Opinião

Classificação fiscal de mercadorias e o respeito que deve ser conquistado

Autor

  • é membro da Comissão de Política Fiscal e Proteção aos Contribuintes da OAB-RJ especialista em Direito Tributário pela FGV/Direito-RJ professor de Direito Tributário e Aduaneiro convidado na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) e do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e advogado especializado em Direito Aduaneiro.

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13 de dezembro de 2023, 9h19

Nesta terça-feira (12/12) foi publicado o artigo “Mais Respeito na Bagunça! O ‘Febeapá’’e a Classificação de Mercadorias, Parte 2 na coluna Território Aduaneiro desta ConJur, no qual as autoras fizeram coro à opinião de Rosaldo Trevisan na (parte 1) quanto à existência de um “festival de besteiras descompromissadas” no tema de classificação de mercadorias.

Antes de se abordar o artigo em si, pede-se vênia para trazer breves considerações sobre o debate científico. A ciência do direito, como qualquer outra, está relacionada com a busca da verdade/ideal e do progresso do conhecimento por meio de um debate livre e crítico de ideias, racionais e conclusões, que deve ser feito de maneira respeitosa e construtiva pelos envolvidos como condição de existência desse próprio debate (uma pessoa que se sente pessoalmente ofendida se fechará por completo a qualquer tentativa de convencimento).

Nela, há uma grande distinção entre (a) o erro técnico, causado pela inobservância (aqui englobando tanto a não-aplicação completa quanto o emprego de maneira equivocada) de alguma regra obrigatória que vicia tanto o processo quanto a conclusão à qual chegou o intérprete; da (b) divergência de ideias, racionais ou conclusões tecnicamente válidas, mas que (i) elegem elementos e premissas diferentes como relevantes; e/ou (ii) adotam uma valoração/peso diferente para tais elementos na formação da conclusão.

O erro deve ser criticado pelo estudioso em detalhes, apresentando a necessária correção técnica para que tanto o errado quanto a comunidade como um todo possam aprender e evoluir. Já a divergência técnica exige a exposição em detalhes de ambas as construções técnicas efetivadas para que a comunidade debata francamente e decida qual delas (ou ainda uma terceira posição, que pode ser completamente distinta ou uma combinação) se aproxima mais da verdade ou do ideal científico (e consequentemente merece prevalecer).

Especificamente quanto aos erros, o crítico deve colocar-se em patamar de humilde igualdade com o criticado, reconhecendo a possibilidade de que: (a) inexista um erro, apenas uma dificuldade inicial de capturar a legítima construção feita pelo criticado a partir da conclusão exposta; (b) se esteja diante da supramencionada divergência de ideias, racionais ou conclusões tecnicamente válidas; e (c) na verdade seja ele quem está cometendo o erro técnico que apontará no outro.

Caso esteja convicto do erro alheio, então deve temperar sua crítica, limitando-a ao que seja necessário para a descoberta do erro e sua solução, evitando adjetivações ou imputação de características negativas à manifestação/trabalho ou seu autor ou a adoção de uma postura de superioridade intelectual pois ambas são desprovidas de utilidade científica. São ideias e técnicas, não pessoas, que conflitam na ciência e elas não possuem hierarquia ou pedigree, por mais que o academicismo encastelado se contorça com esse necessário conceito.

Feitas tais considerações introdutórias, amos ao artigo em si, que direciona críticas – que demonstraremos equivocadas – a algumas manifestações de terceiros sobre o tema que foram denominadas “besteiras”. Ele em momento algum cogita a possibilidade de que as manifestações tenham substrato meritório e as trata sumariamente como grosseiros erros técnicos merecedoras de colérica crítica acompanhada de adjetivação e julgamentos direcionados tanto às mensagens quanto aos seus autores. Ele não vai além disso, deixando de lado a necessária demonstração da correta técnica em contraposição dos erros apontados, talvez partindo da premissa de que seus nomes bastavam para uma “presunção de razão”.

Tentaremos, por meio desse artigo, corrigir essa falha científica e franquear aos leitores os elementos técnicos necessários para avaliar se realmente houve um erro técnico.

