Opinião

Cidadania carcerária e suas diversas formas de abordagem

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  • é professor aposentado da Academia da Força Aérea pós-doutor em Educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes)

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9 de julho de 2023, 6h08

Embora possa haver concepções alternativas de cidadania, a ideia mais comum e abrangente é de que a mesma diz respeito à relação entre o indivíduo e o Estado. Nesse intercâmbio, a pessoa tem que cumprir uma série de deveres para com o Estado, tais como pagar impostos e prestar o serviço militar, e o Estado tem que garantir um conjunto de direitos a ela tais como educação e saúde. Essa concepção se encontra vigente em todas as democracias de cunho liberal.

A versão em pauta, apesar de ainda manter-se válida, tem sido afetada por diversos condicionantes. Com efeito, nos dias que correm, já emergiu a denominada cidadania múltipla, ou seja, indivíduos que são portadores do título de cidadão de forma dupla ou tripla. Neste caso eles são reconhecidos como habitantes nacionais em mais de um país, e, consequentemente, lhes são outorgados os direitos legalmente previstos bem como deles são exigidas as obrigações pertinentes.

Alguns países não permitem a dupla cidadania, e para alguém almejante de naturalização é exigida a renúncia da qual é portador. Em outros vigora o princípio do jus sanguinis que abrange também os nascidos fora do país. Na Argélia a cidadania do cônjuge é revogada se o prazo do casamento terminar dentro de um tempo especificado. Certas nações, Malta e Chipre por exemplo, concedem o título de cidadão a indivíduos que fazem vultosos investimentos monetários locais.

O decadente neoliberalismo tem se encaminhado no sentido da tentativa de eliminação dos direitos da pessoa enquanto integrante de um determinado Estado. Os defensores da cartilha neoliberal continuam mantendo a pretensão de erradicar do subjetivismo dos indivíduos a concepção de direitos e de que o Estado tem que os garantir. Almejam eliminar da subjetividade a concepção de cidadania e substituí-la pela ideia do consumidor de mercadorias.

Por sua vez o avanço da globalização, isto é, o incessante movimento do capital especulativo pelo mundo, acompanhado de sua crescente acumulação, bem como a paulatina internacionalização da produção e do comércio está favorecendo bastante a contenção e o funcionamento dos Estados nacionais. A autonomia e a soberania deles estão se fragilizando na medida em que o tempo a. Esse desmoronamento esmorece significativamente a garantia de concretização dos direitos outorgados aos cidadãos pois ela depende muito da existência e da perenidade do Estado nacional forte.

Parece claro que estas colocações iniciais estão intimamente relacionadas tanto aos cidadãos livres quanto aos cidadãos encarcerados. No caso daqueles que se encontram atrás das grades, outras observações adicionais necessitam ser expostas, e em primeiro lugar precisa ficar claro que se trata de uma cidadania carcerária, uma expressão jurídica que faz referência às pessoas despojadas de certas prerrogativas, legalmente concedidas, em decorrência de condenação por um crime condutor de prisão.

A cidadania carcerária pode ser abordada de várias maneiras. Uma delas faz referência ao processo de humanização que pode ser entendido como a afirmação da humanidade plena em todos os indivíduos. Ela é uma decorrência das concepções filosóficas humanistas, as quais apesar de variadas se unificam no pressuposto de que o homem deve ser sempre considerado como sujeito e nunca como objeto, meio ou instrumento para alguma finalidade. Nesta perspectiva o cidadão que foi encarcerado deve continuar sendo tratado como um indivíduo que mantém intacta suas peculiaridades humanas.

Essa abordagem se encontra presente e bastante ativa no âmbito social porque aqueles que a adotam têm consciência de que o espaço prisional, majoritariamente, se apresenta de maneira desumana, ou seja, na forma de uma negação dos atributos que são específicos dos seres humanos, um local onde os transgressores tendem a ser considerados menos humanos e, consequentemente, uma paragem adequada à abertura de caminhos para a violação da dignidade e dos direitos humanos.

Os grupos de pessoas partidárias da humanização reiteradamente concretizam atividades consoantes a ela em todos os recantos do planeta. Apenas para ilustrar, em nosso país, na cidade de Itaúna, Minas Gerais, se encontra um exemplo típico. O presídio local é istrado com a ajuda da comunidade cujos habitantes costumam chamar os presos de recuperandos. A eles são proporcionados dormitório adequado, estudo, trabalho, convivência com a família e prática religiosa. O que se busca é a manutenção do status de cidadãos plenos e não de cidadãos de segunda classe

Nos Estados Unidos existe a forte atuação da American Probation and Parole Association, que luta pela reforma da justiça do país. Um de seus dirigentes declarou recentemente em entrevista que uma das principais preocupações da associação é de criar espaços mais humanos no ambiente prisional com vistas a mudar o comportamento dos aprisionados. Uma das iniciativas para a consecução desse intento tem sido a capacitação dos funcionários em termos de aprimoramento das habilidades interpessoais.

