Opinião

Panorama das discussões em torno da majoração dos pisos federais em 2023

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  • é auditor de Controle Externo no Tribunal de Contas do Estado do Tocantins (TCE-TO) pós-graduado em Estado de Direito e Combate à Corrupção pela Escola Superior da Magistratura Tocantinense (Esmat-TO) e mestre em Direito e Políticas Públicas pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

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26 de outubro de 2023, 18h28

Antes mesmo de tomar assento no comando do Executivo federal, o governo que se instalou a partir de janeiro 2023 já havia avançado providências normativas no sentido de compatibilizar a política fiscal com as diretrizes e metas sociais que consubstanciavam o seu programa governamental, mais alinhado às pautas progressistas relativas às funções do Estado.

Destarte, em dezembro de 2022, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 126/2022, que, para além da previsão de gastos adicionais visando ao custeio de programas assistenciais, dispôs, no artigo 6º, que o Presidente da República deveria encaminhar ao Poder Legislativo, até 31 de agosto de 2023, projeto de lei complementar com o objetivo de instituir "regime fiscal sustentável", o qual, uma vez instituído, implicaria na revogação dos dispositivos a respeito do "teto de gastos", dentre os quais o artigo 110 do ADCT, cuja redação estabelecia:

"Artigo 110. Na vigência do Novo Regime Fiscal, as aplicações mínimas em ações e serviços públicos de saúde e em manutenção e desenvolvimento do ensino equivalerão:
I –  no exercício de 2017, às aplicações mínimas calculadas nos termos do inciso I do §2º do artigo 198 e do caput do artigo 212, da Constituição Federal;
II – nos exercícios posteriores, aos valores calculados para as aplicações mínimas do exercício imediatamente anterior, corrigidos na forma estabelecida pelo inciso II do §1º do artigo 107 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias."

Pela regra do artigo acima transcrito, introduzido pela Emenda Constitucional nº 95/2016, uma vez calculada a aplicação mínima segundo os artigos 198 e 212 da Constituição para o exercício de 2017, aplicar-se-ia aos pisos referentes aos exercícios posteriores a mesma metodologia aplicável ao teto de despesas primárias, inscrito no artigo 107, §1º, inciso II do ADCT, indexado à variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

Sucede que com a promulgação da Lei Complementar nº 200, em 30 de agosto de 2023, disciplinando o novo arcabouço fiscal para "garantir a estabilidade macroeconômica do País", nos termos da sua ementa, o artigo 110 do ADCT restou revogado, nos termos do artigo 9º da EC nº 126/2022. Desta forma, ao invés da vinculação dos mínimos constitucionais à variação do índice inflacionário (IPCA) relativo ao ano anterior, voltou a viger, de forma plena, a redação dos arts. 198 e 212, do texto permanente da CRFB/88, de sorte que o parâmetro para aferição do piso (em nível federal) tornou a considerar, para as ações e serviços de saúde, a receita corrente líquida (15%), e para a educação a receita líquida de impostos (18%).

Assim, dado que o Ploa 2023, elaborado no curso do exercício anterior, teve em conta, para o cálculo do limite mínimo de investimento nas áreas citadas, o valor desembolsado em 2022, corrigido pela variação do IPCA, a revogação superveniente do parâmetro normativo instituído pelo "teto de gastos" abriu ensejo a um profundo debate acerca da retroatividade (ou não) da base majorada para o cálculo dos mínimos constitucionais, com o restabelecimento da inteligência dos artigos 198 e 212 da CF/88.

O que aparenta ser, a priori, uma controvérsia circunscrita à interpretação jurídica acerca do alcance das regras introduzidas pela EC 126/2022, ao derrogar o mecanismo de ajuste do novo regime fiscal, carrega, na verdade, efeitos financeiros substanciais, cujo impacto não pode ser desprezado. Segundo estimativa divulgada em veículos de comunicação, no caso de retroação do parâmetro para aplicação mínima em saúde (receita corrente líquida), haveria a necessidade de incremento das despesas nesse setor da ordem de R$ 20 bilhões [1]. Daí porque o Ministro da Fazenda decidiu provocar o TCU, através de consulta (processo TC 033.889/2023-6), para que órgão de contas federal forneça uma resposta ao ime, despontando a relevância de se compreender as rotas alternativas para sua solução.