Começamos pelas matérias e vídeos citados pelo artigo. De sua leitura/observância atenta, é possível se extrair que as manifestações de pensamento feitas nessas matérias e vídeos não eram especificamente direcionadas à existência do sistema harmonizado ou a NCM: o problema exposto pelos autores destas estava voltado à legislação brasileira. Mais especificamente quanto aos seguintes aspectos:

(a) tributação pelo II e IPI com alíquotas variando conforme a NCM do produto, o que atrai uma etapa adicional substancialmente complexa na definição do tratamento tributário ordinário (independente de eventuais benesses fiscais) que não existe, por exemplo, no PIS/Cofins-Importação em que as alíquotas padrão não variam dessa forma;

(b) uma variação reconhecidamente elevada nas alíquotas supracitadas para enquadramentos “vizinhos” (com poucas variações de características) [1], o que conflita com o razoável entendimento de que enquadramentos próximos o suficiente para gerar dúvida na classificação preferencialmente deveriam se sujeitar à mesma alíquota; e

(c) previsão para aplicação de penalidades sobre o mero uso de classificação fiscal entendida como incorreta pelas Autoridades, ignorando toda a complexidade envolvida até mesmo em situações que ela afetou aos próprios Auditores Fiscais (v.g. Súmula Carf 161 [2]).

Já a citação de exemplos de situações “pitorescas” em que essa variação excessiva de alíquotas estava presente para classificações limítrofes e gerou uma mudança na composição dos produtos que teve pouco impacto no seu padrão de consumo ou apreciação pelos consumidores, mas foi suficiente para que se alcançasse, de maneira absolutamente legítima e técnica, a tributação mais vantajosa existente em um dos enquadramentos também é pertinente para não apenas chamar atenção da população em geral ao problema, como também conceder-lhe materialidade (tornando mais fácil sua compreensão).

O incômodo exposto nas manifestações a respeito de tais complexidades é pertinente, e suas as manifestações possuem substrato jurídico. Vale notar que, embora não tenham sido tratados (e nem deveriam/poderiam ser) nessa primeira fase de reforma tributária a estabilização das alíquotas e vedação a esse tipo de injusta punição no adoção de uma classificação “errada” quando o enquadramento é complexo, elas poderiam sê-lo na segunda fase (da legislação infraconstitucional) ou mediante outra iniciativa legislativa, que seria extremamente pertinente. A necessidade de ajuste na legislação aduaneira brasileira, inclusive sob os vieses acima já foi identificada pela doutrina especializada, vide manifestações públicas em eventos da OAB-SP e do Grupo de Trabalho da FGV-SP.

Quanto ao debate de classificação, cabe pontuar de antemão que é errado presumir, sem qualquer substrato fático ou conhecimento prévio para embasar tal presunção, que os envolvidos não tiveram o ou participação em casos de cosméticos em que laudos técnicos foram produzidos quanto à composição, precificação e funcionalidades destes, tal como foi feito em diversas agens do artigo supracitado [3]. É perfeitamente possível, quiçá provável, que aqueles que se sentem seguros para debater sobre o tema já o tiveram. Também é necessário entender que expressões leves e jocosas são próprias de um ambiente informal como aquele em que o debate transcorria e em nada prejudicam a mensagem ada (talvez apenas para aqueles que julgam um livro pela sua capa e não pelo seu conteúdo).

O artigo não se manifestou quanto à correta técnica a ser empregada na classificação desse tipo de produto, o que nos deixa apenas com a construção técnica daqueles que participaram do debate, perfeitamente ível de extração pela leitura dos sucessivos argumentos apresentados que, diga-se, não foram trazidos em sua integralidade ao crivo da comunidade, sendo selecionados e individualizados alguns trechos para que fossem criticados num vácuo.

Dentro do Capítulo 33 do SH, onde são classificados os produtos cosméticos, há, por exemplo, a Posição 33.03 para os perfumes, 33.04 para produtos de beleza e maquiagem e outros produtos não medicamentosos relacionados à pele e 33.07 para produtos diversos, inclusive os desodorantes. Nesse capítulo, reservado para um tipo de produto químico, a definição se dá com base em sua composição e nas funções exercidas, que estão intimamente interligadas (afinal, determinada função decorre de determinado elemento ou composição química ativa que gera tal efeito, sendo usualmente preconcebida e projetada).

