor de justiça em virtude de emitir “parecer pela rejeição de denúncia” em um processo criminal. Aliás, como é possível argumentar que o membro do Ministério Público atua com pouquíssima ou reduzida “combatividade” ao se manifestar pela rejeição de denúncias, apresentar recurso em favor do réu e reverter condenações injustas? Ora, todos são exemplos de atuação enérgica de uma instituição estatal, que atua com diligência na tutela dos direitos fundamentais amparado pela ordem jurídica.

No pedido de remoção se argumenta que a atuação do promotor de justiça “obstaculizou qualquer análise de mérito dos processos criminais”. Isso na medida em que Jacson Zilio estaria se precipitando ao aplicar o entendimento consolidado das cortes superiores sem permitir a instrução do processo. Neste sentido, desvela-se mais uma inconsistência: qual é o sentido de submeter o jurisdicionado a um processo criminal com produção de provas quando o próprio inquérito for claro no sentido de que houve ilegalidade na busca pessoal/domiciliar?

O fato de a Subprocuradoria-Geral de Justiça para Assuntos jurídicos Coordenadoria de Recursos Criminais ter entendimento institucional diverso a respeito do tema não afasta a vinculação aos tribunais superiores. E não é a instrução de um processo que definirá a aplicação de um ou de outro, pois tais elementos fáticos mínimos deverão estar encartados nos autos do inquérito. Além disso, qualquer decisão judicial válida (leia-se, devidamente fundamentada na forma do artigo 93, X, da Constituição Federal), ainda que acolha os pedidos do membro do Ministério Público, deverá apreciar o contexto e a aplicabilidade do entendimento das cortes superiores à hipótese [4].

Neste contexto, fica evidente a intenção punitivista que permeia o pedido de remoção formulado pela Corregedoria-Geral do Ministério Público do Paraná. Há uma clara afronta ao que se espera da instituição, que representa um dos maiores avanços no Estado democrático de Direito. E tal perspectiva viola, necessariamente, o sistema acusatório inerente ao Estado democrático de Direito Contemporâneo.

Com efeito, esta é apenas mais uma amostra de como ainda é difícil falar de sistema acusatório no Brasil.

O parágrafo único do artigo 212 do Código de Processo Penal até pode prever a possibilidade de o juízo complementar a inquirição de uma testemunha, mas o fato é que o ônus probatório é do Ministério Público, e a mencionada previsão legal não afasta a presunção de inocência fixada constitucionalmente. Logo, o judiciário não pode assumir o ônus do órgão de acusação, produzindo as provas que ele próprio juízo entende pertinentes para a condenação do réu, sendo este o seu claro objetivo ao proceder desta maneira.

A constituição é clara: na dúvida, impõe-se a absolvição. Caso o órgão de acusação não cumpra o seu papel de providenciar os elementos probatórios acerca da culpabilidade no caso, não cabe ao juízo produzir a prova que utilizará para condenar o réu.

Em suma, o processo só pode ser um jogo para a defesa. Enquanto órgão do Estado, o Ministério Público não pode agir de forma estratégica no exercício da soberania. Novamente, o que se exige é imparcialidade, conforme já defende o professor Lenio Streck há anos, inclusive no texto “Projeto de lei para evitar a parcialidade na produção da prova penal” [5], que embasou o Projeto de Lei 5.282/2019 [6], cujo objetivo era fixar a obrigatoriedade de o Ministério Público diligenciar, investigar e buscar provas também favoráveis aos indiciados e acusados em sede de processo penal.

Enfim, o Estado Democrático de Direito não ite um processo inquisitivo. De fato, o sistema acusatório deve ser lido como princípio, que não pode ceder a relativismos por uma questão (como não poderia deixar de ser) filosófica. Além de não ser viável se assenhorar da prova numa visão politicamente responsável, também não é issível, por óbvio, que ocorra tal apropriação em relação à própria ordem jurídica. E é justamente o que a Corregedoria-Geral do Ministério Público do Paraná parece esperar do promotor em questão. Afinal, pede a remoção do membro argumentando com a falta de “combatividade” para punir supostos ilícitos que contam com meros indícios tomados em flagrante ilegalidade, conforme entendimento dos tribunais superiores.

 

[1] Agradeço a colega Luísa Giuliani Bernsts pela revisão do texto publicado aqui.

[2] HIGÍDIO, José. Corregedoria do MP-PR pede remoção de promotor por seguir precedentes do STJ. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 18 nov. 2023. Disponível em </2023-nov-18/corregedoria-do-mp-pr-pede-remocao-de-promotor-por-seguir-precedentes-do-stj/>. o em: 06 dez. 2023.

[3] As transcrições foram extraídas da decisão anexada à seguinte notícia. CNMP suspende pedido de remoção do promotor Jacson Zilio. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 22 nov. 2023. Disponível em </2023-nov-22/cnj-suspende-remocao-do-promotor-de-justica-jacson-zilio/>. o em: 06 dez. 2023.

[4] Para uma completa e profunda crítica aos precedentes, com o devido questionamento acerca do que é, afinal, um precedente, conferir STRECK, Lenio Luiz. Precedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no C/2015. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2021.

[5] STRECK, Lenio Luiz. Projeto de lei para evitar a parcialidade na produção da prova penal. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 19 set 2019. Disponível em </2019-set-19/senso-incomum-projeto-lei-evitar-parcialidade-producao-prova-penal>. o em: 06 dez. 2023.

[6] BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 5282 de 2019. Altera o art. 156 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal) para estabelecer a obrigatoriedade de o Ministério Público buscar a verdade dos fatos também a favor do indiciado ou acusado. Disponível em <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/139043>. o em: 06 dez. 2023.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!