Uma posição mais pragmática, advogada pelo governo e defendida no último parecer da área técnica do TCU  A Unidade de Auditoria Especializada em Orçamento, Tributação e Gestão Fiscal , propugna que a majoração dos mínimos constitucionais no curso do exercício financeiro não deve retroagir ao início do ano, de tal modo que apenas será exigível a partir do exercício financeiro subsequente.

Aludida conclusão se apoia na perspectiva do ciclo orçamentário, cujo início antecede o exercício de aplicação da LOA, pois que envolve a articulação complexa de um planejamento que orienta a alocação anualizada dos recursos. Assim, a mudança intercorrente nos mínimos constitucionais mexe com todo o complexo orçamentário, sobretudo quando operado no último quadrimestre do ano, despertando a necessidade de reavaliar as prioridades alocativas, para o que não basta a abertura de créditos adicionais. Logo, por este prisma, a produção de normas (proto-orçamentárias) que, no curso do exercício financeiro, afetem a composição dos pisos de aplicação mínima da CF, não tem o condão de alterar a LOA em vigor  elaborada sob a égide do "teto de gastos", tampouco torná-la inconstitucional de forma superveniente.

Cumpre notar que referida linha argumentativa também constou de representação formulada pelo Ministério Público junto ao TCU (objeto do Processo TC 032.858/2023-0), no âmbito da qual pugnou pela avaliação do risco de "shutdown" com a aplicação do novo marco fiscal ainda no ano de 2023 nas pastas ministeriais da Saúde e da Educação, embora, nesse caso, ao Tribunal tenha decidido por não conhecer da matéria, ante desatendimento dos requisitos de issibilidade pertinentes à modalidade processual, nos termos do Acórdão nº 9.699/2023-TCU-2ª Câmara.

Contraposto a esse entendimento está a visão  mais restritiva e dogmática  refratária ao diferimento das regras estatuídas no artigo 198 e 212 da CRFB/88, para efeito de cômputo da parcela de recursos vinculada às políticas de saúde e educação. Ademais da primazia que a própria Carta Constitucional confere a tais setores para o alcance dos objetivos de caráter fundamental consignados no artigo 3º, postergar a aplicação das bases para aferição dos mínimos, tendo apenas em perspectiva um discurso de restrição fiscal do Estado e a necessidade de aportar uma soma significativa de recursos "de última hora", seria frustrar a eficácia de regras constitucionais, amesquinhando a estrutura de política que garante direitos sociais importantes, em benefício da obtenção de superávit primário.

No intermédio desse espectro argumentativo, numa posição que busca conciliar o pragmatismo que considera as "dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo" (artigo 22, da Lindb) e a leitura vocacionada a reforçar a normatividade dos pisos federais, propõe-se a conformação dos montantes mínimos de aplicação em saúde e ensino de forma proporcional aos períodos do exercício financeiro em que cada regra produziu os seus efeitos.

Sob tal perspectiva, a questão descortinada pela transição de regime dos pisos teria na aplicação do direito intertemporal o seu melhor desfecho, a partir da composição da regra antiga com a regra nova, proporcionalmente ao prazo de vigência de cada qual no exercício, à luz do postulado segundo o qual "o tempo rege o ato" (tempus regit actum). Nesta medida, a regra transitória que previa mera correção monetária dos deveres de gasto mínimo, constante do artigo 110 do ADCT, aderente à lógica do teto de despesas primárias, forneceu o e normativo para o cômputo dos pisos federais desde o início de 2023 até 30 de agosto desse ano, quando, então, ou a incidir (ou voltou a incidir) o regime de cálculo baseado na receita (corrente líquida ou de impostos) da União, por força da revogação da EC 95/2016 operada pela Lei Complementar nº 200/2023.