Diversos desses produtos são compostos e multifuncionais, o que muitas vezes obsta sua classificação pelo texto dos enquadramentos na nomenclatura e as Notas de Seção, Capítulo e Posição (Regra Geral de Interpretação (RGI) nº 1, mesmo com apoio das regras de referência para produtos incompletos/desmontados e misturados/compostos (RGI’s nº 2-A e 2-B). Assim, faz-se necessário buscar socorro sucessivo nas RGI 3-A, 3-B e 3-C, destinadas especificamente a solucionar a classificação deste tipo de produto.

O racional base (a) da RGI 3-A é que “A posição mais específica prevalece sobre as mais genéricas.”; (b) da RGI 3-B é que “produtos devem ser classificados pela matéria ou artigo que lhes confira a característica essencial, quando for possível realizar tal determinação”; e (c) da RGI 3-C é que “classifique na posição situada em último lugar na ordem numérica, dentre as suscetíveis de validamente se tomaram em consideração”.

Nas duas primeiras, subjetivas, outorga-se ao intérprete o ônus de realizar o exercício de valoração jurídica quanto ao nível de especificidade das redações e, depois, quanto à primordialidade dentre as características do produto. Prova disso são as próprias Notas Explicativas: “Não é possível estabelecer princípios rigorosos que permitam determinar se uma posição é mais específica que uma outra em relação às mercadorias apresentadas” e “O fator que determina a característica essencial varia conforme o tipo de mercadorias”.

Entretanto, a codificação do sistema harmonizado traz consigo orientações (com exemplos) ao intérprete. No caso da RGI 3-B, pondera que a característica essencial pode ser determinada, por exemplo, “pela natureza da matéria constitutiva ou dos componentes, pelo volume, quantidade, peso ou valor, pela importância de uma das matérias constitutivas tendo em vista a utilização das mercadorias”.

Assim, cabe ao intérprete estabelecer um racional jurídico a partir dos signos distintivos de cada uma das posições controvertidas (no Capítulo 33 é a definição do “elemento/função” primordial que se destaca das demais funções que se limitam a ser “órias” ou “secundárias”) para valoração de elementos do produto e, assim, extrair as premissas necessárias para subsidiar a sua tomada de decisão pela existência (ou não) de uma característica que se sobressai perante as demais e que permita afirmar o “tipo de produto” sob análise, para o enquadramento da NCM.

Assim, tomando como verdadeira a informação do fabricante de que o produto sob análise é capaz de realizar hidratação, limpeza e remoção de odores e da ausência de qualquer Nota de Capítulo ou Posição que indicasse critérios, os debatedores tentaram identificar uma função/componente principal, adotando como possíveis elementos jurídicos relevantes: (a) características/funcionalidades utilizadas para fins de divulgação do produto perante o mercado consumidor; (b) custo de produtos com componentes similares e que realizam uma das funções individuais dele, para estimar o custo individual desses componentes/funções e avaliar potenciais produtos comercialmente fungíveis; e (c) o padrão majoritário de objetivo final de uso do produto pelo mercado consumidor.

O conhecimento empírico acerca deste tipo de produto indica que como regra eles: (a) são anunciados e comercializados como “hidratante” e não “desodorante” pelo fabricante; (b) possuem preço que mais se aproxima de outros produtos que se identificavam exclusivamente como “hidratante” (com os quais também compartilhava a composição base) do que aqueles identificados exclusivamente como “desodorante”; e (c) são adquiridos pela maioria dos consumidores para uso pela sua função hidratante (o emprego do exemplo da própria pessoa e de familiares é uma força de expressão, mas na verdade o elemento jurídico é o padrão de consumo da maioria dos consumidores brasileiros).

Assim, alguns dos debatedores concluíram que, confirmada a presença das premissas jurídicas acima e inexistindo no caso concreto outro elemento específico que indique que os componentes/função desodorante seriam relevantes sob o viés de volume, quantidade, peso e valor na constituição do produto ou importância na sua utilização (critérios exemplificativos da Nota Explicativa da RGI 3-B), seria possível definir que os componentes/função hidratantes seriam principais/essenciais, ao o que as demais seriam órias/secundárias, o que implicaria no enquadramento na Posição 33.04.