Na Europa os programas de humanização estão contribuindo para a emergência de taxas mais baixas de violência e reincidência. Um exemplo que merece ser citado é a prisão de Halden, no sul da Noruega, considerada a mais humana do mundo. Seus dirigentes a istram com base no princípio da normalização, o qual aponta que a vida no cárcere deve se aproximar da vida na comunidade. Assim sendo, os presos possuem quartos individuais e banheiros privativos, fazem comida em cozinhas partilhadas, desenvolvem seus dons artísticos em estúdios de música, recebem orientação vocacional, frequentam cursos, mantêm contatos com familiares e amigos e desfrutam de períodos de licença temporária.

Vale ressaltar que a proposta da humanização não se restringe ao setor das prisões, haja vista seu avanço em outras áreas. No âmbito da saúde tem-se mostrado promissor o atendimento focado no relacionamento entre os profissionais e os pacientes, cujos médicos, em sessões de consulta, levam em conta o histórico dos enfermos, ouvem atentamente suas falas e os estimulam a estabelecer uma rotina diária mais saudável. Nas emergências clínicas e internações, não só os médicos, mas também os outros profissionais, fazem um acolhimento adequado e um tratamento individualizado.

Na esfera do trabalho a humanização também está progredindo através das empresas gerenciadas pelo princípio da flexibilidade com o objetivo de melhorar a qualidade de vida de seus funcionários, elevar os níveis de satisfação e felicidade e forjar ambientes colaborativos e harmônicos. Para alcançá-lo estão sendo estabelecidas as atividades remotas, a diminuição dos dias e horas de expediente, a inserção de elementos lúdicos e a aceitação da presença de animais de estimação. Com estas e outras medidas seus agentes istrativos almejam conseguir o aumento da eficiência individual e coletiva.

Esses dois eventos foram acrescentados para reforçar o entendimento de que a desumanização imperante em diversas instâncias da vida em sociedade é uma consequência direta da vigência do secular regime capitalista que na atualidade é amparado pela superestrutura ideológica neoliberal declinante e expresso na forma da globalização. Sem dúvida ele se mostra como o principal condicionante da vida em sociedade. É um capitalismo voraz, destituído de limites, exaltador da meritocracia, que menospreza princípios éticos, que flerta com o autoritarismo, que muito a contragosto a a democracia representativa, que pretende eliminar a figura do cidadão, que não se preocupa com as crescentes desigualdades sociais, que almeja explorar à exaustão os recursos naturais, que visa a obtenção de lucros ilimitados e a preservação da mais valia.

Tal entendimento é de fundamental importância para evidenciar que a pugna pela humanização das prisões é uma tarefa extremamente difícil, exaustiva e ingloriosa principalmente porque o encarcerado ainda continua sendo visto como uma pessoa eminentemente improdutiva e absorvente de recursos públicos e privados.

Intimamente ligada à proposta da humanização aparece a segunda abordagem da cidadania carcerária, qual seja, a perspectiva da ressocialização, uma categoria sociológica que significa realizar novamente a socialização. É preciso esclarecer que se trata da tentativa de corrigir a socialização secundária a qual faz referência à adaptação comportamental do indivíduo à vida comunitária. Portanto, visa-se preparar o prisioneiro para a volta da convivência em sociedade de forma digna e evitar a reincidência da prática de crimes. Em nosso país a Lei de Execução Penal assevera que é dever do Estado oferecer assistência ao preso tendo em vista prevenir transgressões futuras e favorecer a volta ao âmbito social. Portanto, o que se almeja é que o desconfinado readquira a cidadania plena que foi relativizada no período em que ou encarcerado.

Na viabilização desse retorno são utilizados alguns expedientes. Talvez o mais importante deles seja a oferta de cursos profissionalizantes, os quais geralmente são concretizados por meio de parcerias com organizações de ensino e empresas. Ao frequentá-los os presos têm a oportunidade de se qualificarem para o exercício remunerado de determinadas atividades ocupacionais. A possível redução da pena e o viável ganho financeiro depositado em conta constituem importantes vantagens ao presidiário. Por sua vez, as empresas que os ofertam podem obter reduções de impostos a pagar.

