Do controle em conta específica de despesas contempladas pela "Lei do Bem"
18 de outubro de 2023, 16h18
O benefício fiscal relacionado à inovação tecnológica conhecido como "Lei do Bem" foi instituído pela Lei nº 11.196/05 [1] e posteriormente regulamentado pelo Decreto nº 5.798/06 [2] e disciplinado pela Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil nº 1.187/11 [3].
Referido corpo legislativo se mostra como um importante instrumento de fomento à atividade de PD&I e reflete a partir deste conjunto os valores e os princípios que o Estado brasileiro pretende alcançar, os quais se relacionam com a promoção da autonomia tecnológica, o desenvolvimento científico e tecnológico, e por consequência, o próprio desenvolvimento nacional.
Para se ter uma ideia do impacto do benefício nas atividades de PD&I, em outubro de 2023 foi divulgado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) que no ano-base de 2022 o setor privado investiu mais de R$ 35 bilhões em pesquisa e desenvolvimento [4].
Sob a perspectiva tributária, para o gozo do benefício em comento a legislação exige que: 1) a empresa seja tributada pelo lucro real; 2) comprove regularidade fiscal; e 3) apresente lucro fiscal no período correspondente [5]. Além disso, estão contemplados na legislação os seguintes tratamentos tributários diferenciados: 1) exclusão adicional de 60% a 100% dos dispêndios realizados no período de apuração com pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica classificáveis como despesas operacionais pela legislação do IRPJ; 2) redução de 50% do IPI incidente sobre equipamentos, máquinas, aparelhos e instrumentos, bem como os órios e ferramentas que acompanhem esses bens, destinados à pesquisa e ao desenvolvimento tecnológico; 3) depreciação e amortização integral e acelerada no ano de aquisição ou da realização dos dispêndios dos bens utilizados para PD&I; e 4) redução à zero da alíquota do IRRF incidente sobre remessas ao exterior para manutenção de marcas e patentes.
Nesse contexto, cabe mencionar que o inciso I do artigo 22 da Lei do Bem estabelece que os dispêndios e pagamentos realizados no âmbito das atividades de PD&I serão controlados contabilmente em contas específicas.
A partir dessa disposição legal, o entendimento istrativo majoritário [6], pautado pelas previsões do artigo 111 do Código Tributário Nacional [7], é no sentido de que caso a empresa beneficiária não adote o controle por conta contábil específica (ainda que se utilize de algum outro meio idôneo de controle), resta caracterizada o descumprimento das obrigações estabelecidas na Lei, implicando em última instância na perda do direito ao gozo do benefício.
Ocorre que o artigo 111 do CTN não pode ser lido como impeditivo para a utilização do benefício objeto da presente análise. Até porque a expressão "interpretação literal" se revela como um verdadeiro paradoxo, pois ao mesmo tempo que se manifesta como uma conduta necessária, porquanto se trata de etapa indispensável no processo de interpretação, é impossível que ocorra por parte do aplicador, que não fica subordinado ao plano sintático da linguagem para construir sentidos [8].
Nas lições da professora Regina Helena Costa [9], o referido comando legal pretendeu prestigiar os princípios da isonomia e da legalidade tributária, objetivando afastar um indevido alargamento do conteúdo normativo ao invés de inviabilizar a sua utilização. Na mesma direção é o posicionamento do professor Renato Lopes Becho [10] ao elencar que:
"(…) não vemos como razoável um dispositivo legal que determine a interpretação literal de nenhum texto normativo. O artigo 111 do CTN, ao determinar a interpretação literal para suspensão ou exclusão do crédito tributário, outorga de isenção e dispensa do cumprimento de obrigações tributárias órias, desorganiza a harmonia sistêmica do Direito Tributário, que parte dos princípios constitucionais tributários. A negativa de aplicação das técnicas interpretativas dadas pela ciência do direito e pela teoria geral do direito, a partir do Direito Tributário, compromete a importância da codificação tributária. (…) a melhor solução, diante do art. 111 do CTN, é compatibilizá-lo com os princípios constitucionais tributários".
Além disso, já em 1972 o item 9 do Parecer Normativo CST nº 282/72 [11] pontuou que "literal disposição de lei" e "interpretação literal" não significam abstração de recursos de hermenêutica outros que não a pura interpretação gramatical. Isso nos leva a crer que o dispositivo legal busca impedir que o intérprete e/ou o aplicador recorram à analogia e à equidade (observância ao princípio da legalidade), sem, contudo, impor um único método de interpretação. A própria Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), por meio do Parecer PGFN nº 1.495/01 [12], dispôs que:
"22. Não que se defenda a interpretação absurdamente restritiva, ou excessivamente apegada à literalidade da lei, porque não nos parece ser esse o método hermenêutico mais inteligente e consentâneo com Ciência do Direito. Com efeito, o exame da norma, mesmo a concessiva de favor fiscal, deve valer-se de todos os elementos interpretativos, de forma a se aproximar o máximo possível do seu verdadeiro sentido e alcance. Entendo, particularmente, não ser o mandamento do artigo 111 do CTN impeditivo do exame percuciente da norma jurídica".
