Opinião

Lições argentinas: o julgamento de 1985 e as 'Leis do Perdão'

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  • é professor de Direito Constitucional da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF-GV) doutor em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador da Clínica de Direitos e Jurisdição da UFJF.

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10 de janeiro de 2023, 21h36

Em 2022, a Argentina conquistou o tricampeonato mundial de futebol, tendo o povo vizinho uma justa alegria, em meio a um cenário político e econômico de tantas agruras. Em contraponto, no Brasil o ano foi marcado pelo falecimento do Rei do futebol.

Se para os hermanos, assim como para nós, o futebol é apontado, por vezes, como um outro "ópio do povo", ele é também um importante elemento de identidade coletiva, de efeitos políticos que não devem ser ignorados. Pelo menos, é o que ensinam as experiências históricas de Brasil e Argentina, em que tanto a ditadura militar brasileira instrumentalizou politicamente a conquista da Copa do Mundo de 1970, quanto a ditadura de Videla se valeu do bicampeonato argentino de 1978 como peça de propaganda do governo [1].

Contudo, se no país vizinho, o contexto político atual é de ampla rejeição ao regime antidemocrático, e os hermanos podem comemorar a conquista esportiva sem evocações aos elementos políticos daquele período ditatorial, o mesmo não se poderia dizer do Brasil. Aqui, temia-se até mesmo que eventual conquista do hexacampeonato fosse utilizada como lastro mobilizador da população para um golpe de Estado [2], hipótese que, apesar de caricata (ou, talvez, exatamente por isso), não é difícil de imaginar, diante de algumas manifestações após o resultado das eleições presidenciais.

As ligações históricas entre o futebol e seu uso político-cultural na América Latina são amplamente conhecidas. Foi sintomático que, na Argentina, no dia 24 de março de 1976, o próprio dia do golpe de Estado, a programação de rádio e televisão foi interrompida para a leitura dos "comunicados" da Junta Militar que assumia o controle do país. Os comunicados informavam as primeiras medidas autoritárias do regime, como a dissolução do Congresso Nacional, a cassação de políticos e juízes, e a suspensão de direitos fundamentais, como as liberdades de manifestação e reunião. Contudo, após 22 comunicados proibitivos, o 23º era curiosamente permissivo, autorizando a transmissão do jogo entre Argentina e Polônia, programado para aquele mesmo dia, na Europa.

Porém, os paralelos entre Brasil e Argentina parecem cessar aí, em especial, quanto a como ambos os países lidaram com a herança autoritária após suas respectivas redemocratizações, a despeito das conquistas futebolísticas que se seguiram.

Nesse sentido, o ponto talvez mais emblemático seja a forma bem distinta como o Poder Judiciário dos dois países julgaram as leis de anistia.

Em 2005, a Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina julgou inconstitucional as chamadas "Leis do Perdão", como ficaram conhecidas as duas leis promulgadas durante o governo eleito de Raúl Alfonsín (1983-1989), a "Lei do Ponto Final" (1986), que estabelecia um prazo-limite de 60 dias para o ajuizamento de ações contra atos da repressão militar, e a "Lei de Obediência Devida" (1987), que impediu a responsabilização de oficiais subalternos.

A decisão da Suprema Corte foi por um "placar" folgado de 7 a 1, com uma abstenção. Após o julgamento, o ex-presidente Raúl Alfonsín celebrou a decisão da corte, dizendo que a democracia argentina estava, agora, "definitivamente consolidada". Interessante notar como na avaliação de Alfonsin, que foi o primeiro presidente eleito após o fim da ditadura em 1983, a consolidação da democracia somente se completou com a decisão judicial, ao abrir a possibilidade de responsabilização pelas violações de direitos praticadas durante o regime ditatorial.

Já no Brasil, em 2010, a ADPF 153, ajuizada pela OAB, que pedia a declaração de não recepção da Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79), foi julgada improcedente pelo Supremo Tribunal Federal, por 7 a 2. Não apenas o Supremo Tribunal foi amplamente favorável ao reconhecimento da compatibilidade da anistia brasileira com a Constituição de 1988, como o ministro Cezar Peluso, então presidente da corte, qualificou seu questionamento judicial como anacrônico [3].

Na verdade, o caso argentino é ainda mais rico. Pouco tempo após a redemocratização argentina em 1983, alguns dos condutores da ditadura militar já eram levados ao banco dos réus, incluindo o general Jorge Rafael Videla, que governara o país entre 1976 e 1981.

Nesse ponto, é simbólico que 2022 tenha sido não apenas o ano da conquista da Copa do Mundo pela Argentina, o que ocorreu pela primeira vez em 1978, durante a ditadura de Videla, mas também o ano do lançamento do filme Argentina, 1985, que trata, exatamente, do processo judicial contra os líderes da ditadura militar daquele país.

O filme dramatiza as dificuldades e riscos enfrentados pela precária e jovem equipe do promotor Julio Strassera para conduzir a acusação na Justiça civil contra os membros das três primeiras juntas militares, pela prática de crimes como homicídio, sequestro e tortura.

