Deveres fundamentais e a constitucionalidade da proteção da vida
3 de outubro de 2023, 21h37
A Constituição da República Federativa do Brasil fez uma opção expressa na defesa jurídico-constitucional da vida, coroando a cabeça do artigo 5º com sua consagração em caráter individual, elevado à categoria de direito fundamental inviolável e cláusula pétrea, cujas violações dolosas devem ser julgadas diretamente pela sociedade, por meio da organização do Tribunal do Júri, ápice da submissão democrática.
A previsão constitucional desse direito fundamental não encontra limitação etária, sem adentrar na controvérsia jurídico-civilista em torno dos direitos do concepturo, do nascituro e do nascido com vida, pois não se ite um negacionismo seletivo da ciência biológica quanto ao início de uma nova vida desde a concepção.
A identificação da vida nova é pressuposto lógico para o intento do seu abortamento, de modo que poderíamos tratar do direito à vida dessa vida nova, desse ser humano que já existe, não é uma potencialidade, mas não é esse o nosso ponto.
Para o julgamento acerca da (não) recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal, de acordo com a linha argumentativa inicial no processo da ADPF 442, foram identificados como supostamente violados os preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana; da cidadania; da não-discriminação; da liberdade; da igualdade; da proibição de tortura ou o tratamento desumano e degradante; a saúde e o planejamento familiar das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos.
Trata-se, portanto, da perspectiva unilateral dos "direitos" sob o viés exclusivo da mulher genitora, olvidando-se da figura do homem genitor, pois a mulher não se reproduz sozinha, e olvidando que o estatuto da pessoa desenhado pela Constituição brasileira de 1988 prevê direitos e deveres fundamentais [1], de modo que toda a liberdade deve ser uma liberdade com responsabilidade e a igualdade também se aplica à distribuição justa dos ônus e encargos em sociedade.
Nesse sentido, toda a pessoa que toma conhecimento de que gerou uma vida nova se torna por ela responsável, a quem incumbe uma série de deveres fundamentais, como o expresso no artigo 227, caput, de assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito à vida, bem como do artigo 229, a exigir, em primeira linha, aos "pais", os deveres de assistência e criação de seus filhos. São todas normas fundamentais de igual dignidade constitucional.
Desse momento em diante, os genitores se tornam "garantes", seja dizer, os primeiros garantidores da integridade dessa vida nova, de modo que todos os seus direitos individuais devem sofrer justa e proporcional limitação, tanto pelos direitos fundamentais desse terceiro, o filho gerado, como pelos deveres fundamentais dirigidos aos pais, à família e à sociedade, nessa ordem, sob a lógica dos círculos concêntricos, conjuntamente com o dever de proteção do Estado.
Esse é o ponto.
Mesmo olvidando a ótica do genitor e a ótica do filho, que também deveriam integrar o julgamento por uma lógica sistêmica de unidade da Constituição, mantida a ótica unilateral exclusiva da genitora, há dispositivos constitucionais a lhe impor deveres fundamentais e, como tais, devem figurar como parâmetros concomitantes do controle de constitucionalidade.
Toda a plêiade de direitos fundamentais individuais da mulher faz sentido quando analisada sob sua perspectiva exclusiva, mas não quando envolve direitos fundamentais de um terceiro, principalmente quando lhe recaem deveres específicos de garantia sobre este terceiro. Com isso, todo o arranjo protetivo individual a a comportar limitações, pois o filho também tem igual dignidade humana, cidadania, não-discriminação, liberdade, igualdade, proibição de tortura ou o tratamento desumano e degradante (basta assistir ao procedimento cirúrgico de esquartejamento e decepação da criança abortada para se ter dimensão), saúde e direitos reprodutivos, como condição para a existência das gerações futuras
. Ainda, o planejamento familiar das mulheres (e dos homens, cuja ausência de tratamento aumenta sua irresponsabilidade) é relevante até a concepção da vida nova, pressupondo ter sido fruto de um ato sexual voluntário entre pessoas capazes, depois da concepção não há mais mero planejamento, mas ato consumado.
Toda a mulher titulariza tais direitos na sua integralidade até tornar-se genitora, condição que a introduz num regime jurídico-constitucional especial e distinto, atribuindo-lhe deveres em relação ao filho gerado e, nesse novo regime jurídico, não há mais sentido falar-se no mesmo grau de liberdade privada, autonomia do próprio corpo (pois não se trata de um órgão nem de um membro do seu corpo, mas da vida de uma outra pessoa, com corpo próprio), direito à saúde da mulher (contradictio in terminis), não discriminação baseada em sexo etc.
