Licenças ambientais municipais inválidas
18 de fevereiro de 2023, 10h19
A concessão de licenças ambientais é uma medida importante para garantir que empresas e empreendimentos sejam conduzidos de maneira sustentável e responsável, evitando danos ao meio ambiente. No entanto, muitas vezes essas licenças são concedidas de forma inadequada ou inválida pelos municípios, o que pode levar a graves consequências ambientais.

Na realidade do licenciamento ambiental brasileiro apresenta-se, não raro, em todo território nacional, órgãos ambientais municipais com imensa fragilidade istrativa, notadamente, nos municípios financeiramente menos favorecidos mas que, por força constitucional, detém competência para processar os pedidos de licenciamento ambiental de empreendimentos que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente.
A Lei Complementar 140, de 2011, em seu artigo 9º, inc XIV, alínea "a" regulamentou a competência municipal para o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos potencial ou efetivamente poluidores, definida na Constituição.
Uma licença ambiental inválida é aquela que foi concedida sem o devido cumprimento das normas e requisitos legais estabelecidos para a proteção ambiental. Isso pode incluir, por exemplo, a falta de estudos de impacto ambiental adequados, a falta de consulta a órgãos reguladores e à população local afetada, ou a concessão de licenças para atividades que são claramente prejudiciais ao meio ambiente.
As consequências de licenças ambientais inválidas podem ser desastrosas para o meio ambiente e para as comunidades afetadas. Essas licenças podem equivocadamente viabilizar o desmatamento em áreas protegidas, contaminar rios e oceanos, causar danos à saúde da população local e afetar a fauna e a flora, inclusive ameaçada de extinção. Além disso, essas atividades muitas vezes geram conflitos com as comunidades afetadas, que podem ser desalojadas de suas terras ou perder suas fontes de subsistência.
A proximidade, inclusive política, entre empreendedores e autoridades locais são uma das principais razões pelas quais as licenças ambientais inválidas são concedidas, ao que se soma a falta de transparência e participação pública no processo de concessão. Muitas vezes, o poder econômico e a ânsia de gerar empregos e renda em regiões mais empobrecidas têm muita influência no processo de licenciamento ambiental, o que pode levar a decisões injustas e prejudiciais ao meio ambiente.
Soma-se a isto os baixos salários pagos aos servidores públicos municipais, nesses municípios de menor porte, o que afasta dessas posições os profissionais mais experientes e com maior expertise. Como se sabe, licenciar empreendimentos capazes de causar degradação ambiental exige profundos conhecimentos sobre fauna, flora, qualidade da água, substâncias poluentes, clima, solos, socioeconomia, biologia, dentre tantos outros.
Dentre as situações em que se pode verificar a invalidade ou vício no licenciamento ambiental municipal, se pode citar:
- licenças expedidas por municípios que não possuem competência para o licenciamento ambiental por não atenderem requisitos legais, tais como, quando não possuem órgão ambiental capacitado ou conselho municipal de meio ambiente (art. 15, II da LC 140/11);
- licenças expedidas por municípios que não respeitem os critérios de porte, potencial poluidor e natureza caracterizados como de impacto ambiental de âmbito local, extrapolando as tipologias definidas pelo Conselho Estadual (artigo 9º, XIV, a da LC 140/11);
- licenças expedidas por municípios com graves vícios de conteúdo como quando desatendem procedimentos legais estabelecidos, tais como sem exigir o EIA/Rima, quando cabível; ou em desatendimento a parâmetros e padrões definidos pelo Conama ou sem avaliar adequadamente os impactos ambientais de dada atividade.