Ainda que o fio condutor esteja na figura do promotor, o filme destaca o trabalho da sua pequena equipe composta basicamente de jovens entre 20 e 27, na coleta dos depoimentos das vítimas da repressão. Sem romantismos ideológicos, podemos mesmo dizer que a equipe inexperiente representa a própria juventude da frágil democracia argentina na busca por justiça contra seus algozes.

As cenas do julgamento ressaltam os depoimentos das vítimas, que expam para toda a sociedade as atrocidades praticadas pelo regime. O filme também destaca como a cobertura midiática do julgamento foi importante para sensibilizar a sociedade para o julgamento, que, mesmo conduzido de forma técnica, possuiu forte simbologia política.

No momento atual, em que antigas e novas gerações flertam com posicionamentos antidemocráticos, Argentina, 1985 é um filme necessário, inclusive, para o Brasil, em que a praxe histórica parece ser a de sempre tentar contemporizar com o intolerável, de conciliar com o inconciliável, atribuindo ao mero ar do tempo a função de superar os erros ados.

Reação e ameaças sempre sobrevirão a qualquer proposta de revisar o ado. As próprias "Leis do Perdão" julgadas como inconstitucionais pela Suprema Corte argentina já foram uma reação ao julgamento de 1985, tendo sido uma saída política diante dos levantes militares contra a perspectiva de responsabilização pelo regime democrático recentemente reinstalado.

Agora, em 2023, em que um novo governo se inicia, com promessas de reconstrução institucional, o filme oferece mais do que entretenimento de qualidade — ele fornece uma lição histórica do papel das instituições e agentes públicos diante daqueles que atentam contra o Estado Democrático de Direito.

Apesar de a decisão do STF de 2010 ter sido pela constitucionalidade da lei de anistia, ainda pende de julgamento Embargos de Declaração interpostos pela OAB, sob a alegação de omissão do tribunal quanto à jurisprudência da Corte Interamericana de rechaço a leis de autoanistia, como a brasileira. Por serem embargos de declaração, não são esperados efeitos substancialmente modificativos, pelo menos no bojo da própria ADPF 153, entretanto, esperamos que mais do que a recente conquista futebolística, o filme argentino de 2022 sirva de exemplo para o estado de coisas no Brasil, inclusive para o próprio STF.

Por certo, derrotas adas podem ser úteis se servirem de alerta para a necessidade de revisão dos erros cometidos. Nessa linha, os atuais questionamentos e reações afrontosas aos mais básicos procedimentos democráticos indicam que a cultura e as práticas autoritárias continuam persistentes no Brasil, como erros não corrigidos.

Um dos pontos altos do filme está na fala final da acusação, quando o promotor Strassera, defrontando os mudos ditadores postos no banco dos réus, diz "Agora, que o povo argentino retomou o governo e o controle de suas instituições, eu assumo a responsabilidade de declarar, em seu nome, que o sadismo não é uma ideologia política, nem uma estratégia de guerra, mas uma perversão moral", e conclui seu discurso com uma frase-emblema: "Senhores juízes, nunca mais".

O Estado de Direito e a democracia, assim como o bom futebol, dependem do respeito às regras do jogo, da dedicação de seus jogadores e da punição dos seus violadores, para que a alegação de estar jogando dentro das "quatro linhas da Constituição" seja efetiva, e não apenas um recurso retórico de autolegitimação e indulgência. As experiências esportiva e jurídica demonstram que, quando os juízes são omissos, o respeito às normas é substituído por sadismo e selvageria.

O filme nos lembra que, na reconstrução da identidade argentina, entre 1978 e 2022, não houve apenas 1986, mas também 1985.

Que 2023 seja para nós brasileiros também um período para a revisão e correção de erros, de enfrentamento do ivo ditatorial ainda persistente, um interregno para maiores conquistas, no futebol e na democracia.

 


[1] Sobre a relação das ditaduras latino-americanas do período com o futebol, recomenda-se o documentário “Memórias do chumbo – o futebol nos tempos do Condor”.

[2] Pelo menos nesse sentido, foi a avaliação do ex-jogador e comentarista Casagrande. BOLSONARO usaria o título da Copa do Mundo para motivar golpe, afirma Casagrande. Folha de S.Paulo, 19 dez. 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/12/bolsonaro-usaria-o-titulo-da-copa-do-mundo-para-motivar-golpe-afirma-casagrande.shtml. o em: 25 dez. 2022.

[3] VALE a anistia: Supremo afasta revisão da Lei de Anistia. ConJur, 29 abr. 2010. Disponível em: /2010-abr-29/julgamento-acao-revisao-lei-anistia-empatado. o em: 30 dez. 2022.

Autores

  • é professor adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Doutor em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Coordenador do Grupo de Pesquisa CNPq Jurisdição Constitucional Democrática. Pesquisador do Grupo CNPq Observatório da Justiça Brasileira (OJB/UFRJ). Coordenador da Clínica de Direitos e Jurisdição (CDJ/UFJF). Associado da Rede Brasileira de Direito e Literatura (RDL).

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