A coisa julgada no tempo e a decisão do STF no Tema 881
3 de março de 2023, 19h45
A Constituição normatiza a proteção dos valores máximos de uma nação, por esse motivo impera o dogma da Supremacia da Constituição que obriga que todo e qualquer instrumento legislativo e judicial deve respeito e observância aos comandos constitucionais.

Para melhor compreensão da questão jurídica que foi decidida pelo Supremo Tribunal Federal em 8/2/2023 nos Recursos Extraordinários, RE 955.227 (Tema 885) e RE 949.297 (Tema 881), sobre a permanência e eficácia temporal da coisa julgada quando proferida em ações individuais perante novo, posterior e contrário entendimento do STF em controle de constitucionalidade concentrado ou em sede de repercussão geral, faz-se necessário discorrer um pouco sobre o sistema de controle de constitucionalidade adotado.
No Brasil, o controle de constitucionalidade difuso foi o primeiro tipo inserido no sistema jurídico, na vigência da Constituição Republicana de 1891. Caracteriza-se por ser, em resumo, o controle em que todos os órgãos do Poder Judiciário, diante de um caso concreto, têm competência para repelir lei ou ato normativo que se revele incompatível com a Constituição, o que permite assim que todos os órgãos do Poder Judiciário integrem a justiça constitucional.
Tal modelo de controle se sustenta sob o argumento que seria uma afronta direta ao texto constitucional itir que uma norma viciada pudesse regular condutas intersubjetivas, acolhendo, desse modo, a teoria da nulidade da norma inconstitucional que teve início nos Estados Unidos com a célebre decisão do juiz Marshall, quando do julgamento do caso Marbury v. Madison [1], ocorrido em 1803, em que se proclamou que nenhum ato contrário à Constituição poderia ser considerado válido. No que tange aos efeitos das decisões em controle difuso de constitucionalidade são, em regra, ex tunc (retroagem).
Notadamente, no ano de 1965, foi inserido em nosso sistema jurídico — em plena vigência da Constituição de 1946 e por meio da Emenda Constitucional nº 16, de 26 de novembro de 1965 — o controle de constitucionalidade concentrado ou abstrato, que por sua vez, defende a teoria da anulabilidade da norma inconstitucional, a ideia de que uma lei não poderia ser declarada inconstitucional desde a sua publicação.
Com a intenção de manter a coerência sistêmica aos dois modelos de controle de constitucionalidade eleitos, o então novel modelo, também ou a dar efeito ex tunc às decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade, denotando a adoção, pelo Brasil, do dogma da nulidade da lei declarada inconstitucional e destoando, assim, dos efeitos verificados no modelo introduzido por Hans Kelsen na Constituição austríaca, que sustentava que a lei declarada inconstitucional não poderia ser considerada nula desde o início (ex tunc), mas sim anulável (ex nunc). Desse modo, a nulidade da lei declarada inconstitucional e seu efeito ex tunc é uma herança do modelo americano de controle difuso de constitucionalidade e tem sua fundamentação no dogma da Supremacia da Constituição.
Portanto, após 1965, o sistema jurídico brasileiro ou a instrumentalizar dois tipos de sistema de controle de constitucionalidade: um difuso, em que a constitucionalidade de lei ou ato normativo é analisada por qualquer órgão do Poder Judiciário, a partir de um caso concreto que demanda a pronúncia incidental de inconstitucionalidade no julgamento da ação submetido a Juízo; o outro concentrado, de competência originária do STF.
Nasceu, assim, o sistema brasileiro de constitucionalidade que se adaptou à realidade brasileira.
A síntese apertada do modelo de controle de constitucionalidade adotado pelo Brasil se faz necessário para entender que não há prevalência de um tipo de controle sobre o outro, são modelos distintos e, certamente, a adoção dos dois modelos pelo Brasil é o motivo da confusão quando o assunto é a chamada “coisa julgada”.
A chamada “coisa julgada” é uma garantia fundamental que impede a modificação de decisão de mérito que não mais seja objeto de recurso. Sua autoridade tem raízes constitucionais conforme o supracitado artigo 5ª, XXXVI, da CF, é um direito fundamental contribuinte “exatamente para proteger o cidadão contra as mudanças de interpretação jurisprudenciais” [2].