A constatação da gestação retira a mulher da posição plena de liberdade geral de ação e a introjeta no regime jurídico especial de garantidora de um terceiro vulnerável. A sua autodeterminação, a sua intimidade, adquirem outra configuração, limitados à partida pelo dever fundamental de proteção ao vulnerável. Tais direitos fundamentais individuais já não podem mais ser invocados apenas em sua dimensão individual originária e sem os ajustes necessários para a concordância prática.
Nessa fase de proteção à vida intrauterina, o dever fundamental dos geradores dessa vida nova, homem e mulher, limita-se ao dever de levar a gestação a termo, com preservação da higidez da saúde da criança, o que não se confunde com a conduta de assumir o papel social de "mãe", devendo o Estado, em seu dever de proteção da vida com prioridade absoluta, priorizar políticas públicas de entrega legal das crianças à adoção, por exemplo, em cumprimento ao compromisso assumido com a adesão à Convenção sobre os Direitos da Criança, cujo artigo 6º impõe ao Estado o dever de assegurar ao máximo a sobrevivência da criança, expresso também no artigo 7º do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).
O fato de existir a figura jurídica do aborto como exceção legal ao tipo penal não implica necessariamente esta via como a única possível, porque são hipóteses de normas permissivas, não obrigatórias. Há diversas "mães" que não podem ser genitoras e deve-se reconhecer que a dignidade humana está na raiz e está entrelaçada a todos estes direitos e deveres fundamentais, não podendo ser examinada sob uma ótica unilateral exclusiva, como na parábola dos Cegos e o Elefante.
Não existe nem se pode extrair do texto constitucional um "direito ao aborto", porque o ato de matar alguém é errado por si, ontologicamente, itindo-se exceções toleradas pela sociedade naqueles casos já disciplinados pelo Parlamento, democraticamente, como nos casos de estupro e de risco de vida. A proteção da vida é a regra constitucional, cujos dispositivos atinentes à dignidade, saúde, vedação da tortura etc. já amparam as hipóteses legais de exceção.
Não existe ancoragem constitucional para inverter a regra e tornar lícita a morte indiscriminada de crianças até doze semanas de gestação, como se antes desse marco temporal arbitrário a vida fosse indigna de ser vivida e os responsáveis pela geração desta vida nova não tivessem responsabilidade e dever. Sob tal premissa, todos os elementos sociológicos e empíricos perdem sentido.
Essa dimensão constitucional foi levada a sério no julgamento de maior influência para o constitucionalismo contemporâneo, i.e., o segundo julgamento sobre o aborto pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, em 1993 (BVerfGE 88 203), no sentido de que a proteção jurídico-constitucional assiste à criança também em relação à sua genitora, o que só será possível se o legislador proibir a genitora de interromper a gestação, impondo-lhe o dever de levar a termo a gestação até o nascimento do filho.
A proibição prima facie da interrupção da gestação e o correlato dever de levar a termo a gestação são elementos indissociáveis da proteção devida constitucionalmente, não podendo ser entregue à livre disposição de um terceiro, ainda que este terceiro seja a própria genitora. Não pode a gestante valer-se da posição jurídica protegida pelos direitos fundamentais de liberdade de consciência e crença para matar o nascituro, uma vez que o Estado deve adotar medidas normativas e fáticas suficientes para cumprir seu dever de proteção que, considerando os bens conflitantes, alcancem uma proteção adequada e efetiva (proibição de insuficiência), combinando em um mesmo projeto de proteção elementos preventivos e repressivos.
Dessa maneira, mais uma vez, repita-se, ainda que adote a hipótese de examinar os dispositivos constitucionais aplicáveis apenas sob a ótica exclusiva da genitora, sem adentrar no direito à vida dessas crianças e nos direitos e deveres do genitor igualmente responsável pela geração dessa vida nova, reduzindo a complexidade inerente ao tema, impositiva a inclusão, pelo menos, dos dispositivos que impõem deveres fundamentais à genitora e, nesse âmbito, o exame da proporcionalidade dos dispositivos questionados também incide sob a dimensão da proibição de insuficiência quanto ao adimplemento destes deveres.
[1] Há farta literatura internacional sobre a Teoria dos Deveres Fundamentais e, na perspectiva constitucional brasileira, por todos v. PREIS, Marco Antônio. Teoria dos Deveres Fundamentais. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2023.
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