STJ decide contra texto claro da Lei nº 5.836/72
27 de março de 2023, 19h40
Comento aqui um julgamento novíssimo do STJ (Superior Tribunal de Justiça), em 13/3/2023, no AgInt no Agravo em Recurso especial nº 2184064-RJ. É, sim, uma decisão contra legem. Foi ressuscitado, infelizmente, a questão do livre convencimento, em 2023, na era dos direitos.
Por isso que acredito em assombração jurídica. Até parece que estamos no C de 1973. Aliás, do regime autoritário. Além do que, o "precedente" do STJ, não se aplica ao caso concreto.
Ah, não se pode esquecer das barreiras para "subir" o recurso especial. Uma "decisão interlocutória", de três linhas, do TRF-2, na calada da noite, às 23h07, não itiu, equivocadamente, o recurso especial.
É a jurisprudência defensiva. Copia e cola e sai "decidindo". Isso ocorre com milhares de processos. E a justiça? Daí a correta observação de Lenio Streck [1]:
"Todos sabemos das dificuldades extremas de se fazer 'subir' um REsp. Atravessar um fosso de jacarés, matar um leão e, ainda por cima, desviar-se das balas dos robôs que atiram nas palavras chaves. Convenhamos, é muita coisa. A retranca é de fazer inveja à escola gaúcha de futebol, numa metáfora ludopédica."
Além de tudo, a votação foi por "sessão virtual". Só os espíritos sabem o que está ocorrendo. E a sustentação oral presencial ou por videoconferência? Essa sagrada prerrogativa da advocacia, para o STJ, não existe. Apenas são autorizadas sustentações orais gravadas. É rezar para ser observada.
Mas, o advogado não é indispensável à justiça? Ao menos é o que diz o artigo 133 da CF, não é?
É uma forma, sim, de calar a voz do advocacia!
Como explicam Aury Lopes Jr. e Ruiz Ritter [2]:
"Não é preciso nenhum esforço cognitivo para se compreender que isso é um faz-de-contas. Existe uma diferença abissal entre 1) a realização de uma sustentação oral na presença imediata, física ou virtual, de todos os julgadores do caso, com a possibilidade de correção tempestiva de alguma questão fático-jurídica equivocadamente interpretada na ocasião do julgamento; e 2) a gravação de uma sustentação oral para juntada em um sistema na, no máximo, expectativa de que seja visualizada pelos próprios julgadores(…)."
À vista disso, segue a minha crítica doutrinária. Aliás, a doutrina é para doutrinar. Vejam os fragmentos do voto condutor:
"A Lei Federal nº 5.836/72 apenas delimita o prazo prescricional de seis anos para desate do Conselho de Justificação, a ser verificado entre a data da prática do ato transgressional e a da instauração do procedimento."
Ora, ora o texto da Lei n° 5836/72, no artigo 18, é muito claro:
"Artigo 18. Prescrevem em seis anos, computados na data em que foram praticados, os casos previstos nesta Lei."
Ou seja, prescrevem em seis anos os casos previstos nesta lei. O prazo é computado na data em que forem praticados, isto é, da conduta. Simples assim.
A referida norma não prevê causas de suspensão ou interrupção dos prazos prescricionais, entendendo serem ininterruptos desde a data de ocorrência. itir-se que o prazo prescricional deve ser levado a efeito tão somente para a instauração do Conselho de Justificação (CJ) seria dizer algo de que a lei não dispõe.
Afinal, onde, expressamente, a Lei nº 5.836/1972, delimita o prazo prescricional para desate do Conselho de Justificação a ser verificado entre a data da prática do ato infracional e a da instauração do procedimento?
Há alguma teoria doutrinária que sustenta essa assertiva do STJ?!
Pois então. Os prazos fluem ininterruptamente. Por quê? Porque, primeiro, a Lei nº 5836/1972 não diz. Segundo, se o marco final for colocado, na instauração do procedimento, em qualquer momento, após a instauração do Conselho de Justificação, a istração Castrense poderá punir o militar, tornando, na prática, uma simples contravenção disciplinar imprescritível; o que, por óbvio, seria inconstitucional.
É uma eterna licença para punir!
Outra parte do voto condutor chama especial atenção:
"Ressalta-se que, de comum sabença, cabe ao magistrado decidir a questão de acordo com o seu livre convencimento, utilizando-se dos fatos, provas, jurisprudência, aspectos pertinentes ao tema e da legislação que entender aplicável ao caso (c.f. AgRg no AREsp 107.884/RS, relator ministro Humberto Martins, DJe 16/05/2013), não estando obrigado a rebater, um a um, os argumentos apresentados pela parte quando já encontrou fundamento suficiente para decidir a controvérsia (c.f. EDcl no AgRg no AREsp 195.246/BA, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 04/02/2014)."
