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A Lei 14.597/23 e a pauta da corrupção privada no Brasil: uma reflexão

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  • é doutora e mestre em Direito do Estado pela USP. Especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris. Ex-controladora geral do Município de São Paulo. Professora do Insper.

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17 de setembro de 2023, 8h00

A recente edição da Lei 14.597, em 14 de junho último, representou importante marco na discussão atinente à repressão — e prevenção — dos atos de corrupção praticados por particulares, na medida em que criminalizou, de forma inédita, a modalidade privada no Brasil.

Embora já contemplasse tal possibilidade, a Lei 12.299/10 focalizava tão somente a intenção de alterar ou falsear o resultado de competição esportiva ou evento, com escopo portanto extremamente mais limitado.

O artigo 165 da norma em comento, diferentemente, elenca as condutas de exigir, solicitar, aceitar ou receber vantagem indevida, como representante de organização esportiva privada, para favorecer a si ou a terceiros, direta ou indiretamente, ou aceitar promessa de vantagem indevida, a fim de realizar ou de omitir ato inerente às suas atribuições, com previsão de pena de reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Tal consequência estende-se a quem ofereça, prometa, entregue ou pague, direta ou indiretamente, ao representante da organização esportiva privada, vantagem indevida.

A previsão guarda relação, para além da cada vez maior cobrança por integridade, com diversos escândalos: lembre-se o caso envolvendo a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e a Federal Internacional de Futebol (Fifa), em 2015, quando dois ex-presidentes da CBF foram acusados de favorecer empresas patrocinadoras e de marketing esportivo em contratos para a transmissão da Copa Libertadores da América e da Copa do Brasil.

Na ocasião, foram presos na Suíça sete dirigentes da Fifa, incluindo o brasileiro José Maria Marin, ex-presidente da CBF, em decorrência de investigações lideradas pelos Estados Unidos — que reivindicaram, dentre outros motivos, justamente pelo fato de a corrupção privada não ser criminalizada em alguns dos países em que pagas as propinas.

Digno de lembrança, ainda, o alegado envolvimento do ex-presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) com empresários e políticos do Rio de Janeiro na compra de votos para escolha da cidade olímpica de 2016.

Os potenciais sujeitos ativos são unicamente pessoas físicas, não havendo o diploma inovado a ponto de estabelecer a responsabilidade criminal de pessoas jurídicas (opção adotada em muitos países, como Reino Unido).

Trata-se de adesão a tendência internacionalmente consagrada: a Convenção da ONU Contra a Corrupção de 2003 [1] (promulgada no Brasil pelo Decreto 5.687/06) traz recomendação da punição dos atos de corrupção privada, no intuito de promover o incremento da integridade e honestidade das relações, protegendo, portanto, a lealdade e confiança.

A Ação Comum 98/742/JAI da União Europeia sobre corrupção privada [2] entrou em vigor em 1998, e tinha como bens jurídicos protegidos os interesses legítimos dos competidores do mercado; a concorrência leal e a própria ordem econômica lato sensu. Foi revogada pela Decisão-Quadro 2003/568/JAI do Conselho UE, que consagrou como bens jurídicos centrais a livre concorrência e confiança, e que trouxe, inclusive, a possibilidade de pessoas condenadas por corrupção serem proibidas de exercer a sua atividade profissional.

Esta norma conta atualmente com proposta de revisão, consubstanciada na Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 03/5/2023 [3], desenvolvida a partir de levantamento feito em fevereiro último, que evidenciou que todos os países do bloco (com exceção de Bulgária e Dinamarca, que não responderam à pesquisa) contam com legislação nacional a respeito da temática da corrupção privada.

Para além de uma série de penalidades adicionais (responsabilização penal de pessoas coletivas concomitante à de indivíduos; proibição temporária ou permanente de contratação da pessoa jurídica pela istração), a proposta inclui, na definição de funcionários públicos, pessoas que trabalham em empresas estatais e controladas pelo Estado, em fundações de gestão de ativos e empresas privadas prestadoras de serviço público, as por elas criadas ou mantidas.

Além disso, reúne a corrupção nos setores público e privado em um único dispositivo, equiparando-as, tal qual o modelo britânico.

Há também a Convenção Penal Sobre Corrupção do Conselho da Europa [4] de 1999, cujo preâmbulo destaca os efeitos perniciosos da corrupção (pública ou privada) para o Estado de Direito, a democracia e os direitos humanos, os princípios de boa istração, de equidade e de justiça social, a concorrência, o desenvolvimento econômico e a estabilidade das instituições democráticas e os fundamentos morais da sociedade. Criminaliza atos de pessoas físicas (inclusive atores externo às empresas, como advogados e assessores) e jurídicas, não trazendo, com relação às segundas, a exigência de dolo. Os bem protegidos são a lealdade e confiança.

