Biocombustível sem benefício fiscal é um descumprimento constitucional?
30 de outubro de 2023, 6h33
A Emenda Constitucional nº 123/2022 introduziu diversas novidades no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente sob o ponto de vista da atuação econômica promovida pelo Estado. Originalmente, a PEC nº 15/2022 (a qual originou a EC nº 123) possuía o escopo único de alterar o artigo 225 da Constituição para estabelecer diferencial de competitividade para os biocombustíveis. Essa pretensão originária foi materializada mediante a inclusão do inciso VIII no parágrafo 1º do aludido dispositivo constitucional [1], o qual norteará a análise do presente artigo.
Resumidamente, a inserção dessa norma no Texto Constitucional acrescentou ao rol de incumbências do poder público a necessidade de manutenção de regime fiscal favorecido para os biocombustíveis destinados ao consumo final, assegurando-se a eles tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis. Tudo isso com o fim de assegurar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
De partida, cumpre assinalar a coerência do artigo 225, § 1º, VIII, com a redação do artigo 170, VI, da CF/88 [2], que alçou ao patamar constitucional a defesa do meio ambiente no exercício das atividades econômicas, em episódio de elevada felicidade do legislador pátrio.
Com efeito, a inovação promovida pela EC nº 123/2022, quanto ao ponto, coaduna-se com o fenômeno de "ecologização" do direito tributário, que denomina o fenômeno tendente à utilização de instrumentos fiscais como forma de se preservar o meio ambiente e incitar comportamentos ecológicos por parte dos agentes econômicos [3].
Noutras palavras, o constituinte derivado inseriu norma tendente a atenuar os efeitos da tributação sobre os biocombustíveis, que são menos nocivos ao meio ambiente, com o objetivo de incentivar a sua produção e comercialização. Há, assim, uma evidente opção legítima pelo favorecimento de um comportamento que incentiva a tutela ambiental e reduz a dependência de derivados de petróleo.
Além disso, a inserção do comando contido no artigo 225, § 1º, VIII, da CF/88, possui contornos concorrenciais, à medida em que busca equalizar e equiparar a circulação dos biocombustíveis em relação ao poderio do mercado dos combustíveis fósseis.
Vale ressaltar que a lei complementar a que se refere o dispositivo constitucional examinado ainda não foi editada pelo Congresso Nacional. Não obstante, a EC nº 123/2022 determinou algumas medidas para garantir o regime fiscal favorecido para os biocombustíveis, até que a lei complementar supracitada seja editada.
Dentre elas, destacamos: a) a previsão de que o diferencial competitivo dos biocombustíveis deverá ser garantido mesmo no caso da adoção do regime monofásico de ICMS para os combustíveis fósseis de que são substitutos (artigo 4º, § 4º) — o que foi ocasionado posteriormente pela LC nº 192/2022 e; b) a concessão de auxílio financeiro aos estados e Distrito Federal que outorgarem créditos de ICMS aos produtores e distribuidores de etanol hidratado, equivalentes ao valor recebido (artigo 5º, V). Mencione-se, ainda, que a PEC autorizou a concessão desse benefício pelos estados e Distrito Federal mediante norma específica, independentemente de deliberação pelo Confaz (art. 5º, § 5º, VII).
Paralelamente, conforme adiantado no parágrafo anterior, a publicação da LC nº 192/2022 instituiu a incidência monofásica do ICMS sobre os combustíveis, incluindo-se o etanol anidro e o biodiesel (artigo 2º, I e II). Para esses biocombustíveis, a definição da alíquota ficou a cargo do Confaz (artigo 3º, V).
Por outro lado, o etanol hidratado não foi incluído entre os combustíveis a serem submetidos ao regime de incidência monofásica. Sem embargo, em conformidade com a PEC nº 123/2022, o Confaz publicou o Convênio ICMS nº 116/2022 para autorizar os estados e o Distrito Federal a conceder crédito outorgado de ICMS aos produtores e distribuidores desse biocombustível até 31/12/2022.
Ocorre que, em 6/4/2023, o Confaz publicou o Convênio ICMS nº 15/2023, por meio do qual se definiu o tributo dos combustíveis submetidos ao regime de tributação monofásica do ICMS no patamar de R$ 1,22 por litro. Como visto, nos termos da EC nº 123/2022 (artigo 4º, caput), o diferencial competitivo dos biocombustíveis deverá ser garantido pela manutenção, em termos percentuais, da diferença entre as alíquotas aplicáveis a cada combustível fóssil e aos biocombustíveis que lhe sejam substitutos em patamar igual ou superior ao vigente em 15/5/2022.
