Opinião

Suspensão condicional em persecução de crime de relevante potencial ofensivo

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10 de setembro de 2023, 6h15

A atual redação do diploma processual penal brasileiro promove significativas implicações hermenêuticas acerca do momento adequado para o exame da proposta de suspensão condicional do processo nas persecuções penais vinculadas a crimes de relevante potencial ofensivo, donde se extrai a importância de se debruçar sobre a matéria.

De início, convém mencionar que os indivíduos acusados por crimes com pena mínima cominada igual ou inferior a um ano, que não estejam sendo processados ou não tenham sido condenados por outro crime e que satisfaçam os requisitos do artigo 77 do , possuem o direito subjetivo à suspensão condicional do processo.

Trata-se de um instituto despenalizador, também denominado de sursis processual, descrito no artigo 89 da Lei nº 9.099/95, o qual prevê a possibilidade de suspensão do processo por dois a quatro anos e de extinção da punibilidade após o regular cumprimento das condições impostas no ato constitutivo do benefício.

O dispositivo legal em comento estabelece um procedimento, instituindo a concatenação de ações que objetivam a efetivação da suspensão condicional do processo.

Contudo, a interpretação literal do artigo 89 da Lei nº 9.099/95 deixou de ser fundamento suficiente para a tomada da decisão judicial que determina quando o acusado deve examinar a proposta do sursis processual, tornando-se necessário avaliar o grau de ofensividade do crime.

Isto porque, a Lei nº 11.719/2008 incorporou o princípio da proporcionalidade ao Código de Processo Penal brasileiro, consagrando a categorização do procedimento comum em ordinário, sumário ou sumaríssimo, aplicáveis de acordo com a gravidade da sanção penal prevista pelo legislador (artigo 394 do P).

Os procedimentos sumário e ordinário foram reservados às persecuções penais vinculadas a ilícitos de relevante potencial ofensivo [1], e aram a exigir a confirmação judicial do prosseguimento da ação penal.

No que tange aos procedimentos em comento, após o recebimento da denúncia, o acusado ou a ter o direito de apresentar resposta à acusação (artigo 396 do P). Oportunidade na qual pode arguir preliminares e alegar tudo que importar à sua defesa (artigo 396-A do P).

Apresentada a resposta à acusação, o juiz deve avaliar as teses suscitadas, sendo que o ato de indeferir o pedido de reconsideração acerca do trancamento da ação penal (artigo 395 do P) confirma o recebimento da denúncia, e, caso afastadas as teses de absolvição sumária (art. 397 do P), estar-se-á abrindo espaço para a confirmação do efetivo prosseguimento do processo mediante a designação de dia e hora para a audiência de instrução e julgamento (artigo 399 do P).

Vale gizar que a expressão "recebida a denúncia" foi equivocadamente adotada pelo legislador ao esculpir o artigo 399 do P, primeiro porque o magistrado não pode receber uma denúncia que já foi acolhida nos termos do artigo 396 do P; segundo pois a expressão não faz jus às hipóteses de absolvição sumária, porquanto somente é possível absolver após o efetivo recebimento da denúncia; e terceiro porque, caso o acusado seja absolvido sumariamente, não haverá motivos para a designação de audiência de instrução e julgamento.

Portanto, no artigo 399 do P, onde se lê "recebida a denúncia", deve-se compreender a expressão como "confirmado o prosseguimento da ação penal".

Apesar dos esforços legiferantes, contata-se que, após 15 anos da entrada em vigor da Lei nº 11.719/2008, o direito à apreciação da resposta à acusação e o direito à confirmação do prosseguimento da ação penal vêm sendo constantemente suprimidos por magistrados quando da interpretação dos supervenientes artigos 394 a 399 do P em combinação com o artigo 89 da Lei nº 9.099/95.