Comum sabença? Livre convencimento? Como assim? Procurei no Novo Código de Processo Civil. Não encontrei nada. A propósito, no artigo 371 do NC [3], não existe a palavra livre. Será que o STJ está aplicando o artigo 131 do C/73? [4].
Cabe ter presente, neste ponto, a lição de Lenio Streck [5]:
"Como justificar, na democracia, o livre convencimento ou a livre apreciação da prova? Se democracia, lembro Bobbio, é exatamente o sistema das regras do jogo, como pode uma autoridade pública, falando pelo Estado, ser 'livre' em seu convencimento? Pergunto: A sentença (ou acordão), afinal, é produto de um sentimento pessoal, de um subjetivismo ou deve ser o resultado de uma análise do direito e do fato (sem que se cinda esses dois fenômenos) de uma linguagem pública e com rigorosos critérios republicanos? Porque a democracia é o respeito às regras do jogo. (…) Meu Deus… em 2019, juízes escolhiam antes e fundamentavam depois, com base num negócio a que chamavam de 'livre convencimento'… como é que pode?"
Prosseguimos. O voto condutor aduz que "não estando obrigado a rebater, um a um, os argumentos apresentados pela parte".
Pois bem. Fundamentar uma decisão envolve explicar por a + b, o porquê. O que seriam questões relevantes do processo? Quais as questões que não são relevantes?
Por sinal, Ronald Dworkin [6] cunhou o termo "tese do fingimento" vale dizer, os juízes decidem de acordo com suas convicções íntimas a favor do que entendem como mais adequado ao caso em exame. Ou seja, decidem em face do que o direito deveria ser e não em face do que o direito é.
É o entendimento de Lenio Streck [7]:
"Não é possível realizarmos leitura do artigo 489, parágrafo 1º, IV, do novo C, atribuindo a ele a conclusão de que o juiz não tem o dever e examinar todos os argumentos das partes. Somente, é claro, com o atendimento ao artigo 489, parágrafo 1º, IV (e todos os seus demais incisos) teremos a demonstração de que todas as opções decisórias foram submetidas ao filtro do contraditório e que o raciocínio decisório levou em conta o conglomerado de argumentações das partes, relevantes para o julgamento da causa. E, se porventura, as alegações são irrelevantes, então deve o juiz dizê-lo claramente. Ou seja, precisa explicar o porquê."
Caso contrário, será o vale-tudo: "decido primeiro, fundamento depois". Isso tem nome: arbítrio judicial.
Quem recorre, é evidente, quer que o julgador enfrente todos os argumentos deduzidos no processo. A propósito, é o que fala o artigo 489, §1º, IV, NC. Logo, não há espaço para discricionaridade e subjetividade.
Aliás, o juiz não jurou cumprir as leis e a Constituição?!
Porém, não vale, somente, colocar os argumentos no relatório e não enfrentar, ponto a ponto, na fundamentação.
Por fim, na ementa, fala-se em "precedente". Precedente tem hierarquia em relação à lei? A pergunta hermenêutica-chave: o caso concreto cabe no "precedente"?
Os precedentes dão uma resposta adequada ao Direito, no caso concreto? O que é a "resposta adequada" no Direito? Streck [8] explica:
"Essa busca por uma resposta hermeneuticamente adequada à Constituição, a resposta correta, encontra fundamento no fato de que o modelo de Estado democrático de Direito não possibilita a adoção de interpretações procedimentalistas, uma vez que tal esquema acaba por 'produzir' uma pluralidade de respostas, alimentando discricionariedades, arbitrariedades e decisionismos."
Por outras palavras, uma resposta adequada ao Direito tem que ter o DNA da Constituição.
Ficou uma esquizofrenia infraconstitucional. A lei federal diz uma coisa. O acórdão do STJ vai contra legem. Decidir de acordo com o livre convencimento e "precedente" não é decidir conforme a Constituição e a Lei.
Pior: em nome da ficção do livre convencimento milhares de pessoas estão perdendo direitos!
Valha-me Nossa Senhora…
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Referências
[1] /2021-out-21/senso-incomum-restara-recurso-especial-aprovada-pec-relevancia
[2] /2023-fev-24/limite-penal-silencio-advocacia-tribunais-aumenta-injustica
[3] "Artigo 371.O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento".
[4] Artigo131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na decisão, os motivos que lhe formaram o convencimento.
[5] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, 2014
[6] DWORKIN, Ronald. O império do direito; tradução Jefferson Luiz Camargo; revisão técnica Gildo Sá Leitão Rios. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 45-52.
[7] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, 2014
[8] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição e hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 327-328).
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