Traçadas essas premissas, pretendemos evidenciar a seguir que o comando constitucional inserido pela EC nº 123/2022 não está sendo cumprido pelo poder público — tanto para o etanol anidro, sujeito à incidência monofásica, como para o etanol hidratado.
Quanto ao etanol anidro, não aparenta estar sendo observado o Artigo 225, da CF/88, vez que restou estabelecido pelo Confaz a mesma tributação de ICMS com relação à gasolina: R$1,22 por litro (cláusula sétima do Convênio nº 15/2023). Mesmo que haja um diferimento previsto ao etanol anidro, isto não caracteriza menor carga ao fim da cadeia, não gerando o benefício intentado pelo legislador pátrio.
Acrescente-se que a referida alíquota será majorada para R$ 1,37 por litro, consoante o recentíssimo Convênio ICMS nº 173/2023, publicado através do Despacho nº 67, de 25 de outubro de 2023 [4].
De igual modo, quanto ao etanol hidratado, alguns estados aparentam estar descumprindo o mandamento constitucional, como pode ser extraído a partir de quadro comparativo fornecido pela Fecombustíveis [5].
É preciso notar que mesmo que alguns Estados estejam com alíquotas reduzidas, outros possuem alíquotas altas. O total de tributação de ICMS sobre o etanol hidratado na maioria do país está em dissonância com o que previu o constituinte derivado. Cumpre destacar que o ministro André Mendonça prolatou decisão na ADI 7.164/DF [6] abordando exatamente este ponto:
"Dito de forma direta, sob os influxos de regime monofásico de ICMS-combustíveis instituído por lei complementar nacional, de um lado exige-se a uniformidade em todo território nacional das alíquotas e, de outro, estas podem variar de acordo com o tipo de combustível. Qual é o motivo dessa variação? Justamente para fins de diferenciar a situação dos combustíveis fósseis em relação aos biocombustíveis! Cuida-se de manejo extrafiscal da tributação voltado à produção do meio ambiente ecologicamente equilibrado." (grifos originais)
Importante rememorar também a manifestação do Sindaçúcar nos autos da mencionada ADI, por meio da qual se salientou que o patamar da tributação incidente sobre o etanol hidratado representava apenas 29,73% do ônus tributário incidente sobre a gasolina [7].
Levando em consideração esta premissa, apenas um estado brasileiro está em conformidade com este diferencial competitivo após o advento da LC nº 192/2022, o Mato Grosso. Os demais ultraam o aludido percentual, chegando, em alguns casos, até a marca de 64% (Alagoas, Amapá e Roraima).
Com esta carga, não resta garantido o diferencial competitivo necessário para a proliferação e crescimento do etanol hidratado como combustível competidor viável em nível nacional. Cumpre elencar, por consequência, as externalidades positivas deste combustível, em linha com o já ponderado pelo ministro André Mendonça.
Além de serem renováveis, os biocombustíveis podem reduzir em 90% os gases do efeito estufa e gerar uma economia de U$ 0,20 centavos por litro em gastos futuros para compensar os efeitos de danos climáticos, bem como é possível achatar o aumento da curva de temperatura em cerca de 0,0005 graus Celsius [8].
Em estudo publicado por Saldiva [9], identificou-se que poderiam ser poupadas centenas de vidas, milhares de hospitalizações e milhões de dólares aos cofres públicos apenas em São Paulo, derivados de doenças respiratórias, com o incremento da utilização "única" dos biocombustíveis. Segundo o estudo, a economia seria de aproximadamente 3,8 milhões de dólares.
As vantagens também peram o plano econômico. Leite, ao analisar determinados estados da Federação, adotou alguns parâmetros para correlação entre o ICMS e o etanol. O autor concluiu que a incidência majorada do ICMS afeta negativamente os seguintes fatores: o valor bruto da produção (VBP), número de empregos, valor da remuneração, produto interno bruto (PIB) e valor das importações [10].
É interessante notar a dimensão que a tributação pode atingir. Percebe-se um aumento de arrecadação, mas em detrimento de produção, PIB, empregos e remuneração. O custo para a sociedade em uma tributação "desbalanceada" pode ser alto.
Outro ponto é de que a perda da competitividade do etanol em relação à gasolina, para o estado de São Paulo, caso do estudo, seria em alguns anos equivalente a 50 mil empregos e 397 milhões de reais, considerando-se que cadeia produtiva do etanol é mais intensiva em trabalho quando comparamos à produção da gasolina C [11].
Mais vantagens ambientais, sanitárias, sociais e econômicas podem ser conferidas em artigo escrito outrora, de nossa autoria e intitulado de "A necessidade de extrafiscalidade na tributação do etanol à luz do desenvolvimento sustentável" [12].
