Opinião

Os equívocos na interpretação da "nova" Lei nº 14.365/2022

8 de janeiro de 2023, 6h16

As leis que reconhecem e/ou concedem direitos devem ter interpretação ampliativa. Esse o postulado primário que se extrai da CF e do sistema por ela adotado, pois, centrados no princípio da dignidade da pessoa humana, que impõe ampla dimensão à expressão "lei penal", contida no artigo 5º, XL, da Carta Federal de 1988 ("a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu").

A Lei nº 14.365/2022, que trouxe preciosas alterações ao Estatuto da Advocacia, não tem sido bem compreendida no campo da decretação de nulidade de atos, em qualquer esfera de responsabilização, que estejam assentados em análise e alegação de fraude em contratos privados de prestação de serviços jurídicos e pagamento de honorários advocatícios.

Referida lei nova, posterior e benéfica, que favorece o executado/réu, veicula normas de cuja incidência resulta importante fato jurídico, pois, prescreve sanção de nulidade de atos judiciais, possuindo aspecto inegavelmente material, apto a conformar situações jurídicas substanciais, com determinação de sua aplicação em qualquer área de responsabilização, em qualquer área dogmática do Direito, pouco importando estar contida no Estatuto da Advocacia ou em lei penal específica.

A Lei nº 14.365/2022 tem natureza de norma mista, com marcante conteúdo material, pois, trata de relações jurídicas substanciais entre sujeitos e aponta a opção do ordenamento jurídico entre interesses conflitantes, ou seja, aponta uma opção prévia de prevalência entre os interesses materiais das partes. Bem por isso, exige respeito e cumprimento a procedimentos preliminares para procedibilidade ou processabilidade de ação penal antes de ser proferida sentença de mérito pelo magistrado, sob pena de nulidade, como se tem em diversos artigos do Código Penal (e.g. artigo 100 e 171) e em diversas leis esparsas (e.g. Lei nº 11.340/2006).

Sendo posterior e favorecendo o executado/réu, a exigência de condição de procedibilidade ou processabilidade para a ação penal posta na Lei n. 14.365/2022 se dá por força e mérito da própria Constituição Federal (inciso XL do artigo 5º da Lei Maior), inexistindo interferência nas áreas de competência constitucional do Poder Judiciário, mas mera atuação do Poder Legislativo.

Como já assentado e consolidado pelo eg. Supremo Tribunal Federal, a retroatividade de norma mais benéfica é uma imposição constitucional, pouco importando as características da lei ordinária que a veicule; o Parágrafo único do artigo 2º do Código Penal assenta que a lei posterior, "que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado". 

O princípio constitucional da retroatividade benéfica, diante da prevalência vertical das normas constitucionais, tem aplicação automática e imediata e afasta a necessidade de outras previsões. Não obstante, esse postulado também está positivado, expressamente, no Parágrafo único do artigo 2º do Código Penal.

Outro lado, a aplicação da Lei de 2022 no campo penal não necessitaria de previsão expressa, mas isso também fez a nova lei ao explicitar sua aplicação em todas as áreas dogmáticas do Direito, conforme consta do §16 do artigo 7º da Lei nº. 8.996/1994, em sua nova redação e acréscimos, que espanca qualquer possível dúvida ao afirmar ser nulo, em qualquer esfera de responsabilização, o ato praticado com violação da competência privativa do Conselho Federal da OAB.

Ocorre, porém, que o Ministério Público tem alegado inconstitucionalidade dos §§14, 15 e 16, acrescidos ao artigo 7º da Lei nº 8.906/1994 pela nova Lei nº 14.365/2022 sob fundamento de: 1) haveria imunidade à jurisdição criminal em favor de advogados acusados de simularem contratos de honorários; 2) haveria impedimento ao juiz para apreciar acusações criminais fundadas em simulação de contratos; 3) não haveria norma penal, mas normas processuais e não materiais, que não retroagiriam; a abrangência seria exclusivamente disciplinar; 4) as alterações legislativas não se aplicariam a processos submetidos à jurisdição criminal diante da competência constitucional do Poder Judiciário; 5) haveria, em especial violação do princípio do Juiz Natural (Inciso LXI, do artigo 5º, da Constituição).

Diante da identidade democrática, liberal e garantista da Constituição Federal de 1988, ao requerer cumprimento dos comandos da Lei nº 14.365/2022, não se estará tentando obter imunidade de jurisdição criminal, como tem alegado o MP, em alguns casos, mas que, nos casos de alegação de simulação de contratos privados de prestação de serviços jurídicos e pagamento de honorários advocatícios, se tenha, primeiro, a manifestação do Conselho Federal da OAB sobre sua validade e legalidade; ao depois, o juiz criminal poderá julgar como bem entender, prestando a jurisdição dentro de sua competência constitucional, considerada a realidade material dos autos.

