Pelos precedentes, Judiciário será fator estabilizador e indutor de crescimento
19 de junho de 2023, 8h47
Por meio do desenvolvimento de um sistema brasileiro de precedentes, o Poder Judiciário vai oferecer à sociedade uma jurisprudência estável capaz de traçar pautas de conduta e, consequentemente, induzir crescimento econômico.
Essa mensagem permeou os debates no I Congresso Sistema Brasileiro de Precedentes, realizado pelo Superior Tribunal de Justiça entre 14 e 16 de junho. O evento homenageou o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, defensor do tema e que morreu em 8 de abril.

Lucas Pricken/STJ
A ideia é que juízes e tribunais nas instâncias ordinárias, ao interpretar a lei nos mais de 76 milhões de processos em tramitação no país, observem as posições delineadas pelas respectivas cortes superiores, de modo a oferecer isonomia e tratamento igualitário.
Isso oferecerá a todos a tão sonhada segurança jurídica, um fator primordial para o desenvolvimento econômico e social da sociedade. É por meio dessa estabilidade que haverá alguma previsibilidade, de modo a viabilizar a atuação de investidores, do poder público e mesmo do cidadão comum.
"Não é mera divagação acadêmica. Um país que não promete segurança jurídica é um país alijado do ranking Doing Business", disse o ministro Luiz Fux, na aula magna que deu no evento, referindo-se à classificação que mede as condições que os países oferecem ao ambiente de negócios.
"Um investidor quer saber o que vai acontecer se ele submeter seu caso a uma análise subjudice. É importante que saibam como pensam os tribunais brasileiros. E ele só vai saber através dos precedentes", explicou.
À revista eletrônica Consultor Jurídico, o ministro Mauro Campbell destacou que o tema é grandioso e de importância não apenas para o STJ, mas para toda a sociedade. "Isso atrai investimentos e dá maior confiabilidade ao sistema como um todo. O Judiciário não precisa ser protagonista disso. Basta ser estabilizador."
"Em última análise, mediatamente, a postura do Judiciário nacional vai ser indutora de investimentos no Brasil. Porque o empresário estrangeiro que quiser investir na economia brasileira vai ter a certeza de que todos os fatores que ele analisou antes de vir pra cá estarão estáveis", explicou.
Um exemplo citado por Fux é o do estado americano de Delaware, que, segundo a revista Forbes, abriga 66,8% das empresas que integram o ranking "Fortune 500". Isso ocorre, entre outros motivos, porque a lei estadual sobre o tema, General Corporation Law, é tida como uma das mais avançadas e flexíveis do mundo.
"Por que elas estão ali? Porque a jurisprudência é estável", disse o ministro. "Vejam a importância do precedente para garantir a isonomia, segurança jurídica e atração de empresas pelo Brasil. Hoje, se aponta a insegurança jurídica como um fator que gera o risco-Brasil."

Lucas Pricken/STJ
O que é precedente?
O evento, o tema e os discursos se baseiam na dificuldade vivenciada pelo Brasil, um país com 1,3 milhão de advogados e 76 milhões de processos em tramitação, em promover sua cultura de precedentes. O problema é de cultura jurídica e a solução a pela adoção de uma nova mentalidade.
O sistema jurídico brasileiro se desenvolveu a partir da Civil Law na tradição romano-germânica, ou seja, tendo as leis como fonte imediata do sistema. Quando uma demanda chega ao Judiciário, o juiz é livre para decidi-la como bem entender, desde que justificadamente.
O livre convencimento motivado se torna um problema quando permite que situações semelhantes recebam soluções diferentes a depender do juiz, do tribunal e do órgão de julgamento. Para atacá-lo, o legislador acelerou uma aproximação com o sistema do Common Law na tradição anglo-americana, na qual a principal fonte jurídica não é a lei, mas o precedente.
Essa interseção foi potencializada pela Reforma do Judiciário e pelo Código de Processo Civil de 2015 e não foi inteiramente assimilada pelos operadores do Direito. Uma das causas, segundo juristas como o colunista da ConJur, Lenio Streck, é que não há clareza sequer sobre o que é um precedente.
Nos países da Common Law, precedentes são decisões que, paradigmáticas, am a ser aplicadas pelos tribunais a partir de seus fundamentos. No Brasil, os instrumentos criados preveem teses vinculantes. Se precedentes são para o ado, teses funcionam para o futuro. Para Streck, a desobediência aos precedentes não é a causa dos problemas, mas a consequência.

