O licenciamento ambiental da BR-319 e o Projeto de Lei 4.994/2023
24 de dezembro de 2023, 10h34
Na noite de 19 de dezembro agora, a Câmara dos Deputados aprovou por 311 a 103 votos o Projeto de Lei 4.994/2023, classificando a BR-319 como infraestrutura crítica indispensável à segurança nacional e tratando do seu licenciamento ambiental. Ao fazer a ligação entre Manaus e Porto Velho, essa rodovia cruza a Floresta Amazônica, perando por uma área riquíssima em termos de biodiversidade e de populações tradicionais.
Obviamente, o objetivo do projeto é facilitar o empreendimento, uma vez que se pretende fracionar e simplificar o licenciamento ambiental da obra, além de se tentar destinar recursos do Fundo Amazônia para asfaltar a rodovia. Nesse diapasão, vale a pena destacar os seguintes dispositivos do texto do projeto aprovado:
Art. 3º. Os atos públicos de liberação e de licenciamento de pequeno e médio potencial poluidor relacionados à rodovia BR-319 deverão ser realizados por meio de procedimentos simplificados ou por adesão e compromisso, inclusive os serviços órios ou necessários à realização das obras da rodovia.
Parágrafo único. Para fins do disposto neste artigo, consideram-se serviços necessários ou órios as unidades de apoio, incluídos:
I – canteiro de obras;
II – área de empréstimo e de deposição;
III – usinagem de pavimento asfáltico e concreto;
IV – terraplenagem; e
V – construção de dormitórios e locais de agem.
Art. 7º. Fica autorizada a utilização de doações recebidas em espécie pela União destinadas à realização de ações não reembolsáveis de promoção da conservação e do uso sustentável da Amazônia Legal, apropriadas em conta específica sob custódia do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), na obra pública destinada à recuperação, à pavimentação e ao aumento de capacidade da rodovia BR-319.
O intuito do presente artigo é analisar apenas os aspectos ambientais do Projeto de Lei 4.994/2023, especificamente no que diz respeito ao licenciamento ambiental. Destarte, não se pretende entrar no mérito da priorização do empreendimento, consoante prevê os arts. 1º, 6º e 8º do projeto, pois isso fica a critério dos parlamentares e dos seus respectivos partidos políticos.

No caso sob análise, existem vários problemas de constitucionalidade e de legalidade a ser destacar. Resta, portanto, analisá-los.
Não se pode criar um processo de licenciamento ambiental de exceção. Se toda rodovia possui um procedimento licenciatório a seguir, não cabe ao Poder Legislativo abrir exceções ou flexibilizar para um único caso concreto, porque em última análise isso poderia comprometer a qualidade do controle ambiental. Com efeito, não existem razões técnicas ou jurídicas que justifiquem um controle ambiental menos rígido dessa rodovia do que as demais. Isso representaria um agir contraditório da istração Pública, que não deve fazer um licenciamento ambiental sob encomenda por pressão de grupos de interesse.
Também não é possível fracionar o processo de licenciamento ambiental sob pena de se comprometer a efetividade do controle ambiental. A visão holística deve permear o procedimento, devendo os impactos ambientais serem analisados da forma mais ampla possível a fim de garantir a melhor qualidade ambiental das decisões istrativas. Somente dessa forma, as medidas compensatórias e mitigatórias poderão ter maior efetividade, pois serão tecnicamente mais adequadas. É sabido que o fracionamento induz à realização de estudos ambientais menos completos, bem como ao não pagamento de contrapartidas ambientais corretas, devendo por isso ser evitado.
A função de controlar as atividades efetiva ou potencialmente poluidoras está expressamente estabelecida pelo inciso V do §1º do artigo 225 da Constituição Federal, que reza que, para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente equilibrado, incumbe ao Poder Público “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”. Em vista disso, o licenciamento tem base constitucional e não pode ser enfraquecido por uma lei que versa sobre um único caso concreto, a não ser que essa norma apresente um outro instrumento capaz de assegurar a proteção do meio ambiente com igual ou maior qualidade. Isso, no entanto, não aconteceu no caso sob análise.