Aulas relativas ao ensino básico também são comumente empregadas. Observe-se que um percentual relativamente baixo da população carcerária brasileira tem o à educação. E dentre as centenas de milhares de presos existem muitos analfabetos, e uma maioria que não chegou a concluir os ensinos fundamental e médio. Práticas de meditação, atividades físicas e massagens também aparecem nas prisões, haja vista, que aqueles que as oferecem supõem que elas favorecem o auto conhecimento pessoal e estimula o pensamento reflexivo sobre a violência e a agressividade. Tem-se ainda as saídas temporárias devidamente autorizadas pelo juiz, com base na conduta exibida e no cumprimento mínimo da pena. Embora sejam iniciativas relevantes, efetivas e consoantes à inserção social não pode ser esquecido que aqueles que saíram da prisão arrastam consigo as claudicâncias do ado e enfrentam as atitudes preconceituosas que tendem a dificultar a candidatura a vagas ocupacionais e a volta aos afazeres diários.

Cabe destacar aqui o papel da Organização das Nações Unidas, por meio de seu Escritório de Drogas e Crime, voltado para a recuperação e reinserção social de reclusos. Durante seu décimo terceiro congresso sobre prevenção ao crime e justiça criminal foi lançado um roteiro para o desenvolvimento de programas de reabilitação baseados em prisões a todos os países a ela filiados. Um dos mais importantes deles se refere ao apoio á criação de marcas nacionais de produtos elaborados pelos detidos com a finalidade de valorizar o trabalho e as mercadorias por eles fabricadas, bem como aumentar o sentimento de autoestima e possibilitar a empregabilidade após a soltura.

A terceira forma de abordagem da cidadania carcerária faz referência à uma prerrogativa específica do cidadão, qual seja, o direito de votar. Parece necessário reafirmar que o voto se mostra como um poderoso recurso de legitimação para a transferência do poder popular a representantes. Sua relevância é atestada pela nossa Constituição a qual estabelece que o sufrágio universal e o voto direto e secreto expressam a soberania dos brasileiros. Todos os países do mundo regidos pela democracia liberal se valem do voto dos cidadãos para a escolha dos dirigentes que são encarregados de nortear o direcionamento de cada um deles.

No Brasil, os apenados perdem essa prerrogativa básica da cidadania. A Carta Magna estabeleceu que a perda ou suspensão de direitos políticos ocorre logo após a condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos. No caso do voto a referida condenação deverá ser informada à Justiça Eleitoral que tomará as medidas necessárias para que o sentenciado não apareça na folha de votação. Somente após cessados os efeitos da condenação o exercício do voto poderá ser novamente praticado.

Os argumentos incipientes e questionáveis, apesar de dominantes, são de que prisioneiros não se mostram como pessoas éticas, carecem de idoneidade para participar dos eventos públicos eletivos; que votar é um privilégio vinculado à boa cidadania e que os presos, em função de seus comportamentos criminosos perderam temporariamente esse privilégio. Note-se que o voto diz respeito apenas a uma possível expressão política da parca cidadania iva exercida por aqueles que preferem realizar sua existência na esfera privada e se dedicarem aos seus interesses particulares, haja vista que aceitam de bom grado serem governados por outrem.

Fazendo uma comparação verifica-se que nos Estados Unidos o direito de voto dos prisioneiros é determinado pelas leis estaduais, uma vez que sua regulamentação cabe a cada um dos Estados e não ao governo federal. Assim sendo, tal direito pode variar bastante de um ente federado para outro. Em decorrência alguns deles impõem regras que o limitam ou o negam completamente enquanto outros permitem que os encarcerados votem sem limitações tais como o tipo de crime cometido, a duração da sentença e o estágio do processo na justiça criminal. Essas variações exprimem o pensamento dual em vigor relativo ao voto dos sentenciados. De um lado há os que o defendem com base no argumento de que ele incentiva a reabilitação e atende aos princípios democráticos, e de outro aparece aqueles que se opõem porquanto consideram que é uma consequência justificável do comportamento criminoso, além de servir como dissuasor para potenciais transgressores.

Observe-se que, na Europa, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos já assumiu uma posição quanto à prerrogativa do voto dos encarcerados. Estabeleceu que a proibição total do ato de votar por parte dos mesmos constitui uma violação da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Enfatizou também a importância da avaliação individual e da proporcionalidade na restrição desse ato com base no fundamento de que os direitos dos presidiários só podem ser limitados na medida necessária para o alcance de um objetivo legítimo tais como a punição e a prevenção do crime.

