(Im)possibilidade de comunicar atos processuais por meio de aplicativos
6 de setembro de 2023, 6h06
No início de agosto, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) analisou, na mesma sessão, dois recursos especiais envolvendo a possibilidade de citação com o auxílio de meios tecnológicos. No primeiro, o REsp nº 2.026.925/SP, entendeu ser inviável a citação por meio das redes sociais do executado em uma execução de título extrajudicial; no segundo, o REsp nº 2.045.633/RJ, considerou, em tese, possível a citação por aplicativo de troca de mensagens em uma ação de medidas protetivas e destituição do poder familiar. Em debate, todavia, a mesma questão: é possível recorrer aos novos meios tecnológicos para comunicar atos processuais?
Muito em razão da pandemia de Covid-19, as relações interpessoais precisaram se adequar, subitamente, ao ambiente on-line, mediadas por dispositivos como smartphones, tablets e laptops, que tornaram possível a manutenção de um sistema comunicativo instantâneo e horizontal. Vivenciamos, nos últimos anos, a modificação da subestrutura informacional prevalente na sociedade [1] e, em razão disso, o incremento nas interações entre os meios tecnológicos e o Direito.
Uma característica do sistema jurídico é a alternância entre ciclos de estabilidade e instabilidade, aos quais – devido a mudanças abruptas e fatores extrajurídicos – reage e modifica as suas estruturas internas, para se ajustar às variações nas estruturas sociais [2]. Graças a essa adaptabilidade, o Poder Judiciário conseguiu continuar a desempenhar as suas atividades regularmente, com a adoção do trabalho remoto e a realização de audiências e sessões de julgamento telepresenciais.
ada a pior fase da emergência sanitária, observa-se o retorno progressivo ao ambiente presencial, mas algumas mudanças provocadas pelos avanços tecnológicos no sistema jurídico e, em especial, no direito processual, parecem ter sido definitivamente incorporadas. Uma delas foi a forma pela qual se comunicam os atos processuais.
Segundo o artigo 238 do Código de Processo Civil (C), a citação "é o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual". Sua relevância é manifesta: se considerada válida, permite o cômputo de prazos, induz litispendência, constitui em mora o devedor etc. Daí a necessidade de assegurar, à luz do contraditório e da ampla defesa, que o seu destinatário tenha efetivo conhecimento do teor do ato.
O C previu, tanto em sua redação original quanto a partir da Lei nº 14.195/2021, uma série de normas que têm por objetivo aproximar a maneira pela qual se comunicam os atos processuais às transformações causadas na sociedade pelo meio tecnológico. São exemplos disso os artigos 193 (ite que os atos processuais sejam praticados, total ou parcialmente, em meio tecnológico), 236, § 3º (ite a utilização de recursos tecnológicos como e para a prática de atos processuais), 246 (elege como modo preferencial de citação o meio tecnológico) e 270 (aponta como modo preferencial de intimação o meio tecnológico).
Embora fosse esse o cenário ideal, é bem verdade que não há previsão expressa no C quanto à utilização de aplicativos de troca de mensagens instantâneas e redes sociais para a comunicação dos atos processuais. Isso não significa que não se possa extrair de outras fontes do direito processual – como das resoluções editadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no exercício do seu poder regulamentar [3], e até mesmo, de forma mais ampla, do C – normas que respaldem essa possibilidade.
O CNJ aprovou, em 2017, no julgamento do Procedimento de Controle istrativo nº 0003251-94.2016.2.00.0000, a utilização do WhatsApp na comunicação dos atos processuais. Mais recentemente, o órgão editou a Resolução nº 345/2020, que, em seu artigo 2º, parágrafo único, prevê que é "itida a citação, a notificação e a intimação por qualquer meio eletrônico, nos termos dos arts. 193 e 246, V, do Código de Processo Civil". Também editou a Resolução nº 354/2020, que, em seu artigo 8º, dispõe que, "nos casos em que cabível a citação e a intimação pelo correio, por oficial de justiça ou pelo escrivão ou chefe de secretaria, o ato poderá ser cumprido por meio eletrônico que assegure ter o destinatário do ato tomado conhecimento do seu conteúdo".
