Opinião

Validade da investigação defensiva como meio de prova

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26 de janeiro de 2023, 7h04

Já é ado o tempo em que a advocacia, notadamente a criminal, não pode ter pautada sua atuação apenas num cenário de ação e reação. Desaconselhável, como outrora acontecia, o advogado ficar numa posição contemplativa, aguardando que seja finalizada a produção de provas e apresentada uma acusação formal, para daí avaliar qual rumo trilhará.

O tempo muda. As coisas evoluem. Centenários são os processos escritos à mão [1]; vieram então as máquinas de escrever, havendo aí uma curiosidade: sendo a palavra — oral ou escrita  simbolicamente a "arma" do advogado [2], a máquina de escrever começou a ser produzida por uma empresa que se dedicava exatamente à produção de armas [3]. Com isso, naturalmente os órgãos públicos começaram a utilizar da máquina datilográfica nas suas atividades e registros, migrando os processos judiciais da escrita à mão para a mecânica. Em meados nos anos 1990, com a popularização dos computadores, ocorreu uma nova revolução, que aposentou os velhos teclados e fez surgir o armazenamento de dados em hard disks e visualização dos textos em telas. Hoje, a tendência mundial  da qual não escapa o Poder Judiciário  é a eliminação por completo do papel, substituídos pelo sistema binário de informação.

A advocacia acompanhou o a o esse desenvolvimento  e assim continua. Além do aspecto material, os processos também sofreram uma evolução natural. Os novos meios de prova  tais como o exame de DNA, do cruzamento de dados bancários e financeiros, das interceptações telefônicas, dos relatórios de triangulação de Estação Rádio Base (ERB), dos relatórios de Sistema de Investigação de Registros Telefônicos e Telemáticos (Sittel), por exemplo , forçaram, principalmente ao advogado criminal, a entender que não há mais lugar a um ser estático quando o assunto é a prova no processo penal lato sensu.

Não há mais espaço para o "defensor de gabinete" [4]. A inércia cedeu vez ao dinamismo. Nesse contexto surge o termo "investigação defensiva", compreendida como "atividade de coleta de elementos desempenhada pelo advogado ou Defensoria Pública (…) em vistas a proporcionar a imediação da defesa com o conteúdo probatório e permitir a elucidação do fato criminoso" [5]. Nas palavras de Baldan, tal atividade servirá para o "pleno exercício da ampla defesa do imputado em contraponto à investigação ou acusação oficial" [6].

Entretanto há uma importante incompletude nessa definição. Ao restringir a atividade investigatória à defesa do "investigado" ou "acusado", os dois autores olvidam a figura da vítima, que de igual sorte pode constituir um advogado para lhe patrocinar os interesses.

 Assim, melhor definição  que inclui a figura da vítima  é a que explicam investigações defensivas como "aquelas promovidas pelos defensores do acusado, do investigado ou até mesmo da vítima, em qualquer momento da persecução criminal, a fim de buscar elementos de convicção que favoreçam os interesses de seus patrocinados" [7]. Tanto é verdade, que o Provimento nº 188/18 da OAB estabelece [8] que a Investigação Defensiva se destina também para compor pedido de instauração de inquérito e para recebimento de denúncia ou queixa.

Referências legais acerca da investigação criminal se encontram notadamente na Itália e nos Estados Unidos, os quais serviram de referência para a formulação de uma alteração futura no nosso código de processo penal.

Na Itália, a necessidade de os advogados disporem de mecanismos legais para se contraporem ao monopólio estatal da investigação surgiu com a popular "operação mãos limpas", no final da década de 1990. Ainda que a intenção fosse o necessário combate à criminalidade (lembrando que a advocacia não defende o crime) [9], percebeu-se excessos da acusação, que desrespeitavam o fair play, tal como o overcharging [10].

Para contrapor essa blitzkrieg, formou-se um consenso coletivo de que era necessário dotar a defesa de instrumentos hábeis. Disso surgiu pela primeira vez a expressão "investigação do defensor", na alcunhada Lei Carotti (Lei nº 479, de 16/12/99), a qual se destinou a ser o primeiro texto legal italiano a codificar a investigação defensiva. Após, foi com a Lei nº 397/2000 que se especificaram mecanismos de investigação defensiva. Azevedo e Baldan explicitam a importância dessa Lei, a qual ou a prever expressamente as diligências investigativas que poderiam ser realizadas pelo defensor [11].