Nessa trilha argumentativa, quando estamos diante de matéria de natureza tributária, a consequência da coisa julgada se intensifica pelo efeito extintivo do crédito tributário, nesse sentido é a doutrina de Aliomar Baleeiro e Misabel Derzi:
Não obstante, não apenas isso. A coisa julgada, extinguindo o crédito tributário, a sentença rescindenda não tem o condão de reinstituir o tributo. Seria necessária nova lei da pessoa competente em razão do extremo rigor do princípio da legalidade no Direito Tributário. Como lembra Aliomar Baleeiro, o Direito Tributário não a nem mesmo repristinação. Constatou o citado jurista que “(…) a lei tributária, revogada por outra, não volta a vigorar pela revogação desta última (repristinação) […].
Portanto, se nem mesmo lei pode repristinar no Direito Tributário, muito menos decisão judicial (rescisória) é apta a revigorar crédito já extinto. Se dado tributo foi legalmente extinto (uma vez que o Código Tributário Nacional atribui tais efeitos à coisa julgada), não poderia uma sentença rescisória liberá-lo, reconstruí-lo, concedendo-se ao ato jurisdicional efeito normativo contra disposição expressa extintiva contida em lei complementar da Constituição.” [3]
Veja que a razão de ser da coisa julgada, a sua essência, é exatamente proteger o jurisdicionado de eventual mudança de entendimento dos tribunais, desse modo, a coisa julgada em matéria tributária se perpetua, além da garantia da autoridade e da imutabilidade das decisões, pelo efeito extintivo do crédito tributário, que “foi positivado para garantir segurança jurídica ao sistema, enfatizando seus efeitos de desaparecimento, fim, perda da juridicidade do crédito tributário, deixando de ser crédito tributário” [4], sendo assim, não há mais que se falar em crédito tributário após a aplicação dos efeitos da coisa julgada.
Porém, o argumento utilizado pelos ministros nos recursos extraordinários (Temas 881 e 885) foi a aplicação da norma processual, Lei Ordinária nº 13.105/2015 — Código de Processo Civil, artigo 505 [5], que autoriza que o juiz decida novamente questões já decididas relativas à mesma lide quando tratar-se de relação jurídica de trato continuado diante de modificação e estado de fato e de direito.
A conclusão carreada pelos ministros é que a decisão, que tenha por objeto relação jurídica de trato continuado, revela-se uma alteração do estado de direito, “como se fosse” (mas não é) uma nova lei. E nestes casos, perderá o seu efeito temporal na superveniência de novo pronunciamento em sentido contrário pelo Supremo Tribunal Federal.
É oportuno destacar que a Lei Ordinária (artigo 505 do C) não se sobrepõe à autoridade da coisa julgada garantida pelo Texto Constitucional (artigo 5º, XXXVI, da CF) e ao efeito extintivo normatizado pela Lei Complementar, Código Tributário Nacional (artigo 156, X, do CTN).
É uníssono que a função judicante do STF em controle abstrato não é a criação de uma nova lei, sua função não é criar direito novo, função típica de legislador positivo, sob pena de usurpar o papel do Poder Legislativo. A atividade cognitiva e interpretativa do STF em controle de constitucionalidade tem como objetivo proteger o Texto Constitucional (como guardião conforme dispõe artigo 102 da CF/88), atuando, portanto, como legislador negativo.
De posse dessas informações, é preciso repisar que para a aplicação do supracitado artigo da lei processual civil seria necessária uma nova lei. O artigo processual (505 do C) não quis proteger uma nova interpretação sobre o mérito (natureza do tributo), não quis proteger uma mudança de entendimento, ou seja, uma decisão que desconsidera a decisão anterior, mesmo porque seria um paradoxo com a natureza da coisa julgada. Como afirmamos alhures, a essência da coisa julgada, é exatamente proteger o jurisdicionado contra mudança de entendimento dos tribunais, sendo, portanto, uma garantia da autoridade e da imutabilidade das decisões.
O artigo 505 do C permite que se tenha uma nova decisão em decorrência de uma nova situação de direito (nova lei) ou uma nova situação de fato (novo comportamento humano), isto é, duas sentenças disciplinando situações diversas (duas leis) no tempo e no espaço.
