Opinião

O processo penal acusatório
e a análise interdisciplinar

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25 de julho de 2023, 12h18

O paradigma político-jurídico da contemporaneidade, especialmente no campo do processo penal, é uma conquista civilizatória. É imprescindível a consciência histórico-crítica, nesse sentido, sob pena de revigorarmos, paulatinamente, o modelo inquisitorial no processo penal. Isso sobretudo se atentarmos para o fato de que o período inquisitório medieval sucedeu ao regime processual acusatório, preponderante na Europa Ocidental até o século 13 [1].

O Directorium Inquisitorium e o Malleus Maleficarum constituíram os principais guias procedimentais da atuação das Inquisições [2].  O seguinte trecho do Directorium Inquisitorium é ilustrativo: "Es peculiar y nobilíssimo privilegio del tribunal de inquisicion no están los jueces obligados a seguir las reglas forenses, de suerte que la omision de los requisitos que em derecho se requieren no hace nulo el proceso (…)" [3].

O uso da tortura é permitido, pois a descoberta da verdade material é uma das finalidades intrínsecas do processos inquisitorial. O juiz inquisidor, que acusa e julga, é, contudo, o cerne do sistema. Segundo o italiano Cordero, o modelo inquisidor caracteriza-se pelo primado das hipóteses sobre os fatos [4]. "A prova servia para demonstrar o acerto da imputação formulada pelo juiz inquisidor", produzindo no magistrado "quadros mentais paranoicos e tendências policialescas", nos dizeres de Jardim. 

Deste modo, o estudo prévio do sistema processual penal acusatório é basilar para a compreensão, mesmo que limiar, dos princípios acerca do exercício do direito de ação pelo sujeito acusador, incluindo-se, nesse aspecto, o instituto das condições da ação. Os modelos inquisitorial ou acusatório influenciam na conformação dessas categorias jurídicas, ora privilegiando o valor da defesa social, ora as garantias individuais.

O exercício criterioso do direito de ação certamente advém de um modelo garantista, enquanto sua flexibilização poderá contribuir para o autoritarismo. Por ser do tipo escalonado, o desenvolvimento regular do processo penal exige uma mutação valorativa acerca do fato penal, da suspeita à forma indiciária, até o juízo de certeza. A Persecutio criminis contempla etapas extraprocessuais de elevada importância, tudo a subsidiar o correto exercício do direito de ação ou a antecipação de um juízo negativo do "direito ao processo" pelo acusador.  

Como observa Julio Maier, citado por Geraldo Prado [5], o sistema acusatório, no que pertine ao exercício do direito de ação, contempla poderes relativos à oportunidade, disponibilidade e conveniência, opondo-se ao modelo inquisitivo, que se qualifica também pelo dever inarredável de perseguição criminal. Prado destaca as características do sistema acusatório [6], cujo objetivo consiste na preservação dos direitos fundamentais do acusado em face do arbítrio do Estado, contrapondo-se ao modelo inquisitivo, em que a realização do direito material é o núcleo da regulação dos atos processuais, enfatizando "que o juiz cumpre função de  segurança pública  no  exercício  do  magistério penal", nesse modelo.

Em síntese, o modelo acusatório se qualifica pela separação das funções de acusar, defender e julgar, sendo a gestão das provas atributo das partes, interessadas na resolução do conflito.  O ordenamento jurídico, contudo, é repleto de resquícios inquisitivos. Recurso de ofício de decisão favorável ao acusado; produção antecipada de prova pelo juiz, mesmo sem ter sido deduzida uma pretensão processual, e outros exemplos. 

O juiz, no processo penal acusatório, deve manter sua imparcialidade. Se buscar realizar tarefas de acusação, "esquecendo-se" que a Constituição de 1988 elegeu um legitimado, dotado de garantias [7] que permitem o exercício regular e incorruptível, a priori, do magistério acusatório, comprometerá a credibilidade indispensável para a atividade jurisdicional. O acusador é o legitimado a avaliar a viabilidade jurídica da eventual pretensão processual, ainda inexistente, analisando o lastro probatório da imputação  justa causa , o fumus commissi delicti e a punibilidade concreta.

O arquivamento do inquérito, assim, prescindiria da exigência de determinação judicial, pois o órgão acusador ainda não deduzira a pretensão processual, elemento necessário à integração do órgão judicial à relação jurídica processual, reservando-se este apenas assegurar a reserva de jurisdição e imposição de providências cautelares no curso fase pré-processual. 