Fica evidente o desrespeito ao princípio da separação dos poderes [1], pois, nesse caso, a Câmara dos Deputados está interferindo na atuação típica do órgão ambiental ao tentar impor critérios e procedimentos. Incumbe ao órgão licenciador analisar o caráter poluidor da atividade proposta, o que deve ser feito a partir de um olhar técnico e, claro, levando em consideração os aspectos territoriais. Não se pode ignorar que a “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação” está prevista no inciso VI do artigo 170 da Lei Fundamental como um princípio da ordem econômica.
Em outras palavras, as exigências ambientais devem ser proporcionais aos impactos ambientais gerados, e somente os órgãos ambientais possuem a expertise necessária para discorrer sobre isso. É, ao fim e ao cabo, uma questão de discricionariedade técnica [2], uma vez que o órgão ambiental deverá sopesar e aplicar os critérios mais pertinentes ao caso concreto.
O Projeto de Lei 4.994/2023 parece querer transformar esse licenciamento ambiental em uma mera formalidade, pois impõe um modelo que fraciona e diminui o controle ambiental para um único caso concreto. Importante lembrar que, originalmente, o texto apresentado isentava a atividade da obrigação de se licenciar, não obstante a jurisprudência do STF seja unânime em considerar inconstitucional a dispensa dessa exigência. É preciso levantar os impactos ambientais, com a realização de estudo prévio adequado e a transparência devida, até porque a área envolvida é extremamente delicada em matéria de biodiversidade e de populações tradicionais. Inclusive, é preciso verificar a possibilidade de aplicação da Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais ao caso.
Qualquer estipulação prévia da ausência ou de diminuição do controle ambiental, além de nociva ao meio ambiente, é inconstitucional, já que desrespeita o inciso V do §1º do artigo 225 e o inciso VI do artigo 170 da Lei Fundamental. Não é por outra razão que o STF tem entendido que a atividade econômica não pode se desenvolver sem consonância com a dimensão ecológica [3].
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[1] Esse princípio diz respeito à divisão do poder do Estado em funções diferenciadas, a saber, a executiva, a judiciária e a legislativa. Na modernidade, isso remonta às ideias de Montesquieu, que dividiram a atuação do Poder Público em funções específicas. É que embora seja uno e indivisível, o poder do Estado deve ser exercido de maneiras distintas tendo em vista as suas variadas funções. Cuida-se de um valor tão importante que o art. 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão consagre que “Toda a sociedade na qual a garantia de direitos não estiver assegurada e a separação de poderes determinada não tem Constituição”. O art. 2º da Constituição Federal de 1988 determina que “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
[2] “As limitações à atividade istrativa abrangem, inclusive, a denominada discricionariedade técnica, no âmbito da qual se atribui à istração o poder de fixar juízos de ordem técnica, mediante o emprego de noções e métodos específicos das diversas ciências ou artes. Tal poder é assegurado a algumas agências reguladoras com eminente função técnica, como as que atuam nas áreas de energia elétrica, telecomunicações e exploração de petróleo. Embora se revele possível o controle de legalidade nesses casos, sempre poderá haver alguma margem eminentemente discricionária, particularmente quando presente o intuito de auxiliar a istração quanto aos critérios de conveniência e oportunidade, não parecendo razoável o entendimento de que “nunca” haverá espaço para a discricionariedade” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito istrativo. 34. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 56).
[3] “(…) A ATIVIDADE ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA EM DESARMONIA COM OS PRINCÍPIOS DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. – A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a ‘defesa do meio ambiente’ (CF, artigo 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina. Os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural” (ADI 3540 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 01/09/2005, DJ 03-02-2006 PP-00014 EMENT VOL-02219-03 PP-00528).
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