De fato, a advocacia, em especial a defesa criminal, não diz que não cabe mais "ao juiz apreciar acusações criminais fundadas em simulação de contratos para recebimento de propina, desvio de recursos públicos e lavagem de dinheiro". Apenas diz e afirma que, antes de analisar e decidir, de proferir sentença, deve ser ouvido o Conselho Federal da OAB. Apenas isso. Nada mais. A questão da retroatividade benéfica é inerente à Constituição Federal e se opera por força, mérito e arte da própria Carta de Direitos a independer da lei ordinária em que é veiculada a norma mais benéfica. Esse o entendimento do eg. STF.

A Suprema Corte nos ensina que a principal diretriz hermenêutica deve ser a conferência do máximo de eficácia à Constituição, especialmente nos dispositivos que revelem a identidade liberal e democrática da Carta de Direitos. Nesse sentido, o ministro Ayres Brito afirma que a retroatividade benigna opera de pronto, "não por mérito da lei em que inserida a regra penal assim mais favorável, porém por mérito da Constituição mesma" (voto-vista do ministro AYRES BRITO  redator para acórdão  no julgamento do RE 596.152/SP  RG, Plenário, DJe de 13/02/2012) [1].

Esse mesmo entendimento se viu reiterado e consolidado nos autos do STF  HC 180.421/SP  AgR, relator ministro Edson Fachin (DJe de 06/12/2021), que ensina: "A incidência do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal, como norma constitucional de eficácia plena e aplicabilidade imediata, não está condicionada à atuação do legislador ordinário".

Especificamente em relação à novidade legislativa, observa-se que a Lei 14.365/2022, na verdade, não é uma mera e estrita norma processual istrativa, mas norma de caráter misto, com expressa determinação de aplicação em qualquer área dogmática do Direito [2]. Nesse sentido, as normas de caráter misto  processual e material  têm aplicação retroativa sim. No caso, a própria lei determina sua aplicação em qualquer esfera de responsabilização, ou seja, em qualquer área do Direito, o que afasta qualquer alegação de não aplicação na área criminal/penal, bem assim, sua não retroatividade.

Sob o viés estritamente constitucional, as normas veiculadas pela nova Lei n. 14.365/2022 não afrontam dispositivos constitucionais, pois, busca apenas instruir o feito com manifestação de quem detém competência própria para analisar e decidir sobre contratos privados de prestação de serviços jurídicos, porém, sem impedir, após juntada dessa manifestação aos autos, análise e sentença fundamentada do juízo criminal, na qual considerada a manifestação preliminar da OAB.

Venia devida, não se tem ofensa a qualquer competência constitucional do Poder Judiciário. Aliás, não se deve confundir competência com manifestação preliminar da OAB: esta deverá anteceder a manifestação definitiva do Judiciário, que será exercida, integralmente, após juntada da manifestação do Conselho Federal.

De igual modo, não se tem ofensa ao juiz natural, pois, o juízo processante é que proferirá sentença, absolvendo ou condenando, porém, após instrução com a manifestação do Conselho Federal da OAB sobre contratos de prestação de serviços e seu efetivo cumprimento.

Venia devida, momento algum a Lei nº 14.365/2022 afasta o princípio do Juiz Natural, o juízo adequado para o julgamento de determinada demanda; momento algum afirma que OAB seria "órgão integrante do Poder Judiciário"; muito menos busca o exercício de jurisdição privativa de juízes e tribunais. A nova lei apenas exige, com antecedência à sentença conclusiva, instrução do processo  qualquer processo em que se conteste ou se impute fraude baseada exclusivamente em contrato de prestação de serviços jurídicos e pagamento de honorários  com manifestação da OAB, preliminar à sentença de mérito. Portanto, não se tem qualquer ofensa às competências constitucionais que definem o conteúdo da função jurisdicional; não se tem desconsideração da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Ora, as competências jurisdicionais constitucionais, com todas as venias, não impedem ou afastam a possibilidade de manifestação anterior sobre contratos jurídicos privados e pagamento de honorários pelo órgão de classe competente. Portanto, a função jurisdicional não estará afastada com o cumprimento integral da nova lei, pois, não se tem proibição de apreciação judicial.

Nessa toada, veja-se que a Lei nº 14.365/2022 não faz exigência de "fase istrativa", mas apenas veicula norma material de instrução processual antes de se prolatar sentença. Portanto, não se há de confundir exigência de esgotamento da esfera istrativa para ingresso em juízo, com a situação estabelecida pela Lei nº 14.365/2022, que apenas exige, antes de sentença final e conclusiva, manifestação da OAB sobre a validade e legalidade de contratos privados de serviços jurídicos. Aqui, venia devida, não se tem aderência temática com o quanto debatido e decidido nos autos da ADI 2.160/DF (redator para acórdão ministro Marco Aurélio, DJe de 23/10/2009).