Juridicamente poderíamos classificar essas situações considerando o seguinte esquema didático: (i) licença inválida por vício de competência assim caracterizada como aquela emitida por município que não detenha órgão municipal legalmente instituído ou conselho municipal de meio ambiente; (ii) licença inválida por vício significativo de mérito assim caracterizada como aquela emitida no exercício regular das competências para o licenciamento ambiental mas que apresente erros significativos no curso de sua tramitação, tais como erro de tipologia caracterizada como de impacto local, deixar de exigir estudo técnico fundamental, como EIA/Rima, deixar de atender procedimento como ouvir órgãos intervenientes, etc; e (iii) licença imprópria caracterizada como aquela que, embora emitida regularmente, mostrou-se inapropriada diante de critérios técnicos, comprometendo a avaliação adequada de impactos ambientais.
A interpretação acerca das consequências para as situações supra indicadas é juridicamente sensível, impactando o pacto federativo e a autonomia dos entes federados, mas também, os setores econômicos envolvidos como beneficiários dessas licenças viciadas, além, é claro, das consequência ambientais e sociais.
Por certo que não há como avançar nesse tema sem adentrar a teoria dos vícios dos atos istrativos para alcançar o efetivo resultado diante de considerações como a ilegitimidade de licenças expedidas pelos entes federativos, no caso desta investigação, quando municipais.
De outra seara, perquire-se sobre a hermenêutica acerca da natureza jurídica da licença ambiental, enquanto espécie de ato istrativo. Apesar de não haver consenso na doutrina pátria, é imperioso apontar que há concordância entre os istrativistas no sentido de que o regime jurídico da licença ambiental possui características específicas e diversas em relação à licença istrativa, tais como sempre possuir prazo de validade preestabelecido e uma carga significativa de discricionariedade, manifestada pela necessidade de o órgão ambiental contemplar o equilíbrio entre o desenvolvimento e a proteção do meio ambiente.
A invalidação de licenças ambientais, em âmbito nacional, está disposta no artigo 19 da Resolução Conama 237/97 que estabelece as situações em que uma licença ambiental pode ser suspensa ou cancelada, como em caso de violação de normas legais, omissão ou falsa descrição de informações relevantes ou superveniência de graves riscos ambientais e de saúde.
Como se vê o Conama não se debruçou sobre vício de competência ou sobre incorreções de ordem técnica ou procedimental, o que exigirá da doutrina aprofundar-se no tema.
Decorre que, por ser a licença ambiental um ato istrativo, e, portanto, um ato jurídico stricto sensu, aplicam-se a ela as teorias relativas aos planos de existência, validade e eficácia e, consequentemente, as postulações referentes aos possíveis vícios dos atos jurídicos. Não sem somar-se a essas teorias a especificidade do direito ambiental que conta com princípios próprios que regem a matéria, tais como os da integridade ecológica, do o equitativo aos recursos naturais, do desenvolvimento sustentável, da precaução, da prevenção e da obrigatoriedade de intervenção do Poder Público, dentre outros.
Assim, buscando o arcabouço jurídico nacional pode-se dizer que a licença inválida por vício de competência do município, apesar de não estar dentre as hipóteses previstas no artigo 19 da Resolução Conama 237/97, trata daquelas situações em que falta ao município requisitos de ordem constitucional para atuar na produção do ato istrativo. Isto porque a Constituição atribuiu competência comum para o licenciamento, conforme regulamento em lei complementar, dispondo esta, por sua vez, sobre os requisitos do órgão ambiental capacitado e da existência de conselho municipal de meio ambiente.
Nessa seara, o vício de competência, quando decorrente de uma dessas situações, implica na concessão de um ato istrativo que, de origem, é inconstitucional, tornando inválida a licença, senão inexistente, já que não há que se falar na sustentação de um ato istrativo contra o ordenamento constitucional.
Neste caso, a invalidação dessa licença pode se dar pelo órgão originariamente competente ou pelo poder judiciário. Uma vez inválida, essa licença não produz efeitos no mundo jurídico, não autorizando a instalação ou operação de empreendimentos que são considerados irregulares, estando sujeitos as sanções legais.