Emerson Leal/STJ
Um dia chegamos lá
Essa dificuldade de adaptação foi abordada pelo ministro Antonio Saldanha Palheiro, do STJ, em sua fala durante o evento. Ele apontou que os precedentes brasileiros não são bem formulados porque grande parte permite ressalvas. Isso, aliado a uma legislação denunciativa e uma Constituição principiológica, gera o que define como "uma tragédia".
"Os precedentes não são usados e nossos magistrados, bem formados, têm cabedal acadêmico para fazer com eles o que quiserem", disse. "Temos que fazer a reflexão. Que a formulação do precedente seja mais hermética e mais amarrada. E que nós, como intérpretes e aplicadores do Direito, temos que fazer um esforço para que o sistema dê certo."
O ministro Luis Felipe Salomão definiu como natural a dificuldade vivida, pois o Brasil tem diferenças fundamentais com os países que adotaram desde sempre a common law. A começar por um federalismo particular, feito de cima para baixo, o que resulta em estados com pouca autonomia legislativa. "São 17 mil juízes interpretando a legislação federal. É claro que vai gerar dispersão de entendimento", disse.
Se na tradição anglo-americana o Direito é consuetudinário (baseado nos costumes), com ênfase nos julgamentos pelo Júri e com provas destinadas às partes, no Brasil há um direito codificado (baseado em leis), interpretado por juízes profissionais a quem a prova produzida se destina.
"Essas diferenças fazem com que tenhamos cultura da ferramenta judicial completamente diferente do sistema da common law. Querer aplicar pura e simplesmente as ideias de lá aqui não vai dar certo", afirmou. Ele defende que dizer que o sistema brasileiro de precedentes é uma cópia mal feita ou um decalque é, efetivamente, diminui-lo.

Reprodução
Complexo de vira-lata
Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), Cássio Scarpinella sugeriu que o nome Sistema Brasileiro de Precedentes seja registrado no INPI e ganhe uma logomarca. Para ele, essa compreensão eliminaria problemas. "Não é common law. É brasileiro", disse.
Em sua análise, a mudança de mentalidade em andamento precisa ser acelerada para o sistema funcionar. "Às vezes, não temos nem um problema de rebeldia, mas de dificuldade de operar o sistema", apontou. "O que é que vincula? É a ratio (decidendi, a razão de decidir)? Ninguém sabe o que é. Sabe conceitualmente, mas precisa descobrir em cada caso concreto. Não temos formação jurídica para isso", elencou.
Para Scarpinella, o país ainda vive no Direito o "complexo de vira-latas" que Nelson Rodrigues identificou no futebol e que o título da Copa do Mundo de 1958 extirpou. O ministro Ribeiro Dantas, do STJ, concordou ao afirmar que o brasileiro só acha que verdadeiro é que é dos outros. E usou uma expressão nordestina pra explicar: "o que é nosso é peba".
Para ele, o país pode importar o que quiser da Inglaterra ou dos Estados Unidos, menos a história. Se o Direito brasileiro é filiado ao sistema da civil law, é preciso pensar em construir uma cultura com o objetivo de gerar mais estabilidade e previsibilidade, não em destruir o que já foi feito. E citou um meme que se relaciona ao assunto, reproduzido acima.
"Temos que parar de rir daquele meme. A gente precisa sair disso. E a construção de um sistema brasileiro de precedentes é a única saída que temos. Esse é o momento de conclamar a todos nós a botar as cabeças para pensar e a encontrar saídas para becos sem saída, que às vezes são ultraáveis quando a gente pensa fora da caixa, quando vê a coisa por outro ângulo", afirmou.
Na visão do ministro Rogerio Schietti, a observância aos precedentes é um exercício de humildade que os juízes brasileiros devem cultivar diariamente. Ele próprio diz que tem dificuldade em aceitar, por vezes, que outras posições venceram. Mas que é preciso reconhecer: aqui a minha opinião não importa, mas apenas o que o Judiciário decidiu.
"Esqueçamos as questões teóricas. Precisamos compreender que a jurisdição, como técnica de dicção do Direito, visa promover o bem-estar das pessoas, tratando-as acima de tudo com imparcialidade e prudência, mas fazendo de tal modo que não paire dúvidas sobre a imparcialidade do juiz. Isso se faz quando se deixa seu voluntarismo de lado em nome de uma compreensão maior e que suplante sua própria vontade. E, acima de tudo, tratando o jurisdicionado de maneira igual."
Análise
Para Lenio Streck, o problema se resume a saber o que exatamente é são os precedentes, já que, no Brasil, eles são construídos para uso futuro. "Parece que estamos todos de acordo que precisamos de precedentes. Nenhum país os despreza. Alguns, como Alemanha, dão menos importância. Alguns, como os paises do common law, dão toda a importância. É a razão de ser. O Brasil optou por fazer um 'sistema' pelo qual os tribunais constroem precedentes que servem de 'estoque de normas' para resolver demandas no futuro, como sustenta um dos doutrinadores seguidos pelo STJ. Nenhum país faz isso, fora o nosso. Aqui fazemos 'teses'. Mas essas não são precedentes. Nem súmulas o são, porque precedentes compõem as súmulas. Por isso, há uma coisa bem anterior na discussão: o que é, de fato, um precedente."
"Mesmo que se diga que 'precisamos colocar no INPI a marca precedentes brasileiros', ainda assim há uma coisa: precedente precede. E não 'pós-cede'. Um rosa não perde seu perfume se a chamamos de outra coisa, dizia Shakespeare", completa.
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