Bicentenário da Constituição de 1824, a primeira do Brasil
10 de abril de 2024, 19h36
Reinhold Zippelius inicia a sua famosa obra, Teoria Geral do Estado (Allgemeine Staatslehre), considerando o Estado através de duas perspectivas. Como expressão da realidade e, por outro lado, enquanto uma idealização.
Formula, para tanto, duas indagações: “Como é constituído realmente o Estado?” E, logo na sequência, acrescenta outra provocação, que acaba por assumir uma dimensão complementar: “Como deve o Estado ser constituído?” [1]
Ora, a primeira Carta Constitucional brasileira, datada 25 de março de 1824, cujo bicentenário de outorga continua a repercutir, expressou, precisamente, ambas as considerações. E, por força de seu pioneirismo, com grande ênfase, podemos acrescentar.
De um lado, certo idealismo, delineado na força das teorias constitucionais modernas, ainda jovens e promissoras, alicerçadas no contratualismo e no emancipacionismo; de outro, as limitações próprias do contexto social – os fatores reais de poder, no dizer de Ferdinand Lassale — em que a Constituição (e, portanto, toda a arquitetura institucional) estariam inevitavelmente inseridos.
Conciliar aspirações e interesses contrapostos, sintetizando-os em um Estado constitucional, é um desafio que se renova em cada Assembleia Constituinte, de modo inevitável. Mas, naquela conjuntura da primeira metade do século 19, foi uma empreitada que beirou o insucesso.
O fato de o projeto de Texto Constitucional anterior, datado de 1823, ter sido rejeitado pelo imperador, com a interrupção dos trabalhos legislativos respectivos, acaba por ser bastante ilustrativo.
Aspectos centrais
Três pontos meritórios, pelo menos, podem ser ressaltados na primeira Carta Constitucional brasileira.
Em primeiro lugar, a presença de um conjunto de direitos fundamentais [2]. De fato, tratou-se de um rol conciso, refletindo a ideologia liberal, então dominante. Temas e aspirações transcendentes ao âmbito individual e aos direitos de liberdade vieram a ser reconhecidos somente após o advento do constitucionalismo social.
Em segundo lugar, e de forma correlata, a construção de um Estado de Direito singular, com a separação de Poderes [3], diferenciada pela presença do Poder Moderador, de um lado, e a existência de um processo de preenchimento de postos eletivos corrompido, quer pela ausência de garantias eleitorais, quer pela concentração de poder na elite agrária, acentuadamente conservadora, de outro.

Finalmente, há que se registrar a preocupação do Constituinte em atribuir rigidez apenas às matérias efetivamente constitucionais, na visão da época, o que permitiu promover significativos aperfeiçoamentos institucionais, sem profusão de reformas de natureza formal, tendo sido a Carta de 1824 alterada, em seu corpo rígido, apenas uma única vez.
Em matéria de instituições centrais da época, não apenas o Poder Moderador — extraído do Cours de Politique Constitutionnelle, de Benjamin Constant [4], e unido engenhosamente às concepções de Locke e de Montesquieu — deve ser enfatizado, como, por vezes, ainda ocorre.
O âmbito moderador foi, de fato, “chave de toda a organização política”, consoante preconizou a Constituição [5] e sua atribuição privativa ao imperador não impediu que, ele, paradoxalmente, detivesse a chefia do Poder Executivo [6].
Cabe ressaltar, com grande relevância, a atuação do Conselho de Estado: foi crucial para a manutenção política e istrativa do Império.
O Texto Constitucional evidenciou-lhe a proeminência, ao prever que os conselheiros fossem “ouvidos em todos os negócios graves, e medidas gerais da pública istração; principalmente sobre a declaração da guerra, ajustes de paz, negociações com as Nações Estrangeiras, assim como em todas as ocasiões, em que o Imperador se propunha exercer qualquer das atribuições próprias do Poder Moderador” [7].
Na realidade, não se pode depreender a atuação da Coroa sem o e estratégico do conselho.
Longevidade
Chama atenção a longevidade da Constituição de 1824. Foram mais de 65 anos de vigência. Por certo, sua redação concisa, avessa a maiores detalhamentos — sintética, na terminologia constitucional de hoje —, pode ter facilitado a sua interpretação e aplicação, distanciando-se da necessidade de enfrentar problemas como lacunas ou mesmo ambiguidades.
Não menos relevante, ainda, era certo consenso em torno dos valores regentes do Estado e da sociedade, dispensando, por reiterados momentos, debates de maior intensidade.

O fato de que a Presidência do Conselho de Ministros tenha sido instituída pelo Decreto nº 523, de 20 de julho de 1847, atesta dois aspectos. Em primeiro lugar, confirma o antes referido, uma vez que a transformação ocorreu não por modificação da literalidade do Texto Constitucional, mas, sim, como fruto de uma inovação sutil na legislação ordinária.
Em segundo plano, demonstra a concretude e o caráter experimental das instituições do período, dado que a inovação ocorreu mais de 23 anos depois da outorga da Carta Imperial.
Oportunidade de reflexão
Por fim, o bicentenário do constitucionalismo brasileiro representa não apenas um momento de inventariar o ado normativo, mas, muito mais, uma oportunidade de refletir sobre o presente e o futuro imediato.
Em 200 anos, o país adquiriu, sim, uma valiosa experiência em termos de vivência institucional que não pode ser desconsiderada. Alternaram-se modelagens de deliberação e decisão, dosagens de poder entre os entes federados, e, com maior ênfase nos tempos recentes, mecanismos de controle superiormente complexos.
Esse cabedal do ado imperial, não meramente retórico, pois teórico e confirmado na experiência, precisa estar presente quando ideias aparentemente novas ecoam, na realidade, projetos ou proposições que, em geral, não são totalmente desconhecidos.
Como mencionado, quanto à redação, foi uma Constituição aparentemente despretensiosa. Não traçou planos políticos desafiadores com o auxílio das ferramentas jurídicas. Não delimitou rigorosamente a operacionalização do Estado ou traçou metas para a sociedade.
O seu valor foi demonstrado pouco a pouco, entre a experiência política e jurídica e as circunstâncias concretas.
[1] ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Tradução de António Cabral de Moncada. 2. Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1.
[2] Conforme artigo 179 da Constituição de 25 de março de 1824.
[3] Conforme o célebre artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.
[4] CONSTANT, Benjamin. Cours de Politique Constitutionnelle. Paris: Slatkine, 1982, p. 7-17.
[5] Conforme artigo 98 da Constituição de 25 de março de 1824.
[6] Conforme artigo 102 da Constituição de 25 de março de 1824.
[7] Conforme artigo 142 da Constituição de 25 de março de 1824.
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