Quanto as licenças inválidas por vício significativo de mérito, observa-se que são hipóteses que afetam a substância do ato, tornando-o vazio em conteúdo. É o caso clássico de se deixar de exigir um EIA/Rima para empreendimento de significativo impacto ambiental ou deixar de ouvir um órgão interveniente, como as unidades de conservação afetadas pelo empreendimento, em desatenção ao artigo 225 da Constituição e o artigo 36 da Lei 9.985/00, respetivamente. Faltando substância essencial e meritória ao ato istrativo, a consequência é a sua invalidade, que de igual sorte, não poderá produzir efeitos jurídicos. No caso da falta de exigência do EIA/Rima também estar-se-á ferindo, diretamente, o texto constitucional.
Entre as duas hipóteses situa-se a circunstância de que, no primeiro caso, caberá ao órgão originariamente competente adotar as medidas visando a correção da situação, no estado em que ela se encontrar, no momento em que a invalidade da licença for reconhecida. É dizer, caso o empreendimento já tenha sido instalado, deverão ser avaliados os impactos ambientais, subsequentemente, por meio de procedimento de licenciamento ambiental corretivo. Não sendo viável ambientalmente, o empreendimento deverá ser descomissionado, não tendo a licença declarada inválida decorrido em direitos a serem exercidos pelo interessado.
Já há hipótese da licença inválida por vício significativo de mérito, vício portanto, substantivo, o próprio órgão que a produziu, poderá declarar o vício de ofício, anulando os atos istrativos decorrentes, como também poderá fazê-lo o poder judiciário. Os atos produzidos em desconformidade ou aos quais faltou o mérito e todos os posteriores a este primeiro deverão ser anulados e refeitos, de modo a serem corrigidos.
Numa ou noutra hipótese, os demais órgãos ambientais da federação poderão atuar em caráter supletivo para paralisar, embargar ou suspender a atividade, em atenção aos princípios da precaução e da obrigatoriedade da intervenção do poder público para conter danos ambientais reais ou potenciais.
No caso das licenças impróprias, por vício de adequação à melhor técnica, em que não foram devidamente antevistos, mitigados ou prevenidos os impactos ambientais decorrentes da atividade, inclusive em hipótese de negligência ou imperícia do órgão ambiental licenciador, aplica-se integralmente o disposto no artigo 19 da Resolução Conama 237/97, é dizer que, havendo violação de normas legais, omissão ou falsa descrição de informações relevantes ou superveniência de graves riscos ambientais e de saúde, a licença poderá ser suspensa ou cancelada, pelo próprio órgão emissor ou pelo poder judiciário.
Em qualquer das hipóteses, caberá aos demais entes federativos, por meio de seus órgãos ambientais, atuar para conter possíveis danos, por meio do exercício do poder de polícia supletivo diante de qualquer das hipóteses que se possa verificar.
Tal exegese está amparada, por aplicação analógica, ao preceito previsto no artigo 17 §3º da LC 140/11 que atribui o exercício do poder de polícia — comum — a todos os entes federativos para fiscalizar empreendimentos e atividades efetiva ou potencialmente poluidores, ressalvando a prevalência do órgão licenciador.
Em outras palavras, se o órgão licenciador, em qualquer das hipótese, atuar com vício na edição de uma licença ambiental, poderão os demais órgãos integrantes dos poderes executivo ambiental intervir para cessar o dano ou potencial dano. O que diferenciará as hipóteses, entre si, é que a prevalência de atuação sempre será do órgão originariamente competente para processar e emitir a licença ambiental.
Que se diga que, para o combate a concessão de licenças ambientais inválidas, é fundamental que haja transparência e participação pública no processo de licenciamento. Como também será necessário que os órgãos ambientais estejam capacitados tecnicamente e tenham autonomia para avaliar as atividades propostas e, quando necessário, negar a concessão de licenças. Além disso, é importante que as comunidades locais sejam consultadas e tenham voz no processo, para que suas preocupações e interesses sejam levados em consideração.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!