O simples fato de se dedicar um estudo apartado para a investigação defensiva nos EUA causa uma certa surpresa para os profissionais do direito daquele país. Isso porque é ínsito no rito processual americano a investigação feita pelos advogados [12].  

No Brasil, inexiste lei específica que regulamente a investigação defensiva. Entretanto, há uma ordenação istrativa sobre o assunto  editada pela Ordem dos Advogados do Brasil. Trata-se do provimento nº 188/18, que foi o primeiro avanço significativo para respaldar o direito do advogado em produzir provas em favor de seu constituinte  ainda que de forma não cogente.

Teve ele origem em iniciativa da OAB, pela sua seccional do Rio Grande do Norte. Todavia, algumas proposições do texto original foram compreendidas como incompatíveis com a atividade advocatícia. Isso ocorreu quanto ao dispositivo que tratava da 1) notificação e condução de testemunhas; 2) pedido de prisão temporária; 3) execução de mandados de busca e apreensão. Assim, foi elaborada uma nova proposta, com a retirada dos itens anteriores.

O procedimento contou com dois pareceres antes de ser votado: um da Comissão de Estudo de Direito Penal; outro, da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais. Em sessão de dezembro de 2018 foi aprovado o provimento nº 188/18.

Não se pode olvidar também do Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 156/2009, de iniciativa do senador José Sarney, que procura legalizar a investigação defensiva. Mas, de largada, vê-se dispositivo que implicará em um grande esvaziamento ao instituto. Isso porque em seu artigo 13, §5º, é dito que "o material produzido poderá ser juntado aos autos do inquérito, a critério da autoridade policial".

Entendemos que não há razão para se decidir pela juntada ou não. Ou o material produzido contém ilegalidade  e com razão não pode ser de fato anexado aos autos , ou as provas amealhadas são lícitas, de modo que devem ser juntadas independentemente do agrado da autoridade. De toda a sorte, é fato que há muito o que ser discutido quanto ao referido PLS, que já ultraa uma década e sem perspectivas reais de ser votado.

Mesmo sem legislação, é correto concluir pela validade da prova decorrente da investigação defensiva. Na fase pré-processual criminal o P, em seu artigo 14, prevê a possibilidade de o advogado  seja cuidando dos interesses do investigado, seja da vítima  requerer a produção de provas à autoridade policial. Contudo, o mesmo dispositivo estabelece que os pedidos dependerão da anuência da autoridade que preside a investigação.

Assim, é comum se perceber que o encarregado da investigação  seja autoridade policial ou mesmo o Ministério Público  torna-se refém de uma versão, pelo que dificilmente aceita outra que lhe seja contraposta. Daí porque não raro o indeferimento de diligências que pretendem demover o pensamento conclusivo de quem investiga. O psicólogo americano Leon Festinger (1919-1989) explicou esse fenômeno através da sua Teoria da Dissonância Cognitiva, publicado em 1957. Em síntese, revela que o indivíduo possui a natural "necessidade" de buscar a "coerência" entre suas convicções, crenças, ideias. Assim, toda a palavra, exposição que se faça contra aquelas, fará acionar no indivíduo mecanismos psicológicos diversos para reduzir ou eliminar a dissonância.

Disso resulta que, a despeito da importância para a defesa, não são raros os indeferimentos de pedidos de diligências. Além disso, o fator "carência de material humano" e de recursos, aliado ao excesso de demanda, tornam comum o arrastamento das investigações, notadamente a produção de provas solicitadas pela defesa.

Para contrapor tais realidades a investigação defensiva surge como valioso instrumento para a produção de provas, que poderão ser apresentadas no bojo do inquérito (ou qualquer outro tipo de procedimento investigatório). Serve também para "apontar lacunas na investigação estatal, capazes de justificar a incidência da 'perda e uma chance'" [13].

Então, surge a pergunta: qual o limite dessa investigação? De forma simples, a resposta é que se pode tudo aquilo que não é proibido por lei. A proibição é definida na Constituição ou qualquer outro texto infraconstitucional, até mesmo em atos normativos da Ordem dos Advogados do Brasil. Exemplificando, nossa Constituição estabelece que são invioláveis a casa, o sigilo da correspondência e dos dados e comunicações telefônicas e telegráficas.

