O fim dos juros sobre capital próprio?
20 de setembro de 2023, 20h36
Em 31 de agosto de 2023, o governo federal encaminhou ao Congresso um PL (projeto de lei) [1] que prevê a revogação da dedutibilidade dos juros sobre o capital próprio (J) na apuração do lucro real e da base de cálculo da contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL), a partir de 1º de janeiro de 2024.
Os J visam a remunerar o capital integralizado pelos sócios, na medida em que, assim como ocorre no endividamento com terceiros, os valores investidos atraem dois fenômenos que os juros buscam neutralizar: a inflação e o custo de oportunidade. O cálculo do valor é realizado a partir da aplicação da Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) sobre algumas contas do patrimônio líquido da sociedade [2] (capital social, reservas de capital e de lucro, ações em tesouraria e prejuízos acumulados), sendo pressuposto para o pagamento a existência de lucro.
Desde a entrada em vigor da Lei nº 9.249, em 1995, o pagamento dos J pode ser enquadrado como despesa e, portanto, deduzido na apuração do lucro real, com o objetivo de "(…) equiparar a tributação dos diversos tipos de rendimentos do capital (…)" e "(…) provocar um incremente das aplicações produtivas nas empresas brasileiras (…)" [3].
Contudo, o projeto encaminhado ao Congresso prevê a vedação dessa dedução. Na Exposição de Motivos [4] do PL, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, justificou que "(a) dedutibilidade tributária do pagamento de Juros sobre o Capital Próprio (J) teve como principal justificativa permitir que os sócios das empresas pudessem ser compensados pela perda da atualização monetária de seus direitos societários". Além disso, informou que o mecanismo ainda visava ao incentivo ao investimento em capital em contrapartida ao investimento no mercado financeiro.
Contudo, de acordo com o exposto pelo ministro, a adoção do mecanismo dos J não atingiu o objetivo que pretendia. Não se comprovou a redução do endividamento das sociedades empresárias nem o aumento dos investimentos nestas. Pelo contrário: as análises mencionadas pelo ministro indicam um aumento da razão dívida/capital. Inclusive, a Exposição de Motivos consignou que o mecanismo pode ter estimulado as sociedades empresárias a contratarem empréstimos externos para remuneração dos acionistas.
Ainda foi relatado que o formato é pouco utilizado pelas sociedades brasileiras e, quando o é, tem o objetivo principal de redução da carga fiscal. Ao tempo em que se deduz a despesa do cálculo pela pessoa jurídica, a pessoa física destinatária dos valores os tributará de forma reduzida (Imposto sobre a Renda Retido na Fonte — IRRF) à alíquota de 15%).
No entanto, apesar da menção expressa a supostas "análises", "evidências" e "apontamentos", as razões expostas não fazem referência a qualquer artigo ou trabalho científico que possa embasar as suas conclusões, restando aos istrados, uma vez mais, a conferência dos fundamentos utilizados.
Em artigo recentemente publicado [5], um grupo de pesquisadores vinculados à FGV e à USP analisou dados de empresas listadas na B3 entre 1991 e 2020 com um objetivo: verificar se a possibilidade de dedução da J da apuração do lucro real afetou o nível de endividamento das citadas empresas. As conclusões foram as seguintes: 1) os J foram utilizados significativamente a partir de 2003, permanecendo em nível substancial até o final da amostragem (2020); 2) empresas que pagam mais J têm menores níveis de alavancagem e de dívida bruta por ativo; e 3) os setores econômicos que apresentaram melhores resultados na redução de alavancagem foram justamente aqueles que mais utilizaram os J.
Aparentam-se levianas, nesse contexto, comparações absolutas de nível de endividamento em um país onde é constante a convivência com a alta inflação e, consequentemente, com altas taxas de juros para financiamento junto a terceiros. Obviamente, ainda não há um mercado de ações que possa suprir integralmente as necessidades das empresas de capital aberto brasileiras, porém, parece vantajoso se parte desse endividamento puder ser obtido com capital próprio e com menor alavancagem.
De igual forma, também se mostra incorreto o argumento utilizado de que os J consistiriam em benefício fiscal. Conforme consta na própria exposição de motivos da Lei nº 9.249/1995, trata-se de medida de neutralidade e não de benefício, fundada na ideia de equalizar o tratamento tributário do endividamento próprio e daquele obtido junto a terceiros. É, portanto, instrumento necessário para permitir que as empresas façam a escolha mais adequada no que se refere ao seu próprio financiamento.
Sendo assim, este breve ensaio busca lançar à reflexão as justificativas utilizadas pelo atual governo para pretender extinguir a dedução dos juros sobre o capital próprio da apuração do lucro real. Inobstante o tema ser controverso, acredita-se que a Exposição de Motivos carece de dados embasados empiricamente, o que certamente deve ser observado no processo legislativo de análise do Projeto de Lei nº 4.258/2023.
[1] Projeto de Lei nº 4.258/2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Projetos/PL/2023/msg430-agosto2023.htm.
[2] Artigo 9º da Lei 9.249/1995. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9249.htm.
[3] Exposição de Motivos da Lei nº 9.249/1995. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1995/lei-9249-26-dezembro-1995-349062-exposicaodemotivos-149781-pl.html.
[4] Exposição de Motivos do Projeto de Lei nº 4.258/2023. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/ExpMotiv/2023/110-2023-MF.htm.
[5] AMARAL JUNIOR, José Bento Carlos et al. Análise empírica dos juros sobre capital próprio na estrutura de capital das empresas listadas na bolsa de valores. Research Gate. 18 jun. 2023. Disponível em: file:///C:/s/Manut/s/Artigo-J.pdf.
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