Fábrica de Leis

Avaliação do cumprimento da lei: IA pode mostrar riscos ao direito a alimentação

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3 de maio de 2023, 10h36

A arquitetura constitucional[1] composta por 22 normas referente à avaliação da ação governamental é das mais articuladas e abrangentes. É preciso refletir sobre a necessidade de precaução relativa à efetividade dos direitos evidenciada pelo legislador constitucional.

O acréscimo do parágrafo 16 do artigo 37 reforça o compromisso federativo para com as práticas de monitoramento do ciclo de vida das políticas públicas, porém a norma se insere no sistema constitucional que tutela os efeitos da concretização das atividades governamentais de todas as funções do estado e dos entes da federação.

A crítica às metas e aos resultados planejados e não alcançados já foi objeto de discussão aqui nesta ConJur por parte de Élida Graziane Pinto. Ela chama a atenção para o ciclo vicioso de repetição de erros do ado que desconsidera os diversos instrumentos de planejamento provocando um caos operacional onde muitos aproveitam para testar os limites das institucionalidades.

Um dos efeitos malfazejos da desconsideração da sistema constitucional sobre avaliação atinge exatamente o primado da maximização da eficácia da nossa Lei Fundamental, que também opera articulada com outros atos normativos, vigentes, espalhados por toda a federação e relativos à qualidade dos serviços públicos, à transparência da informação estatal, aos modelos jurídicos da avaliação de impacto.

Nesse sistema infra constitucional estão também as casas legislativas com suas funções fiscalizatórias sobre as ações dos seus respectivos executivos e que também, desenvolvem, assimetricamente, formas de controle e ferramentas para compreender a  realidade do abismo entre as leis que criam e seus efeitos.

Parte desse abismo nos fala da desigualdade [2], cotidiana, a ser enfrentada quando ocorre a devida elaboração de políticas públicas e o monitoramento de todo o seu ciclo a assegurar eficácia para os comandos constitucionais

Interpretar os dados da realidade a a ser, então, um método essencial para a verificação do grau de eficácia de direitos, sobretudo aqueles de origem constitucional.

O direito a alimentação [3] é constitucional, social, com altíssima transversalidade. Essa característica responde por uma maior complexidade na etapa de reconstrução de uma cadeia de fontes do direito, (eg. conjunto de relações entre normas articuladas e ordenadas por afinidade a um certo tema) necessária a uma devida avaliação de impacto normativo de qualquer direito, ação, programa relativos ao direito à alimentação.

Se pensarmos na escala constitucional, alguns direitos que possuem sistemas de incidência normativa igualmente complexos (fontes diversas, multinível federativo, grande quantidade de atos infra legais) também se conectam ao direito à alimentação: vida, saúde, cultura, educação, às finanças públicas, propriedade, livre iniciativa, consumidor, saneamento, água, etc.

Imagine a quantidade de atos normativos, a dificuldade para evidenciar as relações entre essas normas, suas respectivas políticas públicas na nossa desigual e assimétrica federação. E essa mesma Federação tem uma uníssona necessidade, de norte a sul, de leste a oeste, em todas as cidades e lares: comida.

O direto a alimentação possui uma marcada dimensão territorial que também condiciona a sua efetividade, e claro, demanda ações de todos os atores políticos da federação. É exatamente aí que começam os problemas. Normas jurídicas possuem âmbitos de incidência predefinidos, mas as condições para a eficácia de um direito, não necessariamente se "submetem" a um mesmo lugar. É o caso do direito a alimentação.

Spacca
Uma dada área de cultivo pode ser geodesicamente identificada, localizada, no município "x" e sobre ela incidem um conjunto de atos normativos municipais, estaduais e federais. Essa dimensão, concreta, por sua vez, irá demandar outra sequência de ações governamentais, que incluem o tema da alimentação e todos os outros com os quais possa se articular.

O estudo realizado na UFMG[4] (Universidade Federal de Minas Gerais), fruto de um projeto de pesquisa de pós doutoramento pretendeu ensinar uma máquina a identificar duas dimensões da realidade: os textos e seus contextos limitados ao território do estado mineiro. A elaboração da arquitetura do dado de treino (Legística), a base do algoritmo dirige como a máquina deve olhar para a realidade.

Um processo dialético ocorre quando os resultados processados no contexto de um grande volume de dados e assim novas possibilidades de análise. Os textos legais foram obtidos na web, em repositórios oficiais das casas legislativas, agências reguladoras, ministérios, secretarias, órgãos com competências normativas da istração Indireta. Os dados são "extraídos" desse manancial normativo via escolha prévia de termos (ontologia) aptos a produzirem relações de necessidade com o termo "alimentação" e suas noções correlatas, disseminadas em diversas categorias de normas (tipos de atos normativos).

É preciso que a maquina "aprenda" com quem o direito a alimentação se relaciona e qual o peso de cada ato normativo na hierarquia entre eles possa indicar o seu nível de coerência. E aí temos um problema constante e que reclama também uma política própria (qualidade da legislação e qualidade regulatória).

