Opinião

Maldade jurídica: STJ vai contra a lei ao permitir penhora de salário

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  • é advogado formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF) professor da Escola de istração Judiciária do TJ-RJ especialista em Direito Constitucional e Ciências Penais e Direito e istração Pública além de autor do livro 'Assédio Moral no Serviço Público (Violação da Dignidade Humana)' e outras obras.

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9 de junho de 2023, 6h40

Mais uma "maldade jurídica" do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A Corte Especial do STJ decidiu, no dia 19/4/2023, que é possível a penhora de parte do salário para pagamento de dívida não alimentícia. É uma decisão casuística. O que não é republicano. A lei é escancaradamente contra a penhora de salário. Aliás, no Estado democrático de Direito a lei, sim, deve ser aplicada, não é?

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O Direito do legislador, no artigo 833, IV, parágrafo 2º, do NC prevê que são impenhoráveis:

"IV – 'os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º'
§ 2º. O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no artigo 528, § 8º , e no artigo 529, § 3º."

Há alguma dúvida na lei?

Mais claro que isso, impossível. Simples assim. Não dá para fazer "malabarismo jurídico" que rima com ativismo.

Não é o STJ o guardião da legalidade infraconstitucional?!

Parmênides, filósofo pré-socrático, 515 a.C, já dizia que "o ser é e não pode não ser e o não ser não é e não pode ser de modo algum". Na pós-modernidade, Titãs, no álbum Cabeça Dinossauro, com letra de Arnaldo Antunes, fala: "Não é o que não pode ser".

Não obstante, para o STJ, o "que não é pode ser". O que está na lei não é. Que coisa feia! O STJ vai na contramão e atropela o NC. O Direito é a vítima. Que falta faz a Filosofia do Direito. O Direito Constitucional.

Cá pra nós: o STJ estava exercendo jurisdição constitucional no recurso especial? Claro que não! Por quê? Porque não havia nenhum incidente.

Vale, aqui, deixar bem claro: quando se trata de recurso especial, apenas em declaração incidente, é lícito, ao STJ controlar constitucionalidade.

Está, sim, o Tribunal da Cidadania, usurpando o papel do legislador. O STJ quer jogar nas 11: julgar, legislar…

A propósito, a "separação dos Poderes", apareceu pela primeira vez por Aristóteles, na obra Política, por Jonh Locke, no Segundo Tratado do Governo Civil e, finalmente, na obra de Montesquieu [1], no Espírito das Leis, onde para ele:

"Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado dos Poderes Legislativo e Executivo. Se estivesse unido ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor."

O artigo 2º da Constituição vem daí, onde diz que "são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". Vale lembrar de que o Poder é uno, mas é dividido em funções.

Temos, infelizmente, os predadores do Direito, isto é, a economia, política e moral. Aqui nesta ConJur, o festejado e respeitabilíssimo Lenio Streck [1], já em 4 de janeiro de 2018, alertava em precioso artigo de que o "STJ erra ao permitir penhora de salário contra expressa vedação" e que estava lançando mão de argumentos de política e moral, isto é, metajurídicos. Vejamos o Direito dos professores de Direito:

"O STJ, além de já ter reescrito o artigo 649 do C/73, agora reescreve o artigo 833, IV, parágrafo 2º, do C/2015. Para tanto, lança mão de argumentos de política e não de princípio (para usar uma linguagem cara para quem trabalha com teoria da decisão). Ora, afirmar que 'a jurisprudência da corte vem evoluindo no sentido de itir a medida se ficar demonstrado que ela não prejudica a subsistência digna do devedor e de sua família' é, exatamente, lançar mão de argumentos de política e de moral. Só que, em uma democracia, esses juízos não são do Judiciário, data vênia. São do legislador.' Ou seja, o que quero dizer é que não adianta o judiciário 'não gostar' da redação e/ou do limite de 50 salários-mínimos ou do elenco de vedações constante no artigo 833. A menos que ele diga que é inconstitucional, fazendo jurisdição constitucional (teria que fazer um incidente, nos termos do C). Mas não vi isso."

Uma coisa: até 2015, o STJ, entendia de forma correta, de que a impenhorabilidade tinha por objetivo à Dignidade da Pessoa Humana e a Proteção Legal do Salário, motivo pelo qual não era devida a penhora, mesmo em suposto percentual baixo, do salário do devedor.

Na verdade, pelo óbvio do óbvio, a única interpretação possível do 833, IV, parágrafo 2º, do NC, é a impenhorabilidade do salário.

Alguma dúvida?!

Porém, a 3ª Turma do STJ decidiu mitigar a impenhorabilidade do salário, desde que seja preservado percentual capaz de dar amparo à dignidade do devedor e de sua família.