A análise jurisprudencial revela que mandados de segurança, correições parciais e habeas corpus vêm sendo apresentados pelas defesas técnicas perante os tribunais estaduais, federais e superiores em busca das garantias processuais e constitucionais vinculadas à celeuma, e há importantes provimentos relacionados à temática [2].

O que se percebe é que determinados juízes, ao se depararem com uma denúncia versando sobre ilícito de relevante potencial ofensivo acompanhada de proposta de suspensão condicional do processo, recebem a exordial acusatória de forma antecipada sob o rito sumário ou ordinário, e designam audiência para o exame da proposta de suspensão condicional do processo ao argumento de que estão seguindo os ditames do artigo 89 da Lei nº 9.099/95, afastando o direito à resposta à acusação e inviabilizando o direito à confirmação do prosseguimento da ação penal.

Entretanto, nos termos do artigo 89 da Lei nº 9.099/95 a denúncia somente pode ser recebida após o exame da proposta de suspensão condicional do processo. Portanto, receber a denúncia e, posteriormente, designar a data para a avaliação do sursis processual, demonstra, por si só, que não se está aplicando o consignando no artigo 89 da Lei nº 9.099/95, tampouco o previsto no Código de Processo Penal com redação dada pela Lei nº 11.719/2008.

A concatenação equivocada de atos revela a criação, por via judicial, de um rito processual inexistente no ordenamento jurídico brasileiro, evidenciando latente violação ao princípio da competência privativa da União para legislar sobre direito processual (artigo 22, caput e inciso I, da CRFB/88).

O artigo 396 do P é incisivo ao afirmar que o primeiro ato judicial a ser efetuado após o recebimento da denúncia, nos ritos sumário ou ordinário, é a ordenação da citação do acusado para responder à acusação, inexistindo norma legal que indique a possibilidade de supressão dessa garantia processual.

Não se olvide que o artigo 89 da Lei nº 9.099/1995 foi elaborado quando inexistia o direito à resposta à acusação anterior à audiência de instrução e julgamento.

Todavia, interpretar o artigo 89 da Lei nº 9.099/1995 sob a ótica do diploma processual penal com redação de 1941 afronta aos princípios da vedação ao retrocesso e da imediata aplicação da lei processual penal (artigo 2 do P).

Para além disso, os §4º e 5º do artigo 394 do P impõe, respectivamente, que "as disposições dos artigos 395 a 398 deste Código aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste Código", e que "aplicam-se subsidiariamente aos procedimentos especial, sumário e sumaríssimo as disposições do procedimento ordinário".

Ademais, nos termos do artigo 92 da Lei nº 9.099/95, "Aplicam-se subsidiariamente as disposições dos Códigos Penal e de Processo Penal, no que não forem incompatíveis com esta Lei".

É de se concluir, portanto, que a confirmação do prosseguimento do processo (artigo 399 do P) é elemento essencial para a plena eficácia de uma ação penal cuja persecução criminal esteja vinculada ao procedimento sumário ou ordinário, razão pela qual não há possibilidade legal de suspensão de um processo que ainda não se perfectibilizou sob a ótica garantista.

O cerne da questão reside no fato de que não é possível confirmar o prosseguimento da ação penal antes da apreciação da resposta à acusação.

Portanto, é impositiva a adequação hermenêutica do disposto no artigo 89 da Lei nº 9.099/1995, visando conjugar os seus ditames aos preceitos da novatio legis (Lei nº 11.719/2008), a qual ampliou as garantias previstas no diploma processual penal.

A fim de solucionar a celeuma, propõe-se que a expressão "recebendo a denúncia", prevista no §1º do artigo 89 da Lei nº 9.099/1995, seja considerada como aquela descrita no artigo 399 do P (confirmação do prosseguimento da ação penal após a apreciação judicial da resposta à acusação) e não aquela prevista no artigo 394 do P (recebimento antecipado da denúncia sem manifestação defensiva).