Dessa forma, evidentemente que não poderá a investigação defensiva ultraar os comandos legais que freiam a atividade investigatória pública. Não poderá o advogado quebrar o sigilo fiscal sem que haja autorização judicial, por exemplo.

Convém salientar um detalhe importante: a investigação defensiva, após concluída, não tem a obrigatoriedade de ser juntada ou apresentada à nenhuma autoridade. Conquanto se estabelece que o advogado é indispensável à istração da Justiça, ele atende os interesses privados. Daí porque o material por ele levantado não necessariamente será apresentado, posto que não poderia fazer prova contra seu constituinte [14].

Dentro do contexto de que tudo é permitido dentro daquilo que a lei não proíbe, convém salientar que a investigação defensiva contém uma restrição adicional, que decorre da ausência do poder de polícia. Assim, a despeito de poder o advogado convidar pessoas para prestarem esclarecimentos (sendo altamente recomendável que o faça através de sistema áudio visual), não poderá obrigar a pessoa a falar ou comparecer à sua presença. Enquanto não houver regramento legal nesse sentido, o que pode é simplesmente "convidar", mas não "intimar".

Conclusivo também que a investigação defensiva é muito mais comum na fase preliminar à ação penal, visto que, uma vez apresentada durante o inquérito ou até mesmo ao seu final, poderá o destinatário da prova no caso da ação penal  ou seja, o Ministério Público  simplesmente valer-se do que foi colhido pela investigação particular.

Vale dizer que a investigação defensiva pode ser em favor do investigado ou do ofendido. Havendo dúvida quanto ao que foi produzido (ou, numa situação mais prática, entendendo a Promotoria sobre a necessidade de que determinada pessoa tenha que confirmar o que disse em depoimento prestado diretamente ao advogado), poderá determinar a intimação daquela para comparecer perante a autoridade policial.

Exatamente por isso que se torna altamente recomendável que, em se tratando de colheita de depoimento, que o advogado tome toda a cautela para o mais claro e fiel registro do que foi dito pela testemunha. Por isso, ainda que reduza a termo o depoimento, importante que grave em sistema áudio visual o contato com aquela. Não raro em audiência as testemunhas desdizerem aquilo que  supostamente  afirmaram em fase investigativa.

Já na fase judicial, nada impede que se possa juntar depoimentos decorrentes de investigação defensiva. Entretanto, poderá o defensor encontrar óbices para o acolhimento dessa providência. Isso porque na ação penal há que existir o contraditório, pelo que a parte contrária teria o direito de contrapor a prova  ou melhor, participar da colheita do depoimento. Haveria também que existir justificativa plausível para que uma produção de prova em paralelo, tal como extrapolação do número legal de testemunhas ou indeferimento da inquirição por força de preclusão temporal. De toda a forma, juntada aos autos prova nesse sentido pela defesa, ficará ao critério da autoridade judicial, avaliando sua pertinência probatória, determinar a sua inquirição  com base no artigo 156, II, do P. Outros tipos de prova (tais como obtenção de pareceres jurídicos ou técnicos) poderão ser feitas pelo advogado e apresentadas na forma do artigo 231 do P.

Em conclusão, não sendo proibida por lei, não ferindo a ética profissional, o resultado da investigação defensiva terá sua validade reconhecida em qualquer fase do processo, inclusive após o trânsito em julgado da ação penal, a fim de instruir revisão criminal [15].

Bibliografia
AZEVEDO, André Boiani e, BALDAN, Édson Luís. A preservação do devido processo legal pela investigação defensiva: ou o direito de defender-se provando. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 11, nº 137, abr. 2004.

BALDAN, Édson Luís. Investigação defensiva: o direito de defender-se provando. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 64, p. 269, jan/fev. 2007.

BULHÕES, Gabriel. Manual prática de investigação criminal: um novo paradigma na advocacia criminal brasileira. 1ª ed. Florianópolis: EMais, 2019.

CANESTRARO, Anna Carolina e JANUÁRIO, Túlio Fellipe Xavier. Investigação defensiva corporativa: um estudo do Provimento 188/2018 e de sua eventual aplicação para as investigações internas de pessoas jurídicas. Revista Brasileiro de Direito Processual Penal, v. 6, nº 01 — jan./abr. 2020.