Arrematando: não há fundamento legal para o entendimento de que nova interpretação da Corte Suprema, contrária à decisão individual favorável em controle difuso de constitucionalidade sobre ação judicial que tinha como objeto tributos que são recolhidos de forma continuada, cesse a garantia da coisa julgada para o futuro de forma automática, prescindindo de qualquer medida, inclusive de Ação Rescisória, assim que o STF decidir de forma contrária à situação individual.
Mas, lamentavelmente, não foi o que ficou decidido em 8/2/2023 nos Temas de Repercussão Geral nº 881 e 885, pois os contribuintes que tiveram decisões favoráveis (com trânsito em julgado) para não recolherem tributos considerados inconstitucionais, podem ter seus casos reanalisados e modificados, mediante superveniência de precedente do STF em controle concentrado, gerando nova e automática cobrança de tributo após o período da anterioridade.
Mutatis mutandis, o mesmo efeito deverá ser aplicado às decisões favoráveis à Fazenda Pública na superveniência de mudança de entendimento pelo STF.
No que tange ao caso concreto, os ministros também decidiram que não haverá modulação dos efeitos da decisão, sendo assim, seus efeitos retroagem para o ano de 2007 (ano em que a cobrança da CSLL foi declarada constitucional pela ADI 15), respeitando o prazo de prescrição do crédito tributário.
Em face das teses firmadas, não serão atingidas, pela nova interpretação, as decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. Acrescente-se ainda que devem ser respeitados os princípios da irretroatividade, da anterioridade anual e da noventena ou anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo, quando o contribuinte tiver a quebra automática da sua decisão individual.
Quanto aos contribuintes que diretamente serão impactados com a nova decisão, que são aqueles que possuem trânsito em julgado antes de 2007 (ADI 15) em ações individuais sobre Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL), já se encontra, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 512/2023 (apresentado em 14.02.2023), que pretende instituir o Programa Especial de Regularização Tributária do Fim da Coisa Julgada (PERT-Fim) com proposta de parcelamento em até 240 prestações com redução em até 50% das penalidades.
Por óbvio que criar um parcelamento especial não irá minimizar o notável cenário de insegurança jurídica, de frontal desrespeito à coisa julgada e de autêntico esvaziamento do sistema de controle de constitucionalidade difuso, uma vez que os contribuintes se sentirão apreensivos com a possibilidade de mutabilidade de sua decisão individual perante a fragilidade da coisa julgada.
Para finalizar, vou apenas resgatar a supracitada redação da essência da coisa julgada com o objetivo de enfatizar e permitir que outras reflexões possam surgir, “a essência da coisa julgada, é exatamente proteger o jurisdicionado contra mudança de entendimento dos tribunais, sendo, portanto, uma garantia da autoridade e da imutabilidade das decisões”.
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Referências
MARQUES, Renata Elaine Silva Ricetti. Decisões em matéria tributária: jurisprudência e dogmática do Supremo Tribunal Federal em matéria tributária. 2ª ed. rev. ampl. e atual. — Salvador: Editora JusPodivm, 2021.
BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro, atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi — 12. ed. — Rio de Janeiro: Forense, 2013.
MARQUES, Renata Elaine Silva Ricetti. Curso de decadência e de prescrição no direito tributário: regras do direito e Segurança Jurídica. 5ª ed. rev. e atual. — São Paulo: Noeses, 2021.
[1] MARQUES, Renata Elaine Silva Ricetti. Decisões em matéria tributária: jurisprudência e dogmática do Supremo Tribunal Federal em matéria tributária. 2ª ed. rev. ampl. e atual. — Salvador: Editora JusPodivm, 2021. p. 121-122.
[2] BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro, atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi — 12. ed. — Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 1270.
[3] Idem, p. 1270.
[4] MARQUES, Renata Elaine Silva Ricetti. Curso de decadência e de prescrição no direito tributário: regras do direito e Segurança Jurídica. 5ª ed. ver. e atual. — São Paulo: Noeses, 2021. p.136.
[5] Artigo 505 do C/2015. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo:
I – se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;
II – nos demais casos prescritos em lei.
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