Opinião

Dever de paridade de gênero no Judiciário

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29 de novembro de 2023, 9h22

Em 400 anos de história da magistratura no Brasil, a igualdade substancial de gênero em seus quadros começou a tomar contornos de política pública a partir da ação de mulheres nos espaços de poder.

Quando presidiu o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) entre os anos de 2016 e 2018, a ministra Cármen Lúcia deixou importante legado à população e à magistratura brasileira ao, dentre outras ações, instituir políticas de combate à violência doméstica, regulamentar a atenção a gestantes e lactantes em presídios e determinar o incentivo à participação feminina em cargos de comando no Judiciário.

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O primeiro ato normativo do CNJ que fez referência à Agenda 2030 da ONU foi a Resolução nº 255/18, que implementou a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário, foi aprovado na última sessão do órgão sob seu comando.

Já sob a liderança da ministra Rosa Weber, também em sua última sessão na Presidência do CNJ, no dia 26 de setembro deste ano, o Poder Judiciário galgou o civilizatório inadiável: em votação por quase unanimidade dos/as conselheiros/as foi alterada a Resolução 106 a fim de garantir a paridade de gênero nos tribunais brasileiros de 2º grau. O colegiado, no exercício de sua competência constitucional, normatizou ação afirmativa que possibilita às magistradas concorrerem ao cargo de desembargadora, no o pelo critério de merecimento, em listas exclusivas de mulheres, alternadas com listas mistas de juízas e juízes.

Dentre os/as votantes na histórica sessão, destacou-se o conselheiro Vieira de Mello Filho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) ao CNJ, que, tal qual o ex-conselheiro Mário Goulart Maia (indicado pelo Congresso), de pronto acompanhou integralmente o voto inicial da relatora conselheira Salise Monteiro Sanchotene, manifestando-se de forma muito contundente em favor da elaboração de listas exclusivas de mulheres também no o pelo critério por antiguidade, o que, além de encontrar pleno assento constitucional, por certo tornaria menos prolongado o tempo necessário para o atingimento da efetiva paridade nos tribunais brasileiros.

Após o voto da relatora e dos dois conselheiros citados na sessão do dia 19 de setembro de 2023, quando os debates se iniciaram no CNJ, o julgamento foi interrompido por um pedido de vista do conselheiro Richard Pae Kim, representante dos/as juízes/as de Direito no órgão, que, na sessão seguinte, abriu parcial divergência para, como ponto principal, excluir o critério de antiguidade da ação afirmativa proposta. Esse voto divergente provocou um ajuste no voto da relatoria, a fim de que o entendimento do CNJ fosse sufragado pela então unanimidade presente, aprovando-se a medida temporária especial somente para o o aos tribunais pelo critério de merecimento.

Essa dinâmica na votação e a própria composição do Conselho naquele momento chamaram atenção para alguns aspectos interessantes, dentre eles a franca minoria de mulheres na bancada (apenas 3 num total de 14) e as especificidades de cada segmento ali representado.

O CNJ é um dos órgãos do Poder Judiciário e foi criado pela emenda constitucional conhecida como Reforma do Judiciário. A ideia inicial era no sentido de que o CNJ, ao abarcar em sua composição representantes dos ramos do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil e dos/as cidadãos/ãs, tornaria a justiça mais democrática, ível e transparente, propósitos que, em maior ou menor escala, entre idas e vindas, vêm paulatinamente sendo alcançados.

Todavia, quando se olha para dentro do Conselho, ou seja, para quem o compõe, percebe-se o quanto ainda é necessário avançar nos quesitos de gênero e raça. Pesquisa recente intitulada A participação das magistradas no Conselho Nacional de Justiça, realizada pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Direitos Humanos e o à Justiça do Programa de Pós-Graduação Profissional em Direito da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), concluiu que, desde 2004, quando o órgão foi criado, até 30 de julho de 2022 foram nomeadas 24 conselheiras mulheres e 96 conselheiros homens, totalizando ínfimos 20% de participação feminina, sem informação acerca da raça dos/as conselheiros/as. Em outras palavras, sequer é possível saber quantas pessoas negras chegaram ao Conselho!

Para chegar ao CNJ, o indicado ou indicada participa de uma disputa em âmbito nacional, que demanda grande dedicação, seja em função da necessidade de deslocamentos da cidade de origem, seja para qualificação acadêmica e/ou envolvimento associativo, tal qual geralmente se verifica nas promoções pelo critério de merecimento. De acordo com a pesquisa mencionada, “os dados obtidos sugerem que a baixa representatividade feminina no CNJ pode decorrer da discriminação institucional, que, sob critérios aparentemente neutros, acabam por contribuir com a invisibilidade imposta a elas nas funções de poder”.

No âmbito da magistratura brasileira, a Justiça do Trabalho é a que historicamente sempre teve o maior número de mulheres em seus quadros. Atualmente, elas já representam 51% no 1º grau e 40% no 2º grau. No entanto, quando se mira para os cargos de maior ascensão, a realidade muda drasticamente. O mencionado trabalho da Enfam indica que, desde a fundação do Tribunal Superior do Trabalho, elas somam apenas 6,5% dentre os/as ministros/as e, no CNJ, a Justiça do Trabalho é um dos segmentos que menos indicam mulheres: 11% dentre ministros/as do TST, 22% dentre juízes/as de Tribunais Regionais do Trabalho e 22% dentre juízes/as do trabalho. E recentemente, sobreveio a notícia de que, para o próximo biênio, o TST contemplou somente homens para todas as vagas destinadas ao ramo trabalhista no Conselho.

Com tais constatações, não se está a discutir a inegável aptidão ou brilhantismo dos indicados em si, mas sim a se refletir sobre igualdade substancial (aquela que deve transcender o corpo da norma e existir no mundo dos fatos) e sobre como a discriminação institucional de gênero no Poder Judiciário brasileiro opera para excluir as mulheres, mesmo no ramo seu mais feminizado, que é a Justiça do Trabalho, o que denota não só o acerto, como a imperiosidade da ação afirmativa adotada levada a cabo pelo CNJ.

Em parecer primoroso que subsidiou o CNJ na medida especial temporária para o fomento da paridade de gênero nos tribunais, o professor Daniel Sarmento defende que “em determinados contextos, a instituição das políticas de ação afirmativa representa um verdadeiro dever constitucional, e não mera faculdade política. Afinal, em face da desigualdade estrutural e persistente, há o dever estatal de combatê-la. A inércia diante desse dever pode caracterizar inconstitucionalidade, pela proibição de proteção deficiente de direitos fundamentais”.

O o de magistradas de carreira ao cargo de conselheira do CNJ e aos tribunais, seja como desembargadoras ou auxiliares dos órgãos de cúpula, é pressuposto democrático. Quanto mais representativo o Poder, maiores as possibilidades de que ele cumpra sua missão constitucional e convencional de proteção de direitos fundamentais, garantindo-se o pluralismo nos espaços de poder, com vista à redução das desigualdades sociais.

Portanto, é fundamental que a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário avance e se consolide cada vez mais, inclusive para amplificar o letramento em gênero dos/as integrantes da carreira, pois, como nos lembra Simone de Beauvoir, “basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”. “Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante sua vida toda.”

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