MACHADO, André Augusto Mendes. A investigação criminal defensiva. Dissertação de mestrado apresentada em fevereiro de 2009 à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

PAULO FILHO, Pedro. A revolução da palavra. São Paulo: Siciliano, 1977.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal estratégico: de acordo com a teoria dos jogos e MCDA-A. 1ª ed. — Florianópolis: Emais, 2021.

SILVA, Franklyn Roger Alves. "A investigação criminal direta pela defesa instrumento de qualificação do debate probatório na relação processual penal", artigo publicado na Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 6, n. 1, jan.-abr. 2020.

STEFANI, Eraldo; DONATO, Fabrizio di. L'investigazione privata nella pratica penale. Guida alla indagine difensiva per avvocati, investigatori privati e consulenti tecnici. Milano: editora Giuffré, 1991.


[1] Na Justiça Federal do Paraná o processo mais antigo escrito totalmente à mão, o qual está devidamente guardado na Sala da Memória, na sede da Justiça Federal em Curitiba, foi autuado em 1865. Trata-se dos autos de Petição para Execução nº 12, em que se discutiram os impostos sobre um lote de escravos.

[2] "A palavra é sangue e oxigênio para o advogado… É ferramenta de trabalho, arma de combate porque não dizer a sua própria vida, eis que através da palavra o causídico luta o bom combate, quer na argumentação lógica pela vitória da tese, quer na defesa do direito conspurcado, quer ainda no combate à pretensão adversária…". PAULO FILHO, Pedro. A revolução da palavra. São Paulo: Siciliano, 1977, p. 163-164.

[3] Foi a Remington que despontou nesse segmento, nos idos de 1873-1874.

[4] STEFANI, Eraldo; DONATO, Fabrizio di. L'investigazione privata nella pratica penale. Guida alla indagine difensiva per avvocati, investigatori privati e consulenti tecnici. Milano: editora Giuffré, 1991, p. 2

[5] SILVA, Franklyn Roger Alves. "A investigação criminal direta pela defesa – instrumento de qualificação do debate probatório na relação processual penal", artigo publicado na Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 6, nº 1, jan.-abr. 2020, p. 43.

[6] BALDAN, Édson Luís. Investigação defensiva: o direito de defender-se provando. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 64, p. 269, jan/fev. 2007, p. 269.

[7] CANESTRARO, Anna Carolina e JANUÁRIO, Túlio Fellipe Xavier. Investigação defensiva corporativa: um estudo do Provimento 188/2018 e de sua eventual aplicação para as investigações internas de pessoas jurídicas. Revista Brasileiro de Direito Processual Penal, v. 6, nº 01 — jan./abr. 2020., p. 285.

[8] Em seu artigo 3º, incisos I e II.

[9] Oportuna a lição de Rui Barbosa, ressaltando que "em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova; e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta, não só apurá-la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas".

[10] Fenômeno onde o órgão acusatório infla a denúncia com inúmeros crimes, de forma a estrategicamente aumentar seu poder — em detrimento da defesa — de negociação em acordos de colaboração premiada, bem como obter medidas cautelares das mais severas (prisões temporárias e preventivas). Isso comumente se verifica no Brasil, onde quase todas as denúncias envolvendo pluralidade de pessoas, olvidam da existência do concurso de agentes, substituindo-o pela imputação do crime de organização criminosa. Apropriada a leitura do atemporal artigo "Um bando de denúncias por quadrilha", de René Ariel Dotti, publicado no Boletim do IBCCRIM, v. 15, nº 174, maio 2007, p. 06-8.

[11] AZEVEDO, André Boiani e, BALDAN, Édson Luís. A preservação do devido processo legal pela investigação defensiva: ou o direito de defender-se provando. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 11, nº 137, abr. 2004, p. 06-7.

[12] BULHÕES, Gabriel. Manual prática de investigação criminal: um novo paradigma na advocacia criminal brasileira. 1ª ed. Florianópolis: EMais, 2019, p. 34.

[13] ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal estratégico: de acordo com a teoria dos jogos e MCDA-A. 1ª ed. — Florianópolis: Emais, 2021, p. 562.

[14] MACHADO, André Augusto Mendes. A investigação criminal defensiva, dissertação de mestrado apresentada em fevereiro de 2009 à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo., p. 136-137.

[15] Vale atentar que, em se tratando de inquirição de testemunhas, a jurisprudência é pacífica no sentido de que é necessária que seja feita por justificação judicial, a fim de garantir o contraditório.

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