Opinião

Majoração de percentual da garantia e 'step-in' não devem solucionar as obras paradas

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  • é advogada pós-graduada em "Novas Tendências em Direito" pelo Instituto New Law sócia do Schalch Sociedade de Advogados (SSA) e membro da Comissão de Direito Securitário da Ordem dos Advogados do Brasil-SP (triênio 2022/2024).

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20 de novembro de 2023, 6h38

Em auditoria realizada em 2019[1], o Tribunal de Contas da União (TCU) verificou que 23% das obras executadas com recursos da União, cadastradas no banco de dados do Programa de Aceleração do Crescimento, teriam sido paralisadas por “abandono pela empresa” contratada.

O relatório também chama atenção para questões relacionadas a deficiências de projetos básicos fornecidos pela istração, contempladas no item “técnico”, que representam 47% dos contratos e que seriam “causadas pelos pequenos prazos para sua elaboração, baixo interesse na realização dos estudos e falta de adequado desenvolvimento e amadurecimento do projeto”.

Outro ponto destacado consiste no fato de que “rotineiramente as obras são paralisadas devido à indisponibilidade de recursos” da própria istração, o que representaria 10% das causas de paralisação das obras.

É neste cenário que se insere o seguro garantia, que tem como objetivo garantir ao segurado indenização por prejuízos sofridos em decorrência de inadimplementos incorridos pelo tomador na execução de contratos públicos ou privados.

Ele se diferencia dos demais tipos de seguro porque envolve uma relação tripartite, formada por três partes e três contratos: entre segurado e tomador, no denominado objeto principal (antigo contrato garantido ou contrato principal); entre tomador e seguradora, retratada no chamado contrato de contragarantia (CCG); e entre segurado e seguradora, representada pela apólice de seguro, na qual são consignadas, dentre outros, a extensão e limites das coberturas contratadas, vigência e importância segurada.

Além da circular Susep nº 662/2022, que estabelece as regras e critérios a serem observados pelas seguradoras para a elaboração de clausulados e sua respectiva comercialização, essa modalidade de seguro é regida, primordialmente, pelas regras de direito contratual e securitário previstas no Código Civil, por se tratar de um contrato de seguro de danos, e pela Lei nº 14.133/2021, atual Lei Geral de Licitações e Contratos istrativos.

Nesse particular, destaca-se que a Lei nº 14.133/2021 inovou com relação à legislação anterior, ao incluir a possibilidade de inclusão de “cláusula de retomada” (também denominada de “step-in”) nos contratos de grande vulto, assim considerados os com valor envolvido superior a R$ 200 milhões[2], para permitir à seguradora a adoção das medidas necessárias à consecução do escopo inadimplido pelo tomador, por si ou terceiros, além de alterar os percentuais das garantias para até 30%[3], na tentativa de aproximar o produto ao modelo estadunidense, onde é considerado bastante efetivo, e, assim, tentar resolver o problema das obras paradas no País.

A respeito da previsão da cláusula de retomada, uma primeira crítica da doutrina relaciona-se ao questionamento sobre o Brasil possuir, ou não, estrutura de mercado para inserção desse mecanismo.

Isso porque, no Brasil, não é usual que as seguradoras promovam fiscalizações e auditorias permanentes nas obras garantidas por apólices de seguro garantia de performance, o que constitui mera prerrogativa. O poder-dever da seguradora de atuar na tentativa de evitar o sinistro ou mitigar seus efeitos só se inicia a partir do momento da notícia da “expectativa de sinistro”, documento pelo qual o segurado deve lhe comunicar a respeito de inadimplementos praticados pelo contratado íveis de impactar a apólice futuramente, caso não sejam sanados, inclusive sob pena de, não o fazendo, poder perder o seu direito à indenização pretendida[4].

Logo, os relevantes impactos financeiros que recairão sobre a contratação, mormente relacionados aos custos de fiscalização e gerenciamento da obra para o exercício do “step-in”, serão, ao fim, transferidos à própria istração. (Nohara, 2021)

Já no tocante à majoração dos percentuais de garantia, a principal crítica se relaciona ao percentual de “até” 30% estabelecido em lei, porque eventual garantia correspondente a 30% do preço do contrato pode vir a ser integralmente consumida apenas para a indenização da istração decorrente de multas inadimplidas pelo seu contratado[5], não sendo, portanto, suficiente para a consecução do seu objetivo principal, que é a conclusão do projeto.