Novos atos normativos surgem todos os dias, no nosso país onde a lei precisa ser falada e repetida de diversas formas como se fosse uma garantia da sua existência na vida das pessoas e não somente nos livros, ou na tela dos sites oficiais de legislação.

O contexto emerge de outro modo, é preciso verificar onde e como o direito a alimentação nasce e o caminho que percorre até chegar a mesa de cada pessoa brasileira. E esse caminho está muito além dos limites s da validade de um dado ato normativo, sobretudo se falamos nas condições para que o alimento seja produzido.

Dois temas em particular, foram o foco do estudo, pela sua essencialidade e pelo seu paradoxo. É preciso  água para o plantio e todos nós precisamos saber o que comemos, de onde vem o nosso alimento e sobretudo, qual a qualidade do nosso alimento. Uma água de baixa qualidade impacta o nosso direto a alimentação.

A disponibilidade de dados oficiais (transparências ativa e iva) é essencial à reconstrução do cenário de incidência normativa (contexto). No caso de Minas Gerais, os dados estavam disponíveis e legíveis por máquina, algumas lacunas foram supridas por outros repositórios.

Nem todas os entes da federação poderiam ser alvo de um estudo desse tipo: a assimetria dentro da federação existe. Se pensarmos na população de crianças, gestantes, lactantes, idosos o contexto pode assumir contornos de risco a ensejar ações governamentais específicas e novamente, transversais. Esse é o aspecto de essencialidade, pois o o a uma boa alimentação[5] é causa de um bem viver.

O paradoxo se manifesta quando a máquina "olha" para a realidade, para o contexto onde os efeitos dos direitos transitam e consegue processar as informações de um grande volume das cidades de um estado da federação. E mais, aponta a proximidade arriscada entre a localização (ou não) de estações de tratamento de resíduos (comumente conhecido como lixões) e os seus cursos d'agua.

As informações obtidas permitem traçar uma valência diferente para cada tipo de impacto e assim o risco pode ser mensurável. Municípios que não tratam o próprio resíduo, que recebem os resíduos de outras cidades, por exemplo tem seu risco aumentado. Aterros sanitários não regularizados a céu aberto, com altitude superior ao curso d'agua (rio, córrego, riacho e congêneres), idem, se são vizinhos a uma área de plantio temos um sinal de alerta.

O direito ambiental também exige um dever de cuidado nas cidades e que a verdade inconveniente sobre rios "urbanos" canalizados e poluídos, sobre a ausência de políticas públicas de coleta seletiva deveria também indignar as pessoas.

A promiscuidade entre o lixo e água, e seu risco sobre o direito a alimentação acaba por também tensionar os efeitos pretendidos pelo Marco Regulatório do Saneamento e colorem o paradoxo: os rios seguem independentemente das leis municipais, mas totalmente dependentes da política de saneamento[6] das cidades vizinhas.

Publicado em 2021, o estudo de impacto da fome no mundo elaborado pela FAO e intitulado "The State of Food Security and Nutrition in the world" chegou à impressionante cifra entre 720 a 811 milhões de pessoas afetadas pela falta de comida ou de o a ela. Por outro lado, no mundo e também no Brasil, a gastronomia cresce como o terceiro interesse de viagem apontado pela crescente indústria do turismo que gera oportunidades de emprego e renda.

Seja sobre fome ou abundância, seja sobre água potável ou qualidade do gasto público, seja sobre aterros sanitários regularizados e a proteção aos mananciais de grandes bacias hidrográficas brasileiras, seja sobre saber sobre o caminho do alimento que cada pessoa tem a mesa, quando falamos de direitos fundamentais, a análise do cumprimento da lei, seus efeitos, é acima de tudo, uma questão de dignidade humana.