A quarta e derradeira forma faz referência à denominada cidadania ativa. O cidadão ativo é o indivíduo que se considera governante e frequentemente encontra-se presente na esfera pública, especialmente em seu espaço cívico convencional e virtual que é o setor da vida em sociedade ível a todas as pessoas, onde predomina o interesse geral e a visibilidade é plena. Nela valem o diálogo, a comunicação, o discurso, a argumentação e a ação conjunta que pode se voltar ao objetivo de influenciar as decisões políticas principalmente para beneficiar os setores desprivilegiados. Esta esfera inclui certos locais tais como as ruas, as praças e as redes sociais onde assuntos que se relacionam com a vida de todos são examinados e debatidos gerando decisões coletivas.

Vale notar que o exercício da cidadania ativa embora seja mais adequado às pessoas livres cabe também aos aprisionados. Na prisão os detidos podem inclusive a exercerem de duas maneiras, quais sejam, em benefício da coletividade interna e a favor da comunidade externa. Apesar dessas possibilidades sabe-se que tal prática, infelizmente, não se mostra como algo recorrente e generalizado em todos os recantos do mundo mesmo porque o grupo de cidadãos ativos existentes em cada país dirigido pela democracia liberal é muitíssimo menor do que o conjunto dos cidadãos ivos.

Nos Estados Unidos, o país que tem a maior população encarcerada do mundo, com muitas centenas de milhares de presos, encontra-se ocorrendo uma notória experiência de cidadania ativa. Trata-se da Inside Wire Colorado Prison Radio que transmite música, histórias, informações e entretenimento para as prisões em todo o Colorado. Transmite seus sons para ouvintes fora das instalações também, em todo os EUA e além. Os programas são criados por produtores de mídia encarcerados para ouvintes encarcerados. Inside Wire é um programa da University of Denver Prison Arts Initiative, em colaboração com o Departamento de Correções do Colorado. É a primeira estação de rádio prisional estadual da história dos EUA.

A Europa, o local com menor quantidade de encarceramento, é onde mais ocorre a prática da cidadania ativa entre presos. Em um número crescente de jurisdições, as autoridades penitenciárias estão tentando mitigar o máximo possível a privação da autonomia incentivando os presos a nela se engajarem. Eles reconhecem que essas atividades podem enriquecer a vida dos prisioneiros, promover a aprendizagem transformadora, incentivar relações construtivas na prisão e impactar positivamente na sociedade em geral. Vale ressaltar que seu exercício no âmbito social se tornou um bem público, se encontra generalizado em todo o continente e seu ensino nas escolas é efetivo e vem desde fins do século ado. Segundo o guia Citizens Inside, no interior das prisões os reclusos, dentre outras ações trabalham nas bibliotecas, concretizam atividades esportivas, proporcionam apoio emocional aos colegas, realizam eventos de arrecadação de fundos, participam de campanhas filantrópicas, organizam palestras e participam das tomadas de decisões sobre o a vida interna nos conselhos prisionais.

Em nosso país existe uma população carcerária elevada, a terceira do mundo, também com várias centenas de milhares de presos e cuja maioria é negra. Se encontram situados em um ambiente degradante que não estimula a transformação almejada. Atento a esse ignominioso acontecimento o Conselho Nacional de Justiça criou o notório Projeto Cidadania nos Presídios, assentado em experiências já ocorridas e que visa reconhecer e valorizar os direitos daqueles que se encontram atrás das grades, tornar o sistema de justiça mais humano, aproximando o juiz e a sociedade dos jurisdicionados e proporcionar um tratamento digno e respeitoso a eles.

É um projeto que se aproxima da perspectiva da humanização bem como se abeira à proposta da ressocialização, porquanto mostra uma preocupação com a volta do recluso à vida em sociedade. Porém, se distancia da abordagem referente à prerrogativa do voto por não estar inscrita na legalidade, a qual necessita ser revista. E embora possa haver algumas experiências de cidadania ativa em nossas cadeias, tais como os preciosos trabalhos voluntários resultantes de convênios firmados pela Fundação de Amparo ao Preso Trabalhador, parece que ela não se revela como uma vertente de proposituras relativas à vida prisional. Isso não deve causar surpresa porque o tema da cidadania ativa não faz parte do vocabulário corrente dos governantes, dos parlamentares, dos agentes da istração pública e dos intelectuais das diversas áreas. Ademais, a grande maioria dos setores dominantes da sociedade não nutre simpatia para com a democracia participativa.

Acrescente-se que o ensino da cidadania ativa em nossas escolas nunca foi cogitado e constituído preocupação de nossos educadores como integrante das políticas educacionais, seja no ensino básico seja no ensino superior, desde quando ambos iniciaram seus percursos em meio à secular história brasileira.

Autores

  • é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em Educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes)

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