Na Inglaterra, a corrupção privada foi pioneiramente criminalizada em 1906, com a edição do Prevention of Corruption Act [5] — sucedido, em 2010, pelo UK Bribery Act [6], um dos mais rígidos do mundo. O diploma protege a lealdade e confiança das relações (daí o tratamento unitário das modalidades pública e privada) e criminaliza inclusive as falhas das empresas em prevenir atos de corrupção, com a possibilidade de imposição de multas de valores ilimitados (inexiste um teto para tanto).

Voltando à inovadora lei em comento, traduz preocupação com a construção de um verdadeiro sistema de integridade no âmbito dos esportes.

Nesse sentido, merecem destaque o bem-vindo incentivo ao engajamento da sociedade civil, mediante participação nos processos de planejamento, coordenação, gestão e avaliação de políticas, programas e ações (artigo 11, XIII); a formalização de parcerias (artigo 25) e o envolvimento nas Conferências quadrienais voltadas à formulação/revisão de políticas públicas para o esporte (artigo 23).

Quanto às organizações parceiras, consigna expressamente — e de forma didática — a sua fiscalização pelo TCU, a qual decorre da própria lógica do controle, na medida em que os valores reados são captados junto à sociedade via concursos de prognósticos, sorteios e loterias, conforme artigo 23 da Lei 13.756/18.

Além disso, tais entidades deverão estabelecer uma gestão marcada pela transparência, condicionante do recebimento de valores públicos, assim como a presença mínima de trinta por cento de mulheres nos cargos de direção, a garantia de isonomia entre os valores pagos a homens e a mulheres e a publicação da identidade e salários dos seus dirigentes.

Trata-se de medidas absolutamente importantes e consentâneas com a noção de integridade, abrangente, para além das medidas anticorrupção, de governança e compliance (de certa forma mais assentadas e assimiladas), de valores como isonomia, inclusão, combate às diversas formas de assédio (sexual, moral, eleitoral), sustentabilidade e preservação ambiental.

O artigo 59, ao tratar dos princípios da gestão na área esportiva, fala, dentre outros princípios, de transparência (assim como os artigos 61, §3º, IV e 64, III), ability, participação e, justamente, integridade.

O diploma criou, ainda, uma espécie de "ficha limpa" para os dirigentes de entidades esportivas, com uma série impedimentos e inexigibilidades.

Nesse sentido, não podem exercer função de direção por, no mínimo, dez anos ou enquanto perdurarem os efeitos da condenação judicial, pessoas: 1. inelegíveis para o exercício de cargos públicos na forma da legislação eleitoral, pelo período de inelegibilidade nela fixado; 2. afastadas por decisão interna ou judicial por gestão temerária ou fraudulenta no esporte.

Os dirigentes inadimplentes: 1. na prestação de contas de recursos públicos em decisão istrativa definitiva; 2. na prestação de contas da própria organização, por decisão definitiva da própria ou judicial; 3. com as contribuições previdenciárias e trabalhistas relativas à sua gestão, com débitos inscritos em dívida ativa, são todos inelegíveis para cargos e funções eletivos ou de livre nomeação pelo prazo de dez anos — da mesma forma que os es, sócios-gerentes ou dirigentes de empresas que tenham tido falência decretada.

As mesmas consequências decorrem da ausência e/ou não publicização de demonstração financeira conforme parâmetros da lei e da não apresentação de relatórios de auditoria ao CNE (no caso de beneficiárias de recursos públicos) por dirigentes de organizações que istram e regulam a prática esportiva, quanto a quaisquer cargos ou funções eletivas ou de livre nomeação em quaisquer organizações esportivas; e, no caso dos dirigentes de organizações que promovam a prática, quanto a cargos ou função eletivas ou de livre nomeação em qualquer organização ou empresa vinculada às competições com atletas profissionais da respectiva modalidade.

A lei traz o conceito de gestão irregular ou temerária, abrangente de atos desrespeitosos aos deveres de transparência e prestação de contas, como: aplicar créditos ou bens sociais em proveito próprio ou de terceiros; obter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de que resulte ou possa resultar prejuízo para a organização; celebrar contrato com empresa da qual o dirigente, seu cônjuge ou companheiro ou parentes, em linha reta, colateral ou por afinidade até o terceiro grau sejam sócios ou es, salvo contratos de patrocínio ou doação; receber pagamento, doação ou outra forma de ree de terceiros que, no prazo de até um ano, antes ou depois do ree, tenham celebrado contrato com a organização; não divulgar informações de gestão aos associados; deixar de prestar contas de recursos públicos.