Infelizmente, a Corte Especial do STJ, nos embargos de divergência, deliberou que pode mitigar a impenhorabilidade do salário por dívida não alimentar, desde que preservada a dignidade do devedor e observada a garantia de seu mínimo existencial.

O ministro relator disse que o mínimo existencial resguarda tanto o devedor como o credor. Será? É um argumento retórico. Observemos:

"Penso que a fiscalização desse limite de 50 salários-mínimos merece críticas na medida em que se mostra muito destoante da realidade brasileira tomando o dispositivo praticamente inócuo, além de não traduzir o verdadeiro escopo da impenhorabilidade que é a manutenção de uma reserva digna para o sustento do devedor de sua família."

Sempre com todo o respeito: nas decisões têm o "ementismo", onde é só colocar uma ementa. Decide-se como se quer. Aliás, decido e depois "fundamento". Pronto: está tudinho "fundamentado", sem, porém, enfrentar os argumentos. Logo, a decisão é viciada. Nula. É o faz-de-conta que está fundamentando.

Há, também, o casuísmo, subjetivismo e o achismo. A propósito, ninguém vai ao tribunal para saber a opinião pessoal do magistrado, que time que ele torce; mas para receber uma resposta conforme à Constituição e a lei.

À vista disso, o STJ ignora o Direito positivo e inventa um novo. Deve obedecer à lei. Ora, foi o juízo do legislador que fixou o limite em 50 salários-mínimos. O Executivo não vetou. (artigo 66 § 1º da CF).

Ensina o acadêmico Lenio Streck [2]:

"Insisto: 'valores não valem mais do que a lei'. Desejos e subjetivismos não podem substituir a lei. Juiz não pode ignorar a lei com base em princípios que ele mesmo inventou ou, ainda, mediante o uso de uma inexistente ponderação de princípios, que, por certo, deixaria corado o seu criador, Robert Alexy. Desafio que se demonstre que, em algum momento, havendo uma regra que estipula claramente determinada questão, Alexy aceitaria fazer uma ponderação que envolvesse, por exemplo, a colisão entre o mínimo existencial (como valorar?) e o direito de cobrar uma dívida (há direito fundamental nisso?), pesando a balança, no final, a favor do patrimônio do credor."

Afinal, vem a pergunta: o que é mínimo existencial? É um conceito jurídico indeterminado. Como valorar? E o mínimo existencial de um desembargador ou ministro? Seria R$ 5.000 ou R$ 50 mil?! Como o STJ sabe, no caso concreto, de que penhora de 30% do salário não atinge o mínimo essencial? Qual o critério para fixar o percentual de penhora?

Repetimos: O mínimo existencial resguarda tanto o devedor como o credor, disse o ministro relator. Doutrinariamente, jamais li isso. Pois então. É uma retórica. Pior: está "pegando".

Muito pelo contrário. O mínimo existencial é para proteger o devedor. Não é o credor, ministro! No modo de produção capitalista quem arca com bônus arca com ônus. É o risco do empreendimento.

Fantástico, não é? Usar a teoria do mínimo existencial em favor do patrimônio do credor para penhorar os baixos salários brasileiros. Seria a vitória do "princípio da dignidade do crédito">3].

O rendimento médio real do trabalhador brasileiro fechou o ano de 2022, em R$ 2.715, ou seja, não chega a três salários-mínimos, É obsceno o salário. É fato.

Muito bacana! A impenhorabilidade não se restringe à verba alimentar desde que a parcela penhorada não comprometa à dignidade ou subsistência do devedor e sua família. Entendi: é o tudo pelo credor! Primeiro, pague a sua dívida. Fica tranquilo! Não vai comprometer o mínimo existencial?! Pois é: vai faltar arroz, feijão e pão…

Contudo, o legislador definiu o mínimo existencial. Simples assim. No mesmo sentido, o jurista Lenio Streck [4]:

"Não parece que o STJ seja o competente para definir o que seja o mínimo existencial. Essa tarefa é do legislador."

É de uma obviedade tão óbvia que, qualquer penhora nos baixos salários, não vai proteger o núcleo essencial da Constituição, violando o direito fundamental à dignidade humana e ao mínimo existencial.

O STJ errou. Mais uma "maldade jurídica"

 


REFERÊNCIAS

[1] MONTESQUIEU, Espírito das Leis, 2ª ed, São Paulo: Martins Fontes, 2000;

[2] [3] [4] STRECK, Lenio conjur.com.br/2018-jan-04/senso-incomum-stj-erra-permitir-penhora-salario-expressa-vedacao-legal#

Autores

  • é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de istração Judiciária do TJ-RJ, especialista em Direito Constitucional e Ciências Penais e Direito e istração Pública e autor do livro Assédio Moral no Serviço Público (Violação da Dignidade Humana) e de outras obras.

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