Outro prisma, a manifestação obrigatória e anterior da OAB, em se tratando de processos em que se debate a legalidade de contratos privados de prestação de serviços jurídicos e pagamento de honorários, não ofende o princípio da "Reserva Geral de Jurisdição" ou de "Reservas Específicas de Jurisdição".

De fato, revela-se equivocado entendimento no sentido de que a reserva de jurisdição afastaria a possibilidade de pronunciamentos não jurisdicionais sobre contratos privados de prestação de serviços advocatícios, pois, a manifestação anterior da OAB não se constitui ou pretende exercer a "função de julgar", reservada ao magistrado; pretende instruir os autos com entendimento do órgão de classe sobre a validade e legalidade dos contratos privados de serviços jurídicos sem adentrar no exercício conclusivo da função jurisdicional, não obstaculizando o exercício pleno dessa função.

Nessa trilha, sem qualquer sentido dizer que se estaria a retirar do juízo criminal a competência para dispor, analisar e decidir sobre fato criminoso, pois, o que a lei exige é instrução dos autos com entendimento anterior da OAB sobre validade e legalidade dos contratos privados de prestação de serviços jurídicos e pagamento de honorários antes de se lançar sentença nos autos, o que não ofende o inciso XXV do artigo 5º da Constituição Federal ("a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito").

Há que se indagar: qual seria o empecilho para analisar e sentenciar os autos, posto pela nova lei, se o magistrado terá plena liberdade de o fazer após juntada da manifestação da OAB?

Sobre afronta à independência das instâncias istrativa e penal, venia devida, o §16, acrescido ao artigo 7º da Lei nº 8.906/1994 pela nova Lei nº 14.365/2022, impõe sua aplicação em qualquer área de responsabilização, o que afasta essa singela alegação. Portanto, inexiste afronta, privilégio, imunidade à jurisdição criminal ou teratológica inversão hierárquica de subordinação do Poder Judiciário à OAB.

Por fim, a aplicação da Lei 14.365/2022 no âmbito da jurisdição criminal não afronta a prerrogativa do MP exercer, com exclusividade, a ação penal pública (artigo 129, I, da Constituição Federal). Isso porque já se terá a denúncia e o processo; já se terá, eventualmente, o primeiro recebimento da denúncia; apenas não se poderá ter prolação de sentença final e conclusiva sem a manifestação anterior da OAB nos casos de ação penal fundamentada em fraude contratual ou sua nulidade, relativamente a contratos privados de serviços jurídicos.

Na verdade, de conhecimento público, nossa Constituição está assentada no princípio acusatório, que decorre do due process of law (artigo 5º, inciso LIV, CF), exigindo, sempre, que o réu seja considerado sujeito e não objeto da persecução penal, com preservação da imparcialidade do Judiciário, da paridade de armas, da isonomia e do devido processo legal (STF – ADI 4.414, Plenário, relator ministro Luiz Fux, DJe de 17/6/2013; STF  ADI 5.104  MC, Plenário, relator ministro Roberto Barroso, DJe de 30/10/2014), de modo que a exigência legal de apresentação de entendimento preliminar da OAB sobre a validade e legalidade de contratos privados de prestação de serviços jurídicos e pagamento de honorários é consentânea e se harmoniza com nossa realidade constitucional.

Em conclusão, os reclamos, com todas as venias, mais uma vez revela a face cruel do punitivismo que vem de imperar em nossas terras, o que, isso sim, agride e ofende o caráter democrático, liberal e garantista da Constituição Federal de 1988; em especial, os reclamos não se compatibilizam com o princípio constitucional da dignidade da pessoa, do ser humano, do cidadão (artigo 1º, inciso III)

Aguarda-se definição pelo eg. STJ, no campo infraconstitucional, e pelo eg. STF sobre a retroatividade das normas veiculadas pela nova Lei nº 14.365/2022 diante da força e do mérito da própria Constituição Soberana (inciso XL do artigo 5º).

 


[1] No sentido de que a retroatividade benéfica opera de pronto e por mérito da própria Constituição: AgR no Agravo de Instrumento nº 794.971 RJ  Plenário, publicação no DJe do dia 28/06/2021, relator Originário, ministro Joaquim Barbosa; Relator por atribuição, ministro Roberto Barroso; Redator para acórdão, min. Marco Aurélio (no mesmo sentido: RE nº 452.991, relator ministro MARCO AURÉLIO, DJ 21/08/2009; HC nº 97.602M relator ministro CARLOS BRITTO, DJ 24/04/2009; RHC nº 93.469, relator ministro CARMEN LÚCIA, DJ 03/04/2009; HC nº 93.669, relator ministro  RICARDO LEWANDOWSKI, DJ 16/05/2008).

[2] Cf. §16, que fora acrescido ao artigo 7º da Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia) pela nova Lei nº 14.365/2022.

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