Evidentemente, trata-se de uma análise genérica para estabelecer o desfecho mais usual, que pode ser modificada após um aprofundamento na análise do produto em concreto que revela e presença de outras premissas fáticas. O objetivo do debate não era definir a classificação de uma mercadoria específica em si, mas os critérios da classificação do tipo de produto.

A construção jurídica exposta no debate não está imune a críticas e talvez não seja a ideal já que ela não é decorrente da aplicação de uma norma de conteúdo objetivo, mas da implementação interpretativa de uma norma de conteúdo subjetivo (RGI 3-B).

Naturalmente, é possível argumentar que os elementos juridicamente relevantes eleitos pelo intérprete não eram os ideais (embora se alerte desde logo que tais critérios também são utilizados pela Receita Federal do Brasil em seus lançamentos e Soluções de Consulta, quando há necessidade de fazer uso da RGI 3-B para produtos compostos e multifuncionais) ou que eles por si só não eram suficientes para legitimar a conclusão por uma primordialidade de uma função/componente, como inclusive foi feito por outro jurista aduaneiro no mesmo grupo. Só não há como negar que há técnica por trás das considerações.

Em conclusão, ambos os assuntos contidos nas mensagens criticadas são relevantes e instigantes e não foram tratados de forma leviana ou “desprovida de qualquer respeito científico”, apenas com a simplicidade e forma de comunicação que o ambiente em que foram trazidos (veículos midiáticos, redes sociais e grupos virtuais) demandavam.

Embora todos tenham total direito de discordar ou mesmo de entender que tais posições estão erradas, é necessário que a crítica seja feita com o mesmo rigor técnico que se impôs a terceiros, com exposição das próprias ideias e técnica que se entende correta para que haja o aprimoramento do conhecimento. Não se concebe a crítica pura e simples, sem qualquer contraponto, apenas acusações e adjetivações, como se apenas alguns tivessem o a livros da biblioteca ou detivessem a exclusividade da inteligência ou do conhecimento.

Alguns desejam ver suas ideias serem tratadas como o manjar dos deuses da contemporaneidade acadêmica, a serem consumidas e veneradas por todos os demais reles mortais. Felizmente, não é o nosso caso. A nós, resta a trincheira do debate acadêmico aberto, livre e, sempre, técnico, sem se pautar no argumento de autoridade, mas na autoridade dos argumentos e sempre respeitando não só as ideias divergentes como seus autores.

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[1] Alguns exemplos dessa variação de alíquotas em situações limítrofes de enquadramento na NCM: (a) Barbeadores e Aparadores de Pelos (Acima de 50%); (b) Medicamentos Veterinários e Instrumentos Veterinários (Acima de 100%); (c) Alarmes para Proteção contra Incêndio e Instrumentos Detectores de Gases (Acima de 50%); e (d) Máquinas Automáticas de Preparação de Café e Máquinas Automáticas de Venda de Café (Acima de 70%).

[2] O erro de indicação, na Declaração de Importação, da classificação da mercadoria na Nomenclatura Comum do Mercosul, por si só, enseja a aplicação da multa de 1%, prevista no art. 84, I da MP nº 2.158-35, de 2001, ainda que órgão julgador conclua que a classificação indicada no lançamento de ofício seria igualmente incorreta.

[3] Exemplos dessas presunções: “delibera-se sobre a classificação jurídica de uma mercadoria com fundamento em um suposto e invocado “senso comum”, no alto de convicções pessoais”; “apontar uma determinada classificação como sendo ‘mais adequada’ sem sequer ter tido o à composição da mercadoria, por exemplo, beira o descomprometimento”; “Alguns se arriscam até a apelar para a formação dos preços – repise-se, nunca ter visto uma ficha técnica”; e “Sem nunca sequer ter tido o à composição química do “desodorante/hidratante” analisado, por exemplo, torna-se absolutamente impossível vociferar sobre a sua função com vistas a fundamentar esta ou aquela posição”.

Autores

  • é advogado. Bacharel em Direito pelaUFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Professor convidado em Direito Aduaneiro e Tributário no IBDT/SP, Apet/SP, FBT/SP e PUC/PE. Diretor de Contencioso Aduaneiro do Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro (IPDA).

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