[1] Artigo 37, §3º, Iavaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços públicos, a partir, entre outras dimensões, das reclamações dos seus usuários coletadas em sistemas de atendimento e canais de participação correspondentes; Artigo 37, §8º, IIavaliação acerca do cumprimento do contrato de gestão que ampliar a autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da istração direta e indireta, desde que sejam atendidas metas de desempenho para o órgão ou entidade; Artigo 40, § 1º, Iavaliações periódicas obrigatórias realizadas para verificação da continuidade das condições que ensejaram, no âmbito do regime próprio de previdência social — RPPS, a concessão de aposentadoria por incapacidade permanente para o trabalho, no cargo em que o servidor estiver investido, quando insuscetível de readaptação, na forma de lei do respectivo ente federativo; Artigo 40, § 4º-A — submissão a avaliação biopsicossocial realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar para fins de concessão de aposentadoria especial a servidores com deficiência no RPPS; Artigo 201, § 1º, I —avaliação biopsicossocial realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar para fins de concessão de aposentadoria especial a segurados com deficiência no âmbito do regime geral de previdência social (RGPS); Artigo 41, § 1º, IIIavaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa no caso de perda da estabilidade do servidor público mediante procedimento; Artigo 41, § 4 ºavaliação especial obrigatória de desempenho como condição prévia à aquisição da estabilidade pelo servidor ocupante de cargo efetivo; Artigo 132, parágrafo únicoavaliação de desempenho perante os órgãos próprios, após relatório circunstanciado das corregedorias, como condição prévia à aquisição de estabilidade de Procuradores dos Estados e do Distrito Federal; Artigo 52, XVavaliação periódica da  funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, em sua estrutura e seus componentes, e o desempenho das istrações tributárias da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Município (competência privativa do Senado Federal); Artigo 74, IAvaliação do cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União como sistema de controle interno dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário; Artigo 74, IIAvaliação dos resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da istração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado atribuída ao sistema de controle interno;  Artigo 165, § 16Avaliação das políticas públicas ( resultados e monitoramento) previstos no § 16 do art. 37 desta Constituição, dever de que as leis de plano plurianual, diretrizes orçamentárias e orçamento anual observem; Artigo 173, § 1º, Vavaliação de desempenho e à responsabilidade dos es prevista no estatuto das empresas estatais exploradoras de atividade econômica; Artigo 193, parágrafo único — "o Estado exercerá a função de planejamento das políticas sociais, assegurada, na forma da lei, a participação da sociedade nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação dessas políticas"; Artigo 198, § 3º, III — previsão de que lei complementar fixe normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas computadas no piso em ações e serviços públicos de saúde pelas esferas federal, estadual, distrital e municipal;Artigo 209, II — avaliação de qualidade pelo Poder Público em relação à oferta do ensino privado no país; Artigo 212, § 9º — mandato constitucional de que lei disponha sobre normas de fiscalização, de avaliação e de controle das despesas computadas no piso em manutenção e desenvolvimento em educação pelas esferas estadual, distrital e municipal.Artigo 212-A, V, alínea "c" — distribuição de parte da complementação federal ao Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) conforme o cumprimento de condicionalidades de melhoria de gestão previstas em lei, bem como a partir do alcance da evolução de indicadores a serem definidos, de atendimento e melhoria da aprendizagem com redução das desigualdades, nos termos do sistema nacional de avaliação da educação básica;Artigo 212-A, X, alínea "e" — lei regulamentadora do Fundeb deve definir "o conteúdo e a periodicidade da avaliação, por parte do órgão responsável, dos efeitos redistributivos, da melhoria dos indicadores educacionais e da ampliação do atendimento" em consonância com o Plano Nacional de Educação; Artigo 239, § 5º — dever de avaliação dos resultados dos programas de desenvolvimento econômico financiados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com os recursos do Programa de Integração Social e do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/Pasep); bem como dever de divulgação de tais resultados "em meio de comunicação social eletrônico e apresentados em reunião" da Comissão Mista de Orçamento; Artigo 41 do ADCT — dever de reavaliação bienal por parte dos Poderes Executivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios de todos os incentivos fiscais de natureza setorial que estavam em vigor na data de promulgação da CF/1988. Caso não fossem confirmados por lei, seriam eles automaticamente revogados.

[2] "A demanda pelo Estado, nos países em desenvolvimento, é mais específica, reclamando um governo coeso e em condições de articular a ação requerida para a modificação das estruturas que reproduzem o atraso e a desigualdade." (BUCCI, 2021, p.75)

[3] Art. 6º fruto da Emenda Constitucional 65 de 2010.

[4] Fabiana de Menezes Soares – Direito/LIA/UFMG ; Douglas Pontes -Depto. de Computação/LIA/UFMG ; Adriano Velloso – Depto. de Computação/LIA/UFMG Pesquisa em rede – Pós Doutorado LIA – Laboratório de Inteligência Artificial- Departamento de Ciência da Computação /UFMG intitulada: Análise preditiva aplicada a sistemas normativos complexos: IA para detecção de riscos ao direito à alimentação

[5] Uma pesquisa no repositório de publicações do Google Scholar, com a utilização simultânea de dois termos “Food” e “Public Health” gera um resultado de aproximadamente 3.000.000 de ocorrências, repetindo a pesquisa em português “Alimentação e Saúde pública” as ocorrências chegam a cerca de 76.000. O termo “potable water”, por sua vez resulta em cerca de 708.000 ocorrências, em português “água potável” aparece em cerca de 106.000. Por outro lado o conceito latino-americano de ‘Buen vivir” por exemplo, aparece com pouco mais de 28.080 ocorrências. ado em 02 de maio de 2023.

[6] Defendemos que os serviços de saneamento básico são um serviço social de titularidade estadual. DE OLIVEIRA, Thaís de Bessa Gontijo; DE MENEZES SOARES, Fabiana. Será o saneamento básico uma espécie de serviço público de interesse social? Um estudo à luz da Teoria das Capacidades Estatais aplicada aos Municípios brasileiros. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 10, n. 3, 2020.

Autores

  • é professora do curso de graduação e do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutora e mestre em Direito pela UFMG e coordenadora do Observatório para qualidade da Lei e do Legislab.

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