Opinião

OAB tem obrigação de apontar advogados garantistas para o quinto constitucional

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  • é presidente da Comissão de Direito Penal Econômico da Associação Nacional da Advocacia Criminal em Minas Gerais (Anacrim-MG) apoiador e conselheiro do Instituto de Ciências Penais de Minas Gerais (I-MG) membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e sócio-fundador e diretor do escritório Barroso e Coelho Advocacia.

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9 de outubro de 2023, 19h32

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) desempenha um papel fundamental na promoção da justiça e no fortalecimento do Estado de Direito no território nacional.

No sistema que elegermos como superior, na busca por uma sociedade que se ajuste aos princípios e regras que concebemos como ideais para a convivência social, é absolutamente indiscutível a necessidade de harmonizar a relação entre o interesse público e a liberdade individual.

É exatamente por esta razão que os advogados são, indubitavelmente, imprescindíveis na organização do sistema de justiça: a advocacia é a única classe de operadores do Direito cuja principal responsabilidade, na rotina do aparato judicial, é a defesa dos direitos individuais.

Seja quando confrontam interesses particulares, seja quando enfrentam a vontade coletiva, ou mesmo quando são alvos da ação punitiva do poder estatal, aqueles que protegem os interesses e as liberdades de um único indivíduo são, invariavelmente, os advogados.

Para que um advogado possa desempenhar adequadamente o papel que lhe é confiado na construção de uma sociedade mais justa, é essencial que ele possa fazer valer os direitos e garantias reservados pela Constituição a cada indivíduo, sem exceção, contra qualquer tentativa de usurpação desses direitos, seja por parte de outro indivíduo, seja por parte de um coletivo, seja mesmo pelo Estado brasileiro.

E de que adianta o mais brilhante esforço de um advogado quando desembargadores podem simplesmente decidir que o desrespeito às regras processuais, tais como as regras de custódia de provas, o direito de autodefesa, o direito de ampla defesa "não necessariamente devem anular uma condenação"?

Qual serventia tem, para a democracia brasileira, a brilhante defesa de um advogado que que seu cliente não foi intimado para a audiência quando os juízes podem simplesmente declarar que "não tem problema".

Em outras palavras, para que um advogado possa efetivamente cumprir sua missão, ele deve ser capaz de proteger os direitos e liberdades fundamentais de seus clientes contra qualquer ameaça, mesmo que se manifeste contrariamente à vontade de todos os demais membros da sociedade.

E para isso precisa de juízes e julgadores que não abram mão das garantias constitucionais do processo penal.

Uma sociedade em que a maioria, por mais numerosa que seja, possa arbitrar sobre um indivíduo sem restrições não se alinha com os princípios democráticos, sendo conhecida como uma "ditadura da maioria".

A Ordem dos Advogados é uma instituição de classe composta por profissionais particulares, que desfrutam de várias prerrogativas não concedidas a outras entidades da mesma natureza, como é caso da prerrogativa de eleger membros dos tribunais.

E é dever da OAB utilizar essas prerrogativas para garantir que os advogados possam, de fato, desempenhar o papel que lhes é exclusivamente atribuído.

A primeira lição que um estudante de Direito escuta ao ingressar em uma faculdade é que "o advogado é essencial à istração da justiça". A segunda, certamente, é alguma coisa de algum livro do Kelsen.

Dessa forma, todas as ações que a Ordem dos Advogados é autorizada a empreender devem ser realizadas com o propósito inequívoco de assegurar que os advogados possam proteger os direitos e as liberdades de seus constituintes.

Entre as diversas responsabilidades e prerrogativas de nossa guilda, uma das mais significativas é a indicação de advogados para integrar as listas do quinto constitucional nos tribunais.

Por que, então, consideramos tão crucial que advogados estejam presentes em todos os tribunais brasileiros? A resposta reside na necessidade de que os tribunais incluam, entre seus membros, um contingente mínimo de "julgadores" que, ao longo de suas trajetórias, se tenham dedicado a questões relativas aos direitos e liberdades individuais.

E é precisamente isso que a OAB deveria perpetuamente buscar: inserir nos tribunais indivíduos que defendem os direitos do indivíduo contraestruturas mais robustas e poderosas.

Antes que surjam dúvidas quanto à radicalidade dessa assertiva, afirmo que sim, estou sendo categórico e almejo que compreendam meu compromisso intransigente. Estou advogando que a OAB jamais deve promover a ascensão à posição de desembargador ou ministro alguém que não abrace com decidido zelo os princípios da doutrina do garantismo penal.

Mas não estou dizendo que todos os desembargadores devam ser, necessariamente, garantistas! [1].

Nem se sugere, ainda, que todos os advogados compartilhem dessa crença. Longe disso. Há advogados de todas as inclinações, e já não consigo contar nos dedos as vezes que colegas de profissão me disseram que "bandido bom é bandido morto", ou o menos radical "é um absurdo você querer anular um processo inteiro só porque foi o juiz que fez as perguntas de acusação para as testemunhas".

