Opinião

O triste vale-tudo do arbítrio judicial: decido primeiro, fundamento depois

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  • é advogado formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF) professor da Escola de istração Judiciária do TJ-RJ especialista em Direito Constitucional e Ciências Penais e Direito e istração Pública além de autor do livro 'Assédio Moral no Serviço Público (Violação da Dignidade Humana)' e outras obras.

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13 de julho de 2023, 15h22

A jurisprudência, com muita frequência, diz que o órgão julgador não está obrigado a examinar todos os argumentos das partes.

Pode isso?

É de uma obviedade tão óbvia que não pode! É o triste vale-tudo: decido primeiro, fundamento depois! Decido como acho. Ora, o juiz tem que decidir por princípios. Aliás, a fundamentação completa das decisões não é favor. É dever! É uma garantia do cidadão na democracia!

Afinal, por que motivo os tribunais recusam aquilo que é exigido pela lei e Constituição? A propósito, o juiz não jurou cumprir as leis e a Constituição?!

Isso tem nome: arbítrio judicial!

Por quê? Porque, como se sabe, consoante o inciso IX do artigo 93 da Constituição da República, "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade".

No mesmo sentido, o Novo Código de Processo Civil (NC), no artigo 11, repete essa premissa constitucional:

Spacca
Spacca

"Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade".

Por sinal, estabelece o artigo 489, § 1º, IV, do NC, de forma cirúrgica, que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

"não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador".

Alguma dúvida?

Porém, pela relevância, temos que voltar ao tema. A questão é inerente ao Estado Democrático de Direito. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Agravo em Recurso Especial nº 2.184.064 – RJ, decidiu:

"Ademais, a bem da verdade, cabe ao magistrado decidir a questão de acordo com o seu livre convencimento, não estando obrigado a rebater, um a um, os argumentos apresentados pela parte quando já encontrou fundamento suficiente para decidir a controvérsia (EDcl no AgRg no AREsp 195.246/BA, rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 4/2/2014)."

No mesmo sentido, vejamos a ementa do acordão pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do AgInt. no REsp 1.701.981:

"Não é o órgão julgador obrigado a rebater, um a um, todos os argumentos trazidos pelas partes em defesa da tese que apresentaram. Deve apenas enfrentar a demanda, observando as questões relevantes e imprescindíveis à sua resolução. Nesse sentido: REsp 927.216/RS, 2ª Turma, relatora ministra Eliana Calmon."

Tristes decisões. Incrível: a Constituição e a lei dizem X e o STJ diz Y.

Pior: é o Tribunal da Cidadania que está descumprindo o inciso IX do artigo 93, da CF, e os artigos 11 e 489 § 1º, IV, do NC.

E agora, José? E a prestação jurisdicional?

A prestação jurisdicional vai mal. Exemplos como esses do STJ é que não faltam. Juízes e tribunais "fundamentam" de acordo com suas opiniões. Não enfrentam todos os argumentos das partes. Vale o "decisionismo", o "achismo" e o "ementismo".

Que feio!

Não há dialeticidade. Não há contraditório substancial. Infelizmente, essas decisões não-fundamentadas, vão se multiplicando, no mundo forense, com um simples copiar e colar; o que, robustece o arbítrio judicial.

É faz-de-conta de que as decisões são fundamentadas!

Quem tem experiência nos tribunais já viu e vê toda hora decisões não-fundamentadas que falam: decreto a prisão preventiva nos termos do artigo 312 do P, indefiro a tutela de urgência, pois não estão presentes os requisitos do artigo 300 NC, indefiro por falta de amparo legal.

Os exemplos são muitos. Não é um ponto fora da curva. Em 14/6/2023, na Comarca da Capital-RJ, o Juízo de Direito "fundamentou" dizendo: Mantenho a r. decisão de ID 433284478 pelos seus próprios fundamentos.

Fantástico, não é?!

É evidente de que essas decisões são nulas!

Daí a observação do grande processualista e desembargador Alexandre Freitas Câmara [1]

"O juiz que se limita a repetir fórmulas e textos legais, achando que assim fundamenta suas decisões, e um mau juiz, que com toda certeza proferiu decisão com parcialidade, sendo tal decisão flagrantemente inconstitucional."

Voltando as decisões do STJ. Sempre com todo o respeito: inicialmente, chama atenção especial o voto condutor, no Agravo em Recurso Especial nº 2.184.064/RJ "cabe ao magistrado decidir a questão de acordo com o seu livre convencimento".

Livre convencimento? Como assim? Pode uma decisão ser “ fundamentada” no livre convencimento? Procurei no Novo Código de Processo Civil. Não encontrei nada. No artigo 371 do NC não existe a palavra livre. Será que o STJ está aplicando o artigo 131 do C/73?

Por isso, que acredito em assombração jurídica. Até parece que estamos no C de 1973. Decidir de acordo com o livre convencimento não é decidir conforme a Constituição e a Lei. Em nome da ficção do livre convencimento milhares de pessoas estão perdendo direitos!

