Possibilidade de fundos de investimentos como bem de família voluntário
20 de setembro de 2023, 17h19
Os fundos de investimento estão listados como valores mobiliários nos termos da Lei 10.303/2001. São títulos ofertados publicamente, contratos de investimento coletivo que geram direito de participação, de parceria ou remuneração, inclusive resultante da prestação de serviços, cujos rendimentos advém do esforço do empreendedor ou de terceiros [1].
Erroneamente, os fundos são apresentados muitas vezes como formas de blindagem patrimonial ou proteção patrimonial. Isso acontece porque todo fundo de investimento tem um CNPJ próprio que o desvincularia do patrimônio pessoal do proprietário/investidor, o que, repita-se; erroneamente, garantiria que valores de uma pessoa natural que estivesse investido em um fundo de investimentos, não fosse afetado caso essa pessoa natural enfrentasse cobranças envolvendo dividas diversas como: indenizações ou recuperação judicial, brigas familiares relacionadas a processos sucessórios e divisão de herança, problemas envolvendo execuções de dívidas trabalhistas, questões ligadas ao Fisco e problemas resultantes de separação e divórcio.
Porém, conforme já decidido por nossos tribunais superiores, diante da comprovação inequívoca de que a própria constituição do fundo de investimento se deu de forma fraudulenta, como forma de encobrir ilegalidades e ocultar o patrimônio de empresas ou particulares; comprovado o abuso de direito, caracterizado pelo desvio de finalidade (ato intencional com intuito de fraudar terceiros), e/ou confusão patrimonial, é possível desconsiderar a personalidade jurídica do fundo de investimento para garantir o adimplemento de direitos, inclusive envolvendo divórcios e sucessão familiar.
Nesse sentido:
"RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. IMPUGNAÇÃO À EXECUÇÃO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. PRODUÇÃO DE PROVAS. NECESSIDADE. REEXAME DE PROVA. SÚMULA Nº 7/STJ. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. PEDIDO E DECISÃO JUDICIAL ANTERIOR. EXISTÊNCIA. REGULARIDADE FORMAL. FUNDO DE INVESTIMENTO EM PARTICIPAÇÕES (FIP). NATUREZA JURÍDICA. CONDOMÍNIO ESPECIAL. COTAS. CONSTRIÇÃO JUDICIAL. POSSIBILIDADE. 12. Recurso especial parcialmente conhecido e não provido." (STJ, REsp 1.965.982/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 5/4/2022, DJe de 8/4/2022).
A lei não pode servir de escudo para os maus pagadores, para proteger os fraudadores ou golpistas, muito menos para o cometimento de violência patrimonial envolvendo relações familiares.
Porém, existem disposições legais que buscam expressamente garantir o fundamental para a proteção do patrimônio familiar, diante das adversidades econômicas e sociais.
Nesse sentido destacamos a proteção ao bem de família que está ligada intimamente à preservação de direitos individuais mínimos de uma vida digna [2].
Conforme o disposto na Lei 8.009/90, o bem de família é um instituto legal que visa proteger um imóvel residencial, juntamente com suas pertenças e órios, de ser penhorado ou executado para pagar dívidas posteriores à sua instituição.
Além da lei, o bem de família está regulado no nosso Código Civil nos artigos 1.711 ao 1.722. Em nosso CC estão previstas as normas jurídicas que regulam o bem de família que muitos chamam como voluntário, conforme melhor explicado a seguir.
Nos termos do código, o bem para gozar da efetiva proteção, deve ser objeto de determinados procedimentos legais realizados pelo proprietário, para que àquele patrimônio se torne bem de família, daí o nome: "bem de família voluntário".
Importante notar que no bem de família voluntário é possível incluir além de imóveis, valores mobiliários, desde que sejam destinados exclusivamente ao sustento dos beneficiários e manutenção do imóvel constituído como bem de família, nos termos dos artigos 1.712 e 1.713 do Código Civil.
A inclusão de valores mobiliários no âmbito do "bem de família" amplia a proteção oferecida pela lei, garantindo não apenas a moradia, mas também a renda proveniente desses valores, para o sustento e vida digna da família na manutenção do bem.
Sobre o tema, o professor Walsir Edson Rodrigues Junior nos ensina:
"Já na espécie voluntária do bem de família, o Código Civil é mais aberto. ite, para além da base objetiva da moradia, que a proteção se estenda a valores mobiliários que sirvam não só à manutenção do lar, como ao próprio sustento das pessoas residentes. Sendo assim, é sensível que a preocupação com o patrimônio à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição." [3]
Esclarecido quanto à finalidade do instituto, os artigos 1.711 ao 1722 do Código Civil dispõem sobre os requisitos legais e objetivos para a constituição do bem de família voluntário.
Resumidamente os requisitos são os seguintes: o bem deve corresponder a um terço do patrimônio líquido da família. Pode ser constituído por testamento ou doação. Deve ser um prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e órios, desde que destinados a domicílio familiar e nesse caso pode abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família.