O quadro exposto não versa apenas de extrafiscalidade comum, a qual seria discricionária, mas sim de mandamento constitucional, maior força normativa no direito pátrio. Exaltam Martins e Ferrer [13] que o olhar fiscal para o ambiente deve considerar o reforço positivo.
A exceção fica por conta unicamente do biodiesel, na medida em que o Confaz autorizou que os estados concedam às operações envolvendo a sua circulação crédito presumido de até 100% do imposto devido, nos termos do Convênio ICMS nº 22/2023 [14]. No entanto, frise-se que nem todas as unidades federativas estaduais efetivamente concederam o referido crédito.
É verdade que os estados possuem como subterfúgio para o descumprimento da Constituição a ausência de lei complementar sobre o assunto, o que acaba deixando margem para diversas alíquotas e aplicações do direito tributário que, ao nosso ver, se demonstram em descomo com a carta magna.
Portanto, é preciso que haja a edição de nova Lei Complementar, na linha do que prevê a EC nº 123/2022, por meio da qual se estabelecerá normas gerais para os regimes fiscais favorecidos dos biocombustíveis, matéria essa de grande relevância para a produção nacional e menor dependência dos combustíveis fósseis, recaindo em externalidades positivas ambientais, sanitárias e econômicas, onde os Estados tenderão a perceber que o custo momentâneo de menor arrecadação terá impacto positivo em diversos ramos da sociedade a longo prazo — para que, enfim, os biocombustíveis possam competir nacionalmente com os combustíveis fósseis.
[1] "Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(…) VIII – manter regime fiscal favorecido para os biocombustíveis destinados ao consumo final, na forma de lei complementar, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis, capaz de garantir diferencial competitivo em relação a estes, especialmente em relação às contribuições de que tratam a alínea 'b' do inciso I e o inciso IV do caput do art. 195 e o art. 239 e ao imposto a que se refere o inciso II do caput do art. 155 desta Constituição."
[2] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(…) VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
[3] ADAMY, Pedro. Instrumentalização do Direito Tributário. In: ÁVILA, Humberto. Direito tributário. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008.
[4] Disponível em: https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/despacho/2023/despacho-67-23. o em 26/10/2023.
[5] Disponível em: https://www.fecombustiveis.org.br/tributacao. o em 24/10/2023.
[6] ADI 7.164/DF, rel. min. André Mendonça, decisão monocrática, DJe de 19/09/2022. Vale notar que a referida decisão foi, posteriormente, prejudicada, em virtude de acordo formalizado na ADPF 984/DF.
[7] ADI 7.164/DF, Petição nº 59.851/2022, de 10.08.2022.
[8] MEIRA FILHO, Luiz Gylvan; MACEDO, Isaias C. Contribuição do etanol para a mudança do clima In: De Sousa, Eduardo L. Leão; Macedo, Isaias de Carvalho (org.). Etanol e Bioeletricidade, A cana-de-açúcar no futuro da matriz energética. São Paulo: Luc Projetos de Comunicação, 2010. p. 78 a 97.
[9] SALDIVA, Paulo Hilário Nascimento et al. O etanol e a saúde. In: SOUSA, Eduardo L. Leão de; MACEDO, Isaias de Carvalho (org.). Etanol e Bioeletricidade: A cana-de-açúcar no futuro da matriz energética. São Paulo: Luc Projetos de Comunicação, 2010. p. 98-134.
[10] LEITE, J. Macroeconomia: teoria, modelos e instrumentos de política econômica, 2. ed. São Paulo: Atlas. 2000.
[11] COSTA, Cinthia Cabral da. GUILHOTO, Joaquim José M. O papel da tributação diferenciada dos combustíveis no desenvolvimento econômico do estado de São Paulo. Economia Aplicada, [S. l.], v. 15, n. 3, p. 369-390, 2011.
[12] ALMEIDA, Gustavo Conde de. A necessidade de extrafiscalidade na tributação do etanol à luz do desenvolvimento sustentável. 2022. Monografia (Bacharelado em Direito) – Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2022.
[13] MARTINS, Regina Célia de Carvalho; FERRER, Walkíria Martinez Heinrinch. A EXTRAFISCALIDADE COMO INSTRUMENTO REGULATÓRIO AMBIENTAL E A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA.2018. Disponível em: https://indexlaw.org/index.php/filosofiadireito/article/view/4119/pdf. o em 24/10/2023
[14] Convênio CONFAZ ICMS nº 22/2023. Disponível em: https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2023/CV022_23. o em 20/10/2023.
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