Opinião

Violência processual e imunidade profissional do advogado

Autores

  • é sócia do escritório Bastianetto Alessi Advogados doutora em Direito Processual pela PUC-MG presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB-MG e professora de Direito Processual e Direito Internacional da Escola Superior Dom Helder Câmara.

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  • é sócia do escritório Ribeiro Mello e Barretto Advogados mestra em Família na Sociedade Contemporânea pela Ucsal presidenta do IBDFAM-BA e professora de Direito Civil do Curso Cejas.

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22 de novembro de 2023, 17h16

O princípio da boa-fé processual tem como principal fundamento a garantia central e antecipatória a quaisquer atos processuais de que as partes, seus procuradores e terceiros que participem do processo observarão e cumprirão o sistema jurídico, mormente a principiologia ético-jurídica que o abarca.

O direito costumeiro internacional, que pode ser compreendido como um sistema excepcional, tem como fundamento máximas consolidadas comosic utere tuo ut alienum non laedes [1], a qual, sob as perspectivas nacional e internacional, refere-se não só à aderência à jurisdição de certo território, mas também à necessidade imperativa de não lesar o Direito Internacional.

Esse entrelaçamento sistêmico tem o condão de tornar órgãos decisórios com competências territoriais definidas e limitadas em órgãos de tomo internacional pela conectividade panprocessual que a fundamentação de suas decisões possui com o sistema de justiça global.

Foi assim que a violência processual, de forma pioneira, teve enfrentamento direto no Brasil no dia 29 de setembro último pelo Tribunal de Ética e Disciplina (TED) do Estado da Bahia [2]. O Ibadfem (Instituto Baiano de Direitos e Feminismos) postulou ao TED estadual consulta em tese para perquirir se determinados termos utilizados comumente em petições por advogados, em detrimento de partes mulheres e/ou suas advogadas, constituiriam infração ético-profissional, bem como questionar qual seria a penalidade ao advogado pela prática de referida litigância abusiva.

Os questionamentos postos ao juízo disciplinar do TED tem como pressupostos fulcrais tanto a protetividade conferida à mulher por normas e standards nacionais e internacionais quanto a relevância constitucional e convencional da advocacia para a garantia do fair trial [3], possibilitada por uma litigância contida por parâmetros de lealdade, idoneidade e fidúcia entre as partes para o atingimento dos objetivos processuais [4]. Afinal, como almejar a definitividade da jurisdição, atributo de imunização dos atos processuais, em um cenário de instalação atávica de violência processual de gênero por litigância abusiva?

Os termos utilizados por advogados, mormente do sexo masculino [5], contra partes mulheres e suas advogadas em postulações escritas ao Judiciário e que permanecem registradas nos sistemas eletrônicos de processamentos de feitos, em uma análise abstrata, não aparentam possuir relação com as causas [6]. Segundo referida decisão em consulta ao TED/Bahia, a violência processual praticada por profissionais inscritos na OAB é infração ético-profissional e pode implicar a perda da idoneidade moral para o exercício da advocacia (artigo 11, V c/c Art.8º, VI do Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil-EOAB).

Ademais, em relação à segunda pergunta do Ibadfem sobre as possíveis sanções aplicáveis, o TED/Bahia asseverou que a prática do artigo 34, XXX (praticar assédio moral, assédio sexual ou discriminação), é de natureza grave, sendo aplicável a pena de suspensão pela interdição do exercício profissional em todo o território nacional, cumulável com multa.

Entretanto, a prática de violência processual que demonstre a perda da idoneidade moral do advogado (artigo 34, XXVII c/c artigo 38, II do EOAB), por sua vez, é gravíssima, implicando a exclusão dos quadros da OAB. Faz-se importante destacar que mesmo que a incursão da conduta do profissional seja feita em relação ao artigo 34, XXX do EOAB, em acordo com o devido processo disciplinar, a penalidade de suspensão pode ensejar a exclusão pela reiteração da conduta em estrito cumprimento ao preceito do artigo 38, I do EOAB (Artigo 38. A exclusão é aplicável nos casos de: I – aplicação, por três vezes, de suspensão).

Além da preocupação com a ausência de urbanidade de advogados — juristas — brasileiros (Artigo 33, §único do EOAB) para com colegas profissionais e partes processuais do sexo feminino, bem como com a violação de princípios e objetivos que guiam a própria OAB, como a defesa dos direitos humanos (Artigo 44 do EOAB), questões processuais e constitucionais eminentes que envolvem o tema devem ser propriamente destacadas.

A imunidade profissional de advogados é prerrogativa essencial ao amplo exercício da sua função constitucional, sendo desta corolário garantias processuais várias como a inviolabilidade do escritório profissional ou do seu local de trabalho, a presença de representante da OAB em casos de prisão em flagrante do profissional [7], a garantia de prisão do advogado em sala de Estado Maior até o trânsito em julgado da sentença condenatória [8], assim como a chamada “imunidade judiciária” em relação aos crimes de injúria e difamação [9], a qual efetiva o animus defendendi de advogados pela necessidade de crítica e de ampla liberdade no seu exercício profissional que guarde pertinência subjetivo-temática com o objeto da demanda.

Entretanto, o animus defendendi, que presumidamente não representa transgressão ao patrimônio jurídico dos sujeitos processuais,é uma garantia juris tantum que sofre limitações pelo Direito Internacional e pelo próprio sistema jurídico nacional, sendo norma constitucional de eficácia redutível. De outra forma não haveria de ser, haja vista que as imunidades são institutos protetivos da função do profissional, e não um privilégio da pessoa do advogado, o qual, de forma sistêmica e com discriminação baseada no sexo [10], poderia ter a ele outorgado um salvo-conduto para atuar de forma desarrazoada, temerária e com desconexão ao objeto da causa que patrocina.