Lembrando ainda que os valores mobiliários não poderão exceder o valor do prédio instituído em bem de família, à época de sua instituição e devem os valores mobiliários serem devidamente individualizados no instrumento de instituição do bem de família.
Quando se tratar de títulos nominativos, a sua instituição como bem de família deverá constar dos respectivos livros de registro O instituidor poderá determinar que a istração dos valores mobiliários seja confiada a instituição financeira, bem como disciplinar a forma de pagamento da respectiva renda aos beneficiários, caso em que a responsabilidade dos es obedecerá às regras do contrato de depósito, tudo devidamente registrado de seu título no registro de imóveis.
Se não bastasse as disposições expressas em lei e todo o raciocínio até aqui desenvolvido, nossos tribunais superiores já decidiram que o fato do bem ou patrimônio estar contido ou fazer parte da constituição de uma pessoa jurídica, não é óbice para o reconhecimento deste bem ou patrimônio como bem de família.
Nesse sentido, decisão do STJ contemplou a tese que a pessoa jurídica pode ter em seu patrimônio o bem de família, nesse sentido Recurso Especial 1.514.567/SP, relatado pela ministra Maria Isabel Gallotti, assim ementado:
"CIVIL. PENHORA DAS QUOTAS DE SOCIEDADE LIMITADA. EMPRESA FAMILIAR. IMÓVEL PERTENCENTE À PESSOA JURÍDICA ONDE SE ALEGA RESIDIREM OS ÚNICOS SÓCIOS. PRINCÍPIOS DA AUTONOMIA PATRIMONIAL E DA INTEGRIDADE DO CAPITAL SOCIAL. ARTIGO 789 DO C. ARTIGOS 49-A, 1.024, 1055 E 1059 DO CÓDIGO CIVIL. CONFUSÃO PATRIMONIAL. DESCONSIDERAÇÃO POSITIVA DA PERSONALIDADE JURÍDICA PARA PROTEÇÃO DE BEM DE FAMÍLIA. LEI 8.009/90.A autonomia patrimonial da sociedade, princípio basilar do direito societário, configura via de mão dupla, de modo a proteger, nos termos da legislação de regência, o patrimônio dos sócios e da própria pessoa jurídica (e seus eventuais credores)."
O ministro Luiz Edson Fachin em artigo nos traz também lições valiosas:
"A impenhorabilidade da Lei nº 8.009/90, ainda que tenha como destinatários as pessoas físicas, merece ser aplicada a certas pessoas jurídicas, às firmas individuais, às pequenas empresas com conotação familiar, por exemplo, por haver identidade de patrimônios". (FACHIN, Luiz Edson. "Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo", Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 154).
Em razão de todo o exposto, e´plenamente possível que um fundo de investimentos faça parte de um bem de família, por óbvio excluídos os abusos e ilegalidades.
Por fim, fica consignado que não obstante a boa fé das relações jurídicas se presumirem, o advogado que orientar o cliente no sentido de instituir um bem de família voluntário, composto também com fundos de investimentos; para evitar alegações de fraude ou qualquer tipo de ilegalidades, deve orientar seu cliente a se precaver com certidões, documentos fiscais, laudos e avaliações, além de registros contábeis impecáveis, tudo que possa garantir a lisura da questão, para evitar eventuais questionamentos de eventuais credores ou terceiros interessados.
Referências pesquisadas:
http://www4.planalto.gov.br/legislacao/. Consulta realizada em 08/09/2023.
https://www.stj.jus.br. Consulta realizada em 08/09/2023.
ALMEIDA, Renata Barbosa de, RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson Titulo: Direito Civil Famílias – Belo Horizonte – Editora Expert – 2023.
FACHIN, Luiz Edson. "Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo", Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 154).
CARVALHO, Dimas Messias de, VALADARES, Maria Goreth Macedo, COELHO Thais Câmara Maia Fernandes. Manual de Direito das Famílias, São Paulo, Dialética, 2022.
TEIXEIRA, Daniele Chaves. Arquitetura do Planejamento Sucessório: Tomo I. 2ed., rev., ampl., atual. Belo Horizonte: Fórum, 2020ª.
[1] Lei 1030 2001 Altera e acrescenta dispositivos na Lei no 6.404, de 15 de dezembro de 1976, que dispõe sobre as Sociedades por Ações, e na Lei no 6.385, de 7 de dezembro de 1976, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários.
[2] O bem de família teve sua real instituição com a promulgação da Lei 8009/90 em um período marcado por grandes mudanças econômicas e sociais no Brasil. O objetivo da Lei foi proteger não o devedor e livrá-lo da execução forçada pelo credor, mas, sobretudo, proteger a entidade familiar do abandono e da indignidade.
[3] ALMEIDA, Renata Barbosa de, RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson Titulo: Direito Civil Famílias – Belo Horizonte – Editora Expert – 2023sWalsir citação 668
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