Já ouvi dizer até que alguns advogados costumam repetir que "quem defende bandido é bandido" ou "se está sendo julgado, com certeza boa gente não é". Mas esses, definitivamente, não são meus amigos e nem andam comigo.

Torço para que tais profissionais se dediquem a profissões que os deixariam mais felizes, como à nobre atividade de assessoria jurídica empresarial, se aprovados, que virem delegados polícia ou ainda, de repente, pensem em abrir uma loja de acarajé em Porto Seguro.

Só o que me causa profundo desgosto, é saber que vários advogados que assim pensavam viraram desembargadores, pelas mãos da própria ordem que deveria defender o extremo oposto.

O quinto constitucional, como definido no artigo 94 da Constituição Federal, reserva uma parcela das vagas nos tribunais, tanto estaduais quanto regionais federais, para membros do Ministério Público e advogados indicados pela OAB.

Este mecanismo visa enriquecer o corpo de magistrados com a experiência e o conhecimento acumulados por esses profissionais, que ao longo de suas trajetórias, lidam diretamente com questões jurídicas.

A indicação de advogados para o quinto constitucional deve ser, portanto, uma oportunidade para introduzir no Poder Judiciário a perspectiva e o compromisso com a defesa dos direitos e garantias individuais, um dos pilares fundamentais do Estado democrático de direito.

Nesse sentido, a OAB tem a responsabilidade moral e institucional de selecionar advogados manifestamente comprometidos com o garantismo jurídico.

O garantismo jurídico é uma corrente doutrinária que coloca a proteção dos direitos fundamentais como o princípio central do ordenamento jurídico. Defende que o Estado deve garantir, de forma plena e incondicional, os direitos individuais, mesmo que isso possa limitar seu poder e sua intenção de punir.

Além disso, a presença de advogados garantistas nos tribunais é fundamental para equilibrar as diversas correntes jurídicas presentes na magistratura. O sistema judiciário deve ser plural e diversificado em suas interpretações e visões do direito, a fim de assegurar uma justiça

O direito não se mostra "injusto" quando impede que um indivíduo seja punido apenas por conta de pequenas infrações ou erros no processo. Pelo contrário, a justiça é efetivada quando se assegura que todas as etapas do processo sejam conduzidas de forma justa e equitativa.

Atualmente, não se acredita mais que a verdade esteja simplesmente "lá fora" [2]. Ninguém descobre a culpa de uma pessoa embaixo de uma pedra, e não existe uma caverna na qual se escondem os dolos. Delegados, juízes e promotores não empreendem uma busca incessante pela verdade, como no exemplo caricato apresentado anteriormente.

Por outro lado, não seria possível abrigar na internet todos os registros de ocorrências em que policiais forjaram provas ou governantes inventaram pretextos para prender indivíduos inocentes. É possível, até mesmo, que muitos desses agentes da lei e governantes tenham sinceramente acreditado na culpa dos acusados e que estivessem agindo para o bem da sociedade.

Um processo justo pressupõe que a única verdade aceitável é aquela construída ao logo do processo, em contraditório, pelas partes que o compõe.

Não estou dizendo que juízes e promotores não devam ser também garantidores das liberdades e direitos constitucionais de todos aqueles que estão sendo julgados. Aliás, conheço vários juízes e desembargadores "de carreira" garantistas.

Também não digo que quem não é garantista é "malvado". Tenho a impressão que ao ignorar o devido processo legal para condenar um indivíduo que acredita ser culpado, o juiz está, genuinamente, acreditando que faz um bem para a sociedade.

Até mesmo entre os promotores de justiça, é provável pelo menos dois, talvez três ou quatro, sejam verdadeiramente altruístas, buscando fazer o bem. É uma brincadeira comum entre advogados sugerir que os promotores são "escoteiros ao contrário", obrigados a cometer pelo menos uma ação duvidosa por dia.

Brinco. Implicância profissional de estilo. Entre meus amigos mais próximos (depois, claro, dos advogados), encontram-se promotores de justiça que respeitam de forma intransigente a legalidade. Com frequência, testemunho promotores solicitando absolvições de réus por falta de provas concretas de culpa.

Contudo, com o ar dos anos, até mesmo esses promotores tendem a ser influenciados pela prática, tornando-se mais proficientes na arte de punir do que em salvaguardar as garantias e liberdades individuais dos perseguidos pelo aparato estatal.

De fato, conferimos poder substancial ao Estado para que ele fosse suficientemente poderoso para proteger aqueles que não possuem meios de se defender por si mesmos, e para garantir que o mais forte indivíduo esteja sujeito às mesmas leis que o mais fraco.

Demos a esse monstro de poderes vastos os ao aparato estatal, concedendo-lhe facilidades para obter informações que não estão disponíveis aos indivíduos. Assim, concedemos a única capacidade de morder aqueles que não desejam, mas merecem, ser mordidos, aos dentes desse Leviatã de poderes imensuráveis.