Tanto no REsp nº 2.026.925/SP quanto no REsp nº 2.045.633/RJ, todos esses aspectos foram amplamente considerados. A solução a que a 3ª Turma do STJ chegou em cada um deles, no entanto, foi distinta.
No primeiro caso, o exequente alegou que, a despeito de ter se utilizado de diversos meios para localizar o executado, não conseguiu localizá-lo para efetuar sua citação pessoal. Por isso, requereu que a citação fosse realizada por mensagens direcionadas às suas redes sociais (Facebook e Instagram). A Turma entendeu que, devido à regra específica do artigo 256 do C, a modalidade de citação adequada seria por edital, não sendo possível aplicar o princípio da instrumentalidade das formas, previsto no artigo 277 do C, tendo em vista a impossibilidade de validar, previamente, atos praticados em contrariedade à previsão da lei. Também foi destacada a incerteza quanto à titularidade da conta na rede social pelo executado, o que dificultaria a demonstração de que ele teve ciência do conteúdo do ato de citação.
No segundo caso, a parte ré alegou a nulidade do ato citatório por WhatsApp, em razão de o oficial de Justiça não ter lido o mandado de citação na sua presença e ter desconsiderado se tratar de pessoa analfabeta quando enviou a contrafé em formato digital. Nesse caso, a Turma entendeu ser possível, em tese, a citação por aplicativos de troca de mensagens instantâneas, uma vez que prevalece, no atual C, o princípio da liberdade das formas. Portanto, se atingida a finalidade do ato processual, eventual vício de forma pode ser convalidado, nos termos do artigo 277 do C.
É certo que, em ambos os casos, a comunicação do ato processual de citação se deu em desacordo com as formalidades previstas no C. Apesar disso, no REsp nº 2.026.925/SP, as dificuldades em torno da confirmação do titular da conta nas redes sociais – e, portanto, do efetivo conhecimento da prática do ato citatório – parecem ter contribuído para a solução diversa.
Não se discute que a adoção de medidas para se certificar de que o destinatário da citação teve conhecimento do seu conteúdo é indispensável, inclusive como exigência do devido processo legal. Mas é preciso ter em conta algumas ponderações.
A comunicação do ato processual com o auxílio dos aplicativos e redes sociais que permitem a troca de mensagens instantâneas dá concretude ao princípio da eficiência processual (artigo 8º do C), tendo em vista a elevada probabilidade de êxito no alcance do destinatário, que, de modo geral, os utiliza com frequência [4]. Além disso, é possível adotar cautelas para assegurar que a comunicação da citação seja bem-sucedida. São exemplos disso [5] a identificação de elementos que apontem ser o destinatário do ato processual o titular da conta utilizada na rede social, como o nome do perfil, as pessoas com as quais se relaciona e as fotos pessoais; a busca por indicativos de que a conta costuma ser utilizada com frequência; a comunicação do ato processual por mais de uma rede social; e a solicitação de confirmação de recebimento e leitura da mensagem.
Esse tema, certamente, ainda suscitará muitas reflexões. É natural que a emergência de uma nova tecnologia da comunicação provoque perturbações entre o atual e o anterior estado de coisas, o que conduz à necessidade de repensar as interações sociais, as estruturas de pensamento e, enfim, o próprio Direito.
[1] SUSSKIND, Richard; SUSSKIND, Daniel. The future of the professions. New York: Oxford University Press, 2017, p. 146 e ss.
[2] VESTING, Thomas. Teoria do direito: uma introdução. São Paulo: Editora Saraiva, 2015, pp. 284-287 e 293-294.
[3] DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. O Conselho Nacional de Justiça e o direito processual: istração judiciária, boas práticas e competência normativa. Salvador: Editora Juspodivm, 2022, pp. 54-64.
[4] Também sobre a possibilidade de utilizar o meio tecnológico para a comunicação dos atos processuais às pessoas residentes no exterior, cf. LOPES, Rodolfo. A prova pessoal na era das novas tecnologias: produção e valoração. Londrina: Editora Thoth, 2022, pp. 103-108.
[5] VANLEENHOVE, Cedric. Service of process via social media in civil cases: an exploration of the potential use of social media platforms for bringing notice to defendants in Belgium, Revista Ítalo-Española de Derecho Procesal, vol. 1, pp. 7-48, 2020, pp. 22, 26, 29 e 31-32.
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