A configuração da gestão temerária depende de dolo ou culpa grave, estando o dispositivo em total consonância com o disposto na Lindb — e em sentido diverso do imposto pela LIA, que exige dolo específico.

Os responsáveis, assim identificados a partir de mecanismos de controle interno, ficarão inelegíveis pelo mesmo período de dez anos para cargos em qualquer organização esportiva.

Para além dos referidos avanços, não se pode deixar de registrar a infelicidade do artigo 11 da lei, cujos parágrafos induzem a compreensão de que as atividades esportivas praticadas por militares constituiriam uma classe à parte, com regime próprio, não obstante integrante do sistema nacional.

Trata-se de posição dissonante do espírito democratizante que permeia o diploma, que, para além de descabida, sem razão de ser e juridicamente insustentável, estimula interpretações com potencial extremamente negativo, tais como a que levou órgãos federais a resistirem, por longos cinco anos, a disponibilizar dados atinentes às pensões militares — não obstante determinação do TCU nesse sentido.

Na ocasião, a partir de pedido de o da sociedade civil organizada [7], decidiu-se pela abertura dos dados relativos às pensões do governo federal. Não obstante a clareza da decisão, a União simplesmente excluiu da iniciativa aqueles atinentes aos militares (com exceção dos de ex-territórios), como se eles não integrassem o Executivo, como se fossem uma classe à parte regida por regras — e princípios, e valores — próprios, justamente como parece pretender o dispositivo em comento.

Voltando aos avanços da lei, permanece ainda à seara esportiva, não abrangente de setores sabidamente sensíveis como a indústria farmacêutica, empresas de auditoria, bancos… [8]

Imprescindível, assim, a revisão de tal postura resiliente com as práticas de corrupção privada — como se não redundassem em repercussões nefastas para a esfera pública e a sociedade em geral.

Realmente, as empresas transitam indistintamente entre as duas arenas (público e privada), estabelecendo em ambas interações das mais diferentes naturezas, que acabam por, de certa forma, se retroalimentar e gerar sustentabilidade para os negócios.

A noção de contraposição — ou separação estanque — entre as esferas pública e privada desde há muito não se sustenta, sendo inegável o vínculo de complementariedade e obrigatória articulação entre elas.

A própria ideia de isonomia determina a inissibilidade de apenação dos atos de corrupção em uma seara e não em outra: trata-se, no mais das vezes, de condutas análogas, assumidas com o mesmo móvel e que, portanto, devem receber tratamento similar.

Não se pode apartar os efeitos da corrupção pública e privada: ambas são igualmente nefastas, trazem seríssimos prejuízos de ordem econômica, social, cultural e política para todo o entorno em que praticada.

A naturalização de práticas corruptas por empresas conduz à deterioração de valores éticos, morais, sociais e, ainda que a longo prazo, econômicos.

A cultura da corrupção, da incessante busca por vantagens a qualquer custo contamina todo ambiente social, independentemente da natureza pública ou privada dos envolvidos — e o comprometimento da segurança e confiança, para além das ofensivas à livre concorrência, geram grandes prejuízos institucionais.

Em termos práticos, a criminalização da corrupção privada criaria um ciclo virtuoso direcionado à elevação da qualidade das relações, com aprofundamento e estabilização da confiança, maior previsibilidade e segurança jurídica.

A busca por compliance e integridade, colocada de maneira mais específica e incisiva pela Lei Anticorrupção, redundou em uma mudança cultural do panorama de relacionamento público-privado no país — a qual vem sendo liderada pelas empresas privadas, em que as mudanças se operam de forma mais rápida, vez que impulsionadas pela própria lógica do mercado.

O mesmo efeito poderia advir da criminalização das condutas privadas, inclusive com o amadurecimento das estratégias de detecção, prevenção e combate na esfera pública.

 


[3] Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à luta contra a corrupção, que substitui a Decisão-Quadro 2003/568/JAI do Conselho e a Convenção relativa à luta contra a corrupção em que estejam implicados funcionários das Comunidades Europeias ou dos Estados-Membros da União Europeia e que altera a Diretiva (UE) 2017/1371 do Parlamento Europeu e do Conselho de 03/05/2023: https://www.c.tcontas.pt/documentos/outros/CELEX_52023PC0234_PT_TXT.pdf

[7] Pedido apresentado pela Fiquem Sabendo. Maiores informações em https://fiquemsabendo.com.br/gastos-publicos/denuncia-fiquem-sabendo-tcu-pensoes-militares/

[8] Conforme visto no caso Enron/Arthur Andersen em 2001, em que a primeira omitiu bilhões de dólares em dívidas, inflando os ganhos, com a conivência da segunda, responsável justamente por auditá-la, e que foi devidamente remunerada para ignorar as irregularidades.

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