De outro lado, não se pode olvidar que, quanto maior o valor da garantia, maior o valor da contragarantia a ser oferecida pelo tomador à seguradora, o que revela a preocupação de que “a impossibilidade de prestar garantias restrinja em demasia o caráter concorrencial do procedimento”. (Rocha, 2022)

Em que pese a tentativa do legislador, parece acertado dizer que não será a majoração dos percentuais de garantia e/ou a previsão de “step-in” nos contratos istrativos que resolverá a problemática das obras paradas no País.

Para tanto, a istração deverá focar na capacitação do seu pessoal, seja para a escorreita elaboração e aprovação de projetos, considerando os aspectos fáticos da contratação e respectivas variáveis, seja para sua gestão técnico-financeira, inclusive de modo a permitir que a seguradora seja comunicada logo aos primeiros sinais de inadimplemento contratual do tomador, na forma exigida pela apólice, a fim de evitar possíveis negativas de cobertura pelo descumprimento do segurado de suas obrigações previstas no contrato de seguro.

Adicionalmente, o fortalecimento da governança[6] e consequente aperfeiçoamento dos controles e mecanismos de gestão do risco da istração[7] também se mostra extremamente salutar.

Ainda cabe a recomendação de utilização efetiva, pelas partes, de métodos alternativos de resolução de controvérsias, com destaque para os Comitês de Resolução de Disputas, incorporados pela Lei nº 14.133/2021[8], que permitem que conflitos sejam resolvidos no curso da execução das obras, sem a necessidade de paralisação, como no emblemático caso da linha amarela do Metropolitano de São Paulo.

A adoção de tais medidas, além de trazerem efeitos positivos para o caso concreto, tem o condão de melhorar substancialmente, a médio e longo prazo, a experiência do poder público nas contratações istrativas e respectiva gestão físico-financeira do risco, ensejando maiores ganhos em termos de eficiência e desenvolvimento.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Circular SUSEP nº 662, de 11 de abril de 2022. Dispõe sobre o Seguro Garantia. Diário Oficial da União: seção 1, ano 70, p. 55, 12 abr. 2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/circular-susep-n-662-de-11-de-abril-de-2022- 392772088. o em: 10 jan. 2023.

BRASIL. Lei nº 14.133, de 1 de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos istrativos. Brasília, DF: Presidência da República, 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm. o em: 10 jan. 2023.

NOHARA, Irene Patrícia Dion. Nova Lei de Licitações e Contratos: comparada. 1. Ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021.

ROCHA, Silvio Luis Ferreira da. Artigos 96 a 102. In: DAL POZZO, Augusto Neves; ZOCKUN, Mauricio; CAMMAROSANO, Márcio (coord.). Lei de licitações contratos istrativos comentada: Lei 14.133/21. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2022. E-book.

Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1.079/2019 – Plenário. Auditoria operacional com o objetivo de elaborar um diagnóstico sobre as obras paralisadas no país financiadas com recursos da União. Relator: Min. Vital do Rêgo, 15 de maio de 2019. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/redireciona/acordaocompleto/%22ACORDAO-COMPLETO-2351843%22. o em: o em: 10 jan. 2023.


[1] Acórdão TCU nº 1.079/2019-Plenário.

[2] Artigo 6º, inciso XXII, da Lei nº 14.133/2021.

[3] Artigos 98 e 99 da Lei nº 14.133/2021.

[4] De acordo com a cláusula 17, § 2º, da Circular nº 662/2022, caso a apólice exija a comunicação da expectativa de sinistro, a sua não comunicação, ou sua não comunicação de acordo com os critérios estabelecidos nas condições contratuais do seguro, poderá gerar perda de direitos caso configure agravamento do risco e impeça a seguradora de realizar o acompanhamento e/ou monitoramento do objeto principal; atuar como mediadora da inadimplência ou de eventual conflito entre segurado e tomador; ou prestar apoio e assistência ao tomador.

[5] Artigo 56, II, § 3º, da Lei nº 14.133/2021.

[6] Artigo 11 da Lei nº 14.133/2021.

[7] Artigo 169 da Lei nº 14.133/2021.

[8] Artigo 151 da Lei nº 14.133/2021.

Autores

  • é advogada, pós-graduada em "Novas Tendências em Direito" pelo Instituto New Law, sócia do Schalch Sociedade de Advogados (SSA) e membro da Comissão de Direito Securitário da Ordem dos Advogados do Brasil-SP (triênio 2022/2024).

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