A atividade do órgão acusador nessa fase é justamente formar sua convicção, a opinio delicti, acerca do preenchimento dos requisitos necessários ao recebimento da pretensão acusatória, critérios que contemplam as condições da ação, sendo que a instrução será realizada em contraditório, no seio do processo.

O princípio acusatório, nessa fase, é salutar a impedir atuação jurisdicional que antecipe juízos inoportunos. Se o preenchimento das condições da ação envolve investigação e colheita de elementos de convicção, objetivando embasar a pretensão acusatória, a atuação do juiz nessa etapa é, claramente, tarefa acusatória. Incumbe somente ao órgão acusador valorar os elementos indiciários colhidos nessa etapa procedimental da persecução criminal, pois este quem solicitou diligências e avaliou a inquérito policial  enfim, atuou como parte, interessadamente, como é inerente a este sujeito processual.

Tentar substituir-se ao acusador, ainda mais nessa etapa preliminar, seriamente comprometerá a imparcialidade, e, com tantos juízos de culpa pré-formulados, a dialética processual será meramente formal. Assim, um juízo negativo prévio acerca da inviabilidade da pretensão e do próprio exercício do direito de ação, pois "carecedor de ação" [8], deveria simplesmente ser acatado pelo órgão judicial.  

A compreensão da complexidade do sistema de justiça criminal, desde a observação do sistema econômico e político vigente e excludente, da criminologia [9] e o seu impacto, necessário, na dogmática penal, constitui premissa para uma adequação do sistema criminal à Constituição, reinterpretando-o pela concepção de Estado prestacional, efetivando os objetivos da fundamentais da República Federativa do Brasil, que certamente pera o modelo de justiça penal.

Geraldo Prado alerta para uma interpretação adequada do artigo 129, I, da CR, que garante ao Ministério Público o monopólio do exercício da ação penal de iniciativa pública, na forma da lei [10]. A instituição, portanto, segundo os vetores constitucionais, deverá atuar na política criminal do Estado, conformando-a pelo princípio democrático, conforme a lúcida percepção de Maximiliano Rusconi, que alude ao princípio da oportunidade como elemento racionalizador do poder de persecução criminal, evitando-se uma seleção deformante, dirigindo-se os recursos públicos para a repressão da criminalidade de maior custo social, caracterizando o Ministério Público como instituição legitimada a operar, criteriosamente, a desjudicialização dos casos penais [11]. Os princípios que formatam essa instituição seriam capazes de evitar a quebra da isonomia e o arbítrio, possível crítica formulada à flexibilização do exercício da ação penal. 

Portanto, o entrelaçamento entre política criminal, direito de ação e órgão acusador necessariamente pera uma análise transdisciplinar.


[1] SALO DE CARVALHO. Antimanual de Criminologia. 5. ed. São Paulo, Saraiva, 2013, pg.137.

[2] Ibidem, p.136.

[3] EIMERIC, Nicolau. Manual de inquisidores, para uso de las inquisiciones de España y Portugal ó Compendio de la Obra titulada Directorio de Inquisidores, de Nicolao Eymerico. Valladolid: Editorial Maxtor, 2010, p. 22.

[4] Apud CARVALHO. Op., cit., p. 141. Ibidem, p.141.

[5] PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 3. ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 171.

[6] Ibidem, p. 170. O autor desfaz a noção ilógica de igualdade entre o sistema acusatório e o princípio acusatório. Este comporia o conjunto de regras e princípios que comporiam o sistema, sendo o principal princípio, orientando a coerência jurídica de todos os outros. Ibidem, p. 173.

[8] A expressão deriva do processo civil, caracterizando o juízo negativo de preenchimento das condições da ação, extinguindo-se o processo sem resolução de mérito.

[9] A criminologia crítica evidencia o uso seletivo do sistema de justiça criminal, constatando que a população carcerária é preponderantemente composta por membros marginalizados da sociedade, sem instrução adequada, sendo os crimes patrimoniais e o tráfico de drogas os delitos de maior repercussão. A ineficácia das políticas públicas certamente amplia os quadros de desigualdade e constitui fator criminógeno, no complexo processo de desenvolvimento da atividade criminal. 

[10] PRADO, Op,. cit,. p. 206.

[11] Ibidem, 205.

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