Com efeito, atendendo senão a uma lógica jurídica coerente e que coincide com a preocupação relativa ao incremento açodado de recursos no último quarto de ano, a tese que leva em conta a eficácia normativa de cada regime jurídico impede a ultratividade de uma regra claramente revogada, e a retroatividade conta legem, de vez que não prevista em nenhum anto da EC 126/2022 e da LC 200/2023. A propósito, bem examinado o teor do artigo 9º dessa Emenda Constitucional, é explícita a referência temporal sobre a eficácia dos artigos 106, 107, 109, 110, 111, 111-A, 112 e 114, cuja perda dar-se-ia "após a sanção da lei complementar prevista no art. 6º desta Emenda Constitucional".

Aludida posição, inclusive, se assemelha àquela cogitada pela unidade técnica do TCU, por ocasião da análise de controvérsia, com contornos de tudo parecidos, referente à metodologia de cálculo do mínimo a ser aplicado pela União em ASPS no exercício de 2016, em vista da revogação do artigo 2º, I, da EC 86/2015, pelo artigo 3º da EC 95, no final de 2016, acarretando a majoração do piso de investimento na saúde (de 13,2% para 15% da RCL). Naquela oportunidade, conforme se retira do voto condutor do Acórdão nº 1.048/2018-TCU-Plenário, de relatoria do ministro Bruno Dantas, o corpo técnico da Corte sugeriu que o cálculo do mínimo em 2016 obedecesse uma "ponderação pro rata dos percentuais em relação ao período de vigência/eficácia das Emendas 86/2015 e 95/2016", considerando o período de eficácia de cada normativa.

Conta, ainda, com adesão de parte da doutrina, conforme manifestado em artigo de autoria de Élida Graziane Pinto, Fábio Konder Comparato, Fernando Facury Scaff, Ingo Wolfgang Sarlet, Misabel Abreu Machado Derzi e Regis Fernandes de Oliveira, de cujo conteúdo se extrai a conclusão de que se "descabido será adiar a incidência dos artigos198 e 212 da Constituição para 2024, tampouco é possível propor que o cômputo dos pisos como porcentuais da receita federal retroaja a janeiro de 2023" [2].

À margem do debate suscitado nas esferas istrativa e controladora, convém registrar, por fim, que a arena legislativa tampouco se esquivou da questão e igualmente cogita de fornecer uma alternativa. Trata-se do Projeto de Lei Complementar nº 136/2023, que embora verse sobre a composição devida pela União aos Estados e ao DF, em função das perdas de arrecadação do ICMS causadas pela LC nº 194/2022, incorporou no seu texto dispositivo (artigo 15) que altera o mecanismo de cálculo do piso federal na saúde, para 2023, com a seguinte redação: "no exercício de 2023, para fins do disposto no inciso I do §2º do artigo 198 da Constituição Federal, será considerada a receita corrente líquida estimada na Lei nº 14.535, de 17 de janeiro de 2023", ao invés da efetiva receita realizada ao final do exercício.

Vê-se, portanto, que a complexidade da matéria desperta, como é natural, variados caminhos de resolução, nenhum dos quais totalmente livre de objeções. Estando a inércia fora de cogitação, deve o governo, agora sob a luz da resposta que se espera obter junto ao TCU, adotar a rota que melhor se afine com os desígnios constitucionais.

 


[1] TOMAZELLI, Idiana. Buraco no piso da Saúde em 2023 pode chegar a R$ 20 bi, e governo avalia alternativas. Folha de São Paulo, 22.set.2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/09/buraco-no-piso-da-saude-em-2023-pode-chegar-a-r-20-bi-e-governo-avalia-alternativas.shtml. o em 11.10.2023.

[2] PINTO, Élida Graziane, et al. Incidência imediata dos pisos em saúde e educação após revogação do teto. Consultor Jurídico, 14 set. 2023. Disponível em: /2023-set-14/opiniao-incidencia-imediata-pisos-saude-educacao. o em 12.10.2023.

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