Por essa razão é que segundo orientação pacificada do STJ,

“as alegações formuladas pelo advogado, no exercício de seu mister, não podem ser atribuídas ao seu cliente. Neste caso, deve ser examinada a conduta do causídico e se ela se insere ou não no âmbito de sua imunidade profissional e dentro dos limites do exercício legítimo de seu ofício” [11].

Portanto, a jurisprudência entende que a atuação em desacordo com o decoro e o dever de urbanidade expressos no Código de Ética e Disciplina da OAB constituiria excesso de mandato na representação da parte, fato que exime esta última de legitimidade ad causam para figurar em ações penais.

A teleologia decisional do TED/Bahia, sob uma análise processual, interdita a possibilidade de arguibilidade da imunidade profissional do advogado por expressões textuais dirigidas exclusivamente a mulheres pela sua condição de gênero, refletindo um fenômeno discriminatório atávico e sistemático que nada tem a ver com as excludentes anímicas relativas à protetividade funcional da profissão.

A sombra digital dos ataques a mulheres em peças processuais é dado registrado e ível de estudo padronizado de comportamentos processuais abusivos, o qual deve ser sindicabilizado pelo devido processo legal.

Isto posto, relevante rememorar o relevante cumprimento do artigo 78 do C/2015, ou seja, a vedação do emprego de expressões ofensivas nos escritos processuais, bem como a determinação do juízo, de ofício ou a requerimento, para que referidas expressões sejam riscadas, sem prejuízo da obtenção, pela parte mulher, da certidão de interior teor das expressões ofensivas empregadas para os pertinentes encaminhamentos, à OAB e ao Ministério Público, acerca dos atos discriminatórios endoprocessuais [12].

A decisão do TED/Bahia fortalece a advocacia efetivamente técnica e de tomo constitucional, bem como a OAB na sua função competencial de disciplinar a profissão não somente com base em parâmetros nacionais, mas, principalmente, alicerçada no Direito Internacional e na promoção da justiça global.


[1] “Usa teus pertences ou exercita seus direitos sem infringir dano aos interesses ou direitos de outros.”

[2] Consultar Processo Consulta nº 932/2023 – Órgão Consultivo do TED – Seção do Estado da Bahia.

[3] Ver United Nations. General Assembly. Fourth Report on Peremptory Norms of general international law (jus cogens) by Dire Tladi, Special Rapporteur de 2019. A/CN.4/727, p.55. Fourth report on peremptory norms of general international law (jus cogens) by Dire Tladi, Special Rapporteur. Seventy-first sessionGeneva, 29 April–7 June and 8 July–9 August 2019. Consultar no link: https://legal.un.org/docs/?symbol=A/CN.4/727.

[4] Consultar Opinión Consultiva OC-14/94 Del 9 de Diciembre de 1994/Corte Interamericana de Derecho Humanos; CCJ Appeal Nº CV 5 of 2010, Caribbean Court of Justice; Laudo sobre Controversia sobre Comunicados Nº 37 del 17 de diciembre de 1997 y Nº 7 del 20 de febrero de 1998 del Departamento de Operaciones de Comercio Exterior (DECEX) de la Secretaría de Comercio Exterior (SECEX): Aplicación de Medidas Restrictivas al Comercio Recíproco/Tribunal Arbitral del Mercosur; Grand Duchy of Luxembourg v European Parliament/Case 230/81/CJEU.

[5] Importante destacar que a consulta em tese é genérica e abarca atos praticados em postulações processuais praticados por advogados e advogadas contra partes adversas mulheres e suas advogadas, não havendo, nas perguntas propostas ao TED/Bahia, quaisquer diferenciações de gênero em relação a potenciais ofensores. Entretanto, na pesquisa amostral randomizada que embasou a consulta, há predominância de postulações processuais ofensivas de advogados do sexo masculino.

[6] “Nefasta, retardada, burra, filhinha de papai, dengosa” são algumas expressões auferidas de estudos do Ibadfem a partir de análises randomizadas de excertos de petições registradas/distribuídas ao Judiciário em todo o território brasileiro e direcionadas às colegas advogadas e às suas assistidas mulheres por advogados.

[7] A ADI 1.127/STF pode ser consultada no seguinte link: https://portal.stf.jus.br/.

[8] O HC 305805/GO/STJ pode ser consultado no seguinte link: https://www.stj.jus.br.

[9] Cf. RHC 13396 / SP, “A imunidade prevista no art. 133 da Lex Maxima, no art. 142, I, do Código Penal e no art. 7º, § 2º, da Lei nº 8.906/94 não abrange o crime de calúnia. (Precedentes do STF e do STJ)”. Mais recentemente, consultar AgRg no AREsp 2235253 / SP no seguinte link: https://www.stj.jus.br.

[10] Consultar Art. 1º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 1979, promulgada pela Brasil pelo Decreto nº 4.377/2002 e Arts. I e II da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher de 1996 e promulgada pelo Brasil pelo Decreto nº 1.973/1996.

[11] Ver AgRg no AREsp 1882418 / SP/STJ no seguinte link: https://www.stj.jus.br.

[12] Ressalta-se que a abordagem que aqui se faz tem relação estrita com a finitude das perguntas postuladas ao TED/Bahia, não abarcando as demais populações vulneráveis e também protegidas convencionalmente e pelos sistemas jurídicos nacionais. Destaca-se, porém, que a violência processual abarca toda e qualquer ofensa por condições de raça, religião, sexo, nacionalidade e grupo social.

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