No âmbito do Poder Judiciário [13] é possível identificar manifestações no sentido de que a denominada "busca real" do significado e alcance dos benefícios fiscais não caracteriza ofensa ao artigo 111 do CTN.
Dessa forma, ante o exposto, considerando todo o aparato tecnológico existente (por exemplo: sistemas ERP, EFD, ECF, entre outros), combinado com a complexidade e o elevado número de operações realizadas pelas empresas, não nos parece adequado (beirando até mesmo à inconstitucionalidade [14]) que uma empresa que invista em PD&I não possa gozar do benefício fiscal da Lei do Bem simplesmente por não computar em determinadas contas contábeis [15] os valores dos dispêndios alocados em projetos desta natureza (desde que, evidente, tenha meios idôneos e consistentes para comprovar os valores em questão).
[1] BRASIL. Governo Federal. Planalto. Lei nº 11.196 de 21 de novembro de 2005. Conteúdo disponível em: <Lei nº 11.196 (planalto.gov.br)>. o em 05 de out. 2023.
[2] BRASIL. Governo Federal. Planalto. Decreto nº 5.798 de 07 de junho de 2006. Conteúdo disponível em: <Decreto nº 5798 (planalto.gov.br)>. o em 05 de out. 2023.
[3] BRASIL. Receita Federal do Brasil. Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil nº 1.187 de 29 de agosto de 2011. Conteúdo disponível em: <IN RFB nº 1187/2011 (fazenda.gov.br)>. o em 05 de out. 2023.
[4] Os valores foram obtidos por meio das informações disponibilizadas no "Formulário de Informações sobre Atividades PD&I da Lei do Bem (FormP&D)", que corresponde ao documento necessário para que o beneficiário se aproveite dos incentivos fiscais previstos na Lei do Bem, enviado em 2023 por mais de 3.400 empresas.
Agência GOV. Tecnologia. Empresas beneficiadas pela Lei do Bem investiram R$ 35 bi em pesquisa e inovação em 2022. Conteúdo disponível em: <Empresas beneficiadas pela Lei do Bem investiram R$35 bi em pesquisa e inovação em 2022 — Agência Gov (ebc.com.br)>. o em 05 de out. 2023.
[5] O parágrafo 5º do artigo 19 da Lei nº 11.196/05 estabelece que o benefício fiscal da exclusão adicional fica limitado ao valor do lucro real e da base de cálculo da CSLL antes da própria exclusão, vedado o aproveitamento de eventual excesso em período de apuração posterior. Ou seja, as benesses tributárias da "Lei do Bem" não podem ser utilizadas para composição de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa.
[6] A título de exemplo vide acórdãos Carf: 1003-003.667 de 15 de junho de 2023, 1401-006.411 de 14 de março de 2023 e 1401-005.542 de 20 de maio de 2021.
[7] Artigo 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:
I – suspensão ou exclusão do crédito tributário;
II – outorga de isenção;
III – dispensa do cumprimento de obrigações tributárias órias.
[8] MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Interpretação restritiva no direito tributário in Congresso Nacional de Estudos Tributários. 7ª Edição. São Paulo: Anais do VII Congresso Nacional de Estudos Tributários. Direito Tributário e os Conceitos de Direito Privado, 2010. Pag. 1.217.
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. 3ª Edição. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. Pag. 450 e 451.
MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of Law. Nova York: Oxford University Press, 2005. Pag. 124.
[9] COSTA, Regina Helena. Curso de direito tributário. 5ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2015. Pag. 188.
[10] BECHO, Renato Lopes. Considerações sobre a interpretação literal e o art. 111 do CTN. Revista Dialética de Direito Tributário (RDDT) nº 175, abril de 2010. Pag. 209.
[11] NORMAS BRASIL. Parecer. Parecer normativo nº 282 de 07 de novembro de 1972. Conteúdo disponível em: <Parecer Normativo CST nº 282 de 07/11/1972 (normasbrasil.com.br)>. o em 05 de out. 2023.
[12] NORMAS BRASIL. Normas. Parecer PGFN nº 1.495 de 09 de agosto de 2001. Conteúdo disponível em: <Parec. PGFN nº 1495/2001 (fazenda.gov.br)>. o em 05 de out. 2023.
[13] A título de exemplo vide REsp nº 841.330/CE, REsp nº 1.125.064/DF, e REsp nº 1.109.034/PR.
[14] Dentre outras previsões, o artigo 218 da CF88 dispõe que o Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação.
[15] Nas lições do Professor Edison Carlos Fernandes: "não pode a primazia da substância sobre a forma ser utilizada como justificativa para que um determinado negócio jurídico seja desconsiderado, tendo como principal consequência a revelação de outro negócio jurídico" in FERNANDES, Edison Carlos. Direito e contabilidade: Fundamentos do direito contábil. São Paulo: Trevisan Editora, 2015. Pag. 103.
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