O devido processo legal representa nada mais que a coleira tênue que seguramos para tentar garantir que o Leviatã não morda nossos clientes de maneira injusta. E somente o advogado se dedica a aperfeiçoar o manejo dessa coleira.

O problema surge quando um juiz, em determinado momento, deve decidir se nossos clientes podem ser submetidos à prisão preventiva ou condenação criminal. Se esse julgador optar por simplesmente afrouxar nossas coleiras ou, pior ainda, cortá-las, a fúria do Leviatã pode consumir não apenas os culpados, mas também muitos inocentes.

O devido processo legal não representa um esforço para evitar que culpados escapem da justiça, mas sim para garantir, ao máximo, que inocentes não sejam erroneamente condenados.

Ao longo dos séculos, desenvolvemos mecanismos e procedimentos para cobrir as brechas pelas quais os inocentes poderiam ser injustamente condenados. Criamos leis para evitar que evidências falsas fossem forjadas ou que escutas telefônicas fossem realizadas sem justa causa. Estabelecemos que as sentenças judiciais estejam sujeitas a um segundo nível de julgamento para impedir julgamentos influenciados por preconceitos.

Assim, paulatinamente, criamos salvaguardas para garantir que os inocentes não sejam injustamente punidos. Essas regras são aquelas que garantem que uma sentença seja elaborada de forma justa e equitativa, sem permitir que a máquina penal avassale aqueles que não deveriam ser engolidos por ela.

Ao longo da história, constatamos que um Estado que puni erroneamente os inocentes é muito mais prejudicial do que um Estado que ocasionalmente deixa escapar um culpado

O garantismo é, em essência, a ideia de que só podemos punir um indivíduo se todos os direitos processuais que a lei lhe confere forem respeitados de forma inequívoca. A teoria parece evidente e simples: se a lei estabelece que um indivíduo tem direito a isso e aquilo durante um processo, juízes e promotores certamente garantirão esses direitos.

No entanto, a menos que não se seja um advogado criminalista, sabe-se que essa não é a realidade que ocorre cotidianamente nas delegacias de polícia, nos edifícios do Ministério Público e nos palácios da justiça.

E, mais uma vez, cabe ao advogado proteger essas garantias e liberdades individuais. O garantismo jurídico está em total consonância com os princípios fundamentais consagrados na Constituição de 1988.

Essa Carta Magna brasileira estabelece uma série de direitos e garantias individuais, como a presunção de inocência, o devido processo legal e o direito à ampla defesa. Advogados garantistas são naturalmente defensores desses princípios e estão mais bem preparados para protegê-los e promovê-los enquanto exercem a magistratura.

Vale ressaltar, mais uma vez, que da mesma forma que existem vários juízes e promotores de justiça garantistas (até mesmo em Minas Gerais) há advogados que não abraçam essa orientação.

Quando a OAB designa um advogado não garantista para um tribunal, ela falha em seu compromisso de construir a estrutura istrativa da justiça que é sua maior responsabilidade: um espaço em que possam impedir que seus constituintes vejam seus direitos, garantias e liberdades fundamentais violados.

Para a existência de uma verdadeira democracia, é imperativo que os Direitos Fundamentais de um único indivíduo prevaleçam, sempre, sobre a vontade autoritária de todos os outros indivíduos somados.

É importante destacar que a escolha de advogados garantistas para ocupar posições nos tribunais não implica em desqualificar outros julgadores com diferentes orientações jurídicas. Pelo contrário, promove-se uma complementaridade e equilíbrio necessários para que o Poder Judiciário cumpra sua missão de maneira eficiente e justa.

A diversidade de pensamento é saudável em qualquer sistema democrático, mas é crucial que a OAB assegure que a perspectiva garantista esteja representada em suas indicações.

Não obstante reconhecer que possam existir desembargadores pouco alinhados com o garantismo, esses não podem continuar compondo as listas sêxtuplas da OAB, uma vez que já constituem a maioria avassaladora.

Quando a OAB seleciona um membro para um tribunal, ela tem a obrigação de fazê-lo com o propósito explícito de promover o principal objetivo de sua existência.

Este é precisamente o esperado. É para que a OAB nomeie para os tribunais pelo menos alguns desembargadores, ministros e similares que compartilhem dos princípios que regem a atividade advocatícia que existe o quinto constitucional.

É um dever inegociável da OAB.

A seleção de julgadores garantistas contribui para a manutenção do Estado de Direito, a proteção dos direitos e liberdades individuais e a promoção de uma justiça equitativa e imparcial é a única coisa que confere sentido à prerrogativa que temos de escolher juízes e desembargadores.

 

 


[1] Não estou dizendo mas gostaria de dizer.

[2] Peço vênia a meus colegas que, assim como eu, são fãs do seriado Arquivo X.

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