Nessa linha, quando o Ministério Público apresentar uma denúncia versando sobre crime de relevante potencial ofensivo acompanhada de proposta de suspensão condicional do processo, o magistrado deve receber a denúncia, mediante a adoção do rito sumário ou ordinário, e, na sequência, determinar a citação do acusado para que apresente a resposta à acusação (artigo 394 do P c/c artigo 396 do P).

Nesse cenário, apenas se afastadas as teses de reconsideração acerca de pedido de trancamento da ação penal e de absolvição sumária (artigos 395 e 397 do P), o magistrado deve designar a audiência para o exame da proposta de suspensão condicional do processo.

Na referida audiência, caso o acusado aceite a proposta apresentada pelo Órgão Ministerial, o Juiz deve confirmar a higidez da ação penal (artigo 399 c/c primeira parte do §1º do artigo 89 da Lei nº 9.099/95) e submeter o acusado ao período de prova mediante determinadas condições (parte segunda do §1º do artigo 89 da Lei nº 9.099/95), as quais, se cumpridas durante o prazo de suspensão do processo, representarão causa de extinção da punibilidade (§5º do artigo 89 da Lei nº 9.099/95).

Noutro vértice, caso o acusado rejeite a proposta do sursis processual, o magistrado deverá confirmar o prosseguimento da ação penal e proceder o feito nos seus ulteriores termos (primeira parte do artigo 399 do P c/c §7º do artigo 89 da Lei nº 9.099/95), com a consequente designação de dia e hora para a audiência de instrução e julgamento (segunda parte do artigo 399 do P).

Em contrapartida, caso haja designação de audiência para o exame da proposta de suspensão condicional do processo antes da apreciação da resposta à acusação, o ato deve ser declarado nulo diante da ausência da confirmação do prosseguimento da ação penal (artigo 399 do P c/c artigo 564, inciso III, do P).

A referida nulidade se evidencia na sujeição do acusado ao prejuízo (artigo 563 do P) de ser impossibilitado de suscitar pedidos significativamente mais benéficos que a aceitação da sujeição às regras do sursis processual, dentre os quais os pleitos de trancamento da ação penal e/ou de absolvição sumária, revelando violação ao devido processo legal e aos princípios da ampla defesa e do contraditório (artigo 5º, inciso LV, da CRFB/88).

À luz do exposto, no que tange ao exame da proposta de suspensão condicional do processo, não basta a atualização do Código de Processo Penal para a garantia do direito à resposta à acusação nos casos envolvendo ilícitos de relevante potencial ofensivo, é necessário o esforço interpretativo dos aplicadores do direito acerca do disposto no artigo 89 da Lei nº 9.099/95, especialmente no que tange à imprescindibilidade da confirmação da viabilidade do prosseguimento da ação penal para a decretação do sursis processual.

 


[1] Ilícito de relevante potencial ofensivo se consubstancia em crime em que a lei comine pena máxima superior a 2 (dois) anos de privação de liberdade, conforme se depreende do artigo 61 da Lei n. 9.099/95 c/c art. 394 do P.

[2] Acerca da jurisprudência atinente ao assunto, sugere-se a leitura dos seguintes acórdãos:

Mandado de Segurança n. 5017086-75.2022.4.04.0000, julgado pela 8ª Turma do TRF4, de relatoria do desembargador Rodrigo Kravetz, com acórdão juntado aos autos em 02/06/2022;

Correição Parcial n. 5025095-26.2022.4.04.0000, julgada pela Sétima Turma do TRF-4, de relatoria do desembargador Luiz Carlos Canalli, com acórdão juntado aos autos em 28/06/2022;

Habeas Corpus n. 4014008-07.2019.8.24.0000, julgado em 04/06/2019 pela 2ª Câmara Criminal do TJ-SC, de relatoria do desembargador Norival Acácio Engel; e

Embargos de Declaração no Habeas Corpus de n. 419.787/AC, julgado em 22/5/2018, DJe de 30/5/2018, pela 5ª Turma do STJ, de relatoria do ministro Ribeiro Dantas.

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