Cabe ter presente, neste ponto, a lição do festejado e respeitabilíssimo Lenio Streck [2]:

"Como justificar, na democracia, o livre convencimento ou a livre apreciação da prova? Se democracia, lembro Bobbio, é exatamente o sistema das regras do jogo, como pode uma autoridade pública, falando pelo Estado, ser 'livre' em seu convencimento? Pergunto: A sentença (ou acordão), afinal, é produto de um sentimento pessoal, de um subjetivismo ou deve ser o resultado de uma análise do direito e do fato (sem que se cinda esses dois fenômenos) de uma linguagem pública e com rigorosos critérios republicanos? Porque a democracia é o respeito às regras do jogo. (…) Meu Deus… em 2019, juízes escolhiam antes e fundamentavam depois, com base num negócio a que chamavam de 'livre convencimento'… como é que pode?"

Prosseguimos. A ementa supracitada aduz que "Não é o órgão julgador obrigado a rebater, um a um, todos os argumentos trazidos pelas partes em defesa da tese que apresentaram".

Socorro! Como qualquer outra ciência o Direito Processual tem princípios. Um deles é o princípio constitucional da fundamentação das decisões judiciais. Fundamentar uma decisão envolve explicar por a + b, o porquê. O que seriam questões relevantes do processo? Quais as questões que não são relevantes?

A fundamentação é a justificação jurídica-política que mostra como o magistrado chegou àquela conclusão. Está diretamente ligada à necessidade da legitimação do poder. Trata-se, pois, de uma garantia ligada à ideia de um processo justo. De o à ordem jurídica justa, na feliz visão do professor Kazuo Watanabe.

Ora, é o Direito das Leis que obriga a fundamentação das decisões judiciais, vale dizer, que impõe ao órgão julgador o dever de examinar todos os argumentos que, em tese, poderiam caso acolhidos, levar a conclusão diferente.

Vejamos o que ensina, com brilhantismo, o mestre e desembargador Alexandre Freitas Câmara [3]"

"Ora, se a parte apresenta diversos argumentos, e um deles é acolhido, sendo suficiente para justificar uma decisão que a favoreça, evidentemente não há para o órgão jurisdicional qualquer dever de examinar os demais argumentos, que se limitariam a confirmar a decisão proferida. Pois é neste, e apenas neste sentido, que se pode examinar como correta a afirmação de que o órgão julgador não está obrigado a examinar todos os argumentos da parte se já encontrou um que sustenta a sua conclusão. (…) De outro lado, porém, se a parte deduz vários argumentos e um deles é rejeitado impõe-se o ao órgão julgador o dever de examinar os demais fundamentos que, em tese, poderiam caso acolhidos, levar a conclusão diferente. É que só é legitimo decidir contrariamente ao interesse de uma das partes se todos os seus argumentos forem rejeitados."

Quem, recorre, é evidente, quer que o julgador enfrente todos os argumentos deduzidos no processo. É o que fala o artigo 489, §1º, IV, NC. Logo, não há espaço para discricionaridade e subjetividade; pois toda atividade estatal está submetida à lei e ao Direito.

É o entendimento de um dos juristas mais influentes do Direito, Lenio Streck [4]:

"Não é possível realizarmos leitura do artigo 489, parágrafo 1º, IV, do novo C, atribuindo a ele a conclusão de que o juiz não tem o dever e examinar todos os argumentos das partes. Somente, é claro, com o atendimento ao artigo 489, parágrafo 1º, IV (e todos os seus demais incisos) teremos a demonstração de que todas as opções decisórias foram submetidas ao filtro do contraditório e que o raciocínio decisório levou em conta o conglomerado de argumentações das partes, relevantes para o julgamento da causa".

Uma palavra final: Os argumentos dos ministros do STJ, desembargadores e juízes alegando de que "o órgão julgador não está obrigado a examinar todos os argumentos das partes" refletem, sim, o autoritarismo e arbítrio judicial, que coloca em risco à democracia.

Pois é. Está dificílima a vida dos advogados e das partes. A comunidade jurídica e a OAB têm que se indignarem! Não se pode omitir!

Senhor, livrai-nos do arbítrio judicial…


Referências

[1] CÂMARA, Alexandre Freitas, Lições de Direito Processual Civil, Vol., 6ª edição, 2ª tiragem, 2002, p.51, LUMEN JURIS

[2] STRECK, Lenio /2019-set-26/senso-incomum-claro-texto-c-stj-reafirma-livre-convencimento

[3] CÂMARA, Alexandre Freitas, Manual de Direito Processual Civil, 2ª edição, p.69, Gen/Atlas, 2023

[4] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, 2014

Autores

  • é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de istração Judiciária do TJ-RJ, especialista em Direito Constitucional e Ciências Penais e Direito e istração Pública e autor do livro Assédio Moral no Serviço Público (Violação da Dignidade Humana) e de outras obras.

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