Opinião

Os desafios do novo governo na área de segurança pública

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  • é doutora em História da Ciência pela PUC-SP professora do programa de pós-graduação em Direito e Políticas Públicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás advogada e parecerista.

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10 de janeiro de 2023, 15h16

A segurança pública, no Brasil, é a área com os mais sérios problemas e as mais difíceis soluções. É nela que se concentram as raízes mais aprofundadas da desigualdade, do autoritarismo, do populismo, do racismo, da exclusão e da negação de direitos. É a área mais impermeável aos direitos humanos e de mais difícil efetividade das regras democráticas e das garantias fundamentais constitucionalmente asseguradas a toda pessoa humana. Não é circunstancial o fato de que o bolsonarismo tenha forte sustentação nas ideologias ainda predominantes no setor da segurança, polícias e Forças Armadas.

O novo governo Lula está se colocando no desafio de reconstruir o Brasil e a área mais difícil de ser "reconstruída" é justamente a da segurança. O primeiro problema é que não temos o que "reconstruir" nessa área; o segundo é saber se o novo governo sabe o que "construir" em termos de segurança pública; por fim, o terceiro problema é saber se, além de saber e de ter vontade política, o governo terá força política para implementar as mudanças desejadas na segurança pública.

Desde a redemocratização, um novo paradigma democrático de segurança vem andando a os lentos e curtos, enquanto a concepção autoritária já corre há mais tempo e com mais força e velocidade. Vigoram no país dois paradigmas opostos, que disputam o predomínio das políticas de segurança: de um lado, uma concepção de segurança pública fundada na ideia de guerra e eliminação do inimigo, de violação de direitos a pretexto de defender a sociedade; por outro, a concepção de segurança como direito de todos, prestação de serviço público e preservação de direitos. Podemos dizer que essa disputa paradigmática se traduz, de um lado, em uma concepção de "política de segurança pública" e, de outro, em "política pública de segurança".

Essa agem de uma "política de segurança pública" (que já vigora no País desde as primeiras décadas do século XX), para "políticas públicas de segurança" (que começaram a ser pensadas no século XXI), tem se deparado com desafios muito difíceis de serem enfrentados. A ascensão do bolsonarismo parece nos mostrar o quanto realmente foi — e é — difícil adotar uma política de segurança pública civil, democrática e republicana.

Mudanças na área da segurança pública são sempre muito difíceis para qualquer governo, por uma série de questões institucionais, estruturais, ideológicas, econômicas e jurídicas. Para piorar, o Brasil, enquanto nação, não tem clareza para onde deve ir em termos de segurança pública, pois não tem planejamento de médio e longo prazo. Os políticos não sabem o rumo que devem dar à segurança pública, a fim de construir uma sociedade democrática e justa. Assim, a segurança costuma ser tratada como questão de governo, e não como questão de Estado. Governos de direita costumam aprofundar os problemas de segurança pública com políticas de apoio a ações antijurídicas, enquanto governos mais à esquerda tem medo ou não têm força para interferir na área. Eis que a segurança não é uma questão de vontade política apenas, mas, principalmente, de força política.

Se o governo Lula tiver disposição para implementar mudanças estruturais na área da segurança deve começar por entender que a segurança é a área mais atrasada em termos de política pública. Deve também reconhecer que, em termos de produção de conhecimento, há especialistas e pesquisadores que deveriam ser consultados e ouvidos, ou seja, é preciso abandonar os achismos e ar a pautar as escolhas e decisões em evidências científicas. Esse tipo de conhecimento existe e ele não está na área do Direito. Não são os juristas que estudam como se reduz a violência. Pesquisas empíricas dessa natureza estão em diversas outras áreas do conhecimento. Fazer segurança pública em consonância com as regras jurídicas mínimas que se espera serem respeitadas é um grande desafio, porém, o campo da segurança é muito mais amplo do que os juristas alcançam. Daí um ministério específico da segurança pública ser um primeiro o importante.

Outro grande desafio para o novo governo é a questão das polícias. Temos muitas polícias, é verdade, mas nem por isso eu diria que temos polícias demais, pois há uma lógica de pesos e contrapesos que faz bem ao sistema processual acusatório. É certo que a segurança pública não pode ser vista apenas como um problema de polícia, mas não se faz segurança pública sem polícia, e o grande problema é a qualidade da polícia. Não estou falando da qualidade técnica. O problema não é apenas o desenho constitucional, a divisão de atribuições, o preparo técnico, a inteligência, a tecnologia, os instrumentos de trabalho, o treinamento, a educação e tampouco a remuneração.

O que desafia a democracia no Brasil é a qualidade das polícias pelo seu grande déficit democrático. A cultura autoritária, antidemocrática, antipovo, violadora dos direitos humanos e truculenta são os verdadeiros problemas, que se aliam à falta de planejamento em médio e longo prazo. A falta de políticas públicas de segurança não é a causa do problema, mas, sim, ao contrário, o seu sintoma. Não é possível fazer planejamento em segurança pública com as diretrizes democráticas impostas pela Constituição em um país cujos governantes apoiam, aplaudem e incentivam a violência policial. As forças de segurança se sentem impermeáveis aos comandos constitucionais. O controle dessa polícia é o grande desafio do Brasil, que talvez seja um sonho ainda distante demais para ser vencido em quatro anos.

Autores

  • é professora da Faculdade de Direito da UFG, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Direito e Políticas Públicas (PPGDP-UFG), presidente da Comissão de Direito Criminal da OAB-GO e associada plena do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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