Opinião

Flutuantes de Manaus: há extrapolação dos limites no cumprimento de sentença?

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15 de abril de 2024, 17h26

Há 23 anos tramita na Vara Especializada do Meio Ambiente, da comarca de Manaus, a Ação Civil Pública nº 0056323-55.2010.8.04.0012, envolvendo, no presente momento, a retirada e desmonte dos flutuantes situados na orla da capital do Amazonas.

A sentença proferida em 26 de novembro de 2004 tinha o objetivo de provocar a istração pública, diante de sua omissão, a adotar medidas para regulamentar o licenciamento ambiental dos flutuantes e fiscalizações, visando a impedir o aumento de flutuantes clandestinos à margem esquerda do rio Negro, em desconformidade com a Política Nacional dos Recursos Hídricos (PNRH) — Lei nº 9.433/1997.

Contudo, o cumprimento de sentença tem causado temor aos proprietários dos flutuantes em Manaus, em virtude do justo receio em ter, a qualquer momento, seus estabelecimentos retirados e desmontados por ordem do Poder Judiciário, independentemente de licença junto ao órgão ambiental competente (Ipaam).

Como exemplo, tem-se a recente decisão proferida pelo Juízo competente, que determinou novas medidas ao município de Manaus para a retirada forçada dos mais de 900 flutuantes e respectivo desmonte, sob pena de multa milionária, em caso de descumprimento. Veja-se trecho (fls. 3485-3486 do processo):

Diante disto, como medidas necessárias à satisfação do teor do capítulo da sentença, OFICIO ao Comando Geral da Polícia Militar a fim de que seja disponibilizado força policial necessária para a retirada e o desmonte dos flutuantes dos tipos 1 a 3 com já classificados nos autos; AUTORIZO o Município a dar a melhor destinação aos bens e resíduos resultantes do desmonte dos flutuantes, MANTENHO a multa com o curso dos dias-multa, mas OBSTO, por ora, a fase executiva desta multa, desde que o MUNICÍPIO DE MANAUS atenda ao seguinte:

I) COMUNIQUE mediante imprensa local e com dois outdoor ́s (próximos a Marina do Davi e a Praia Dourada) que haverá o desmonte forçado de os flutuantes dentro da ordem de classificação do tipo 1 a 3, dada pela decisão de fls. 2199/2205, com a autorização da destinação do bens e materiais para destruição, descarte ambientalmente adequado ou doação, a critério do Município, juntamente a seu órgão ambiental competente.

II) VERIFIQUE os flutuantes que estiverem tombados no rio, desabitados ou abandonados para que sejam os primeiros a serem desmontados dentro da classificação do tipo 1 a3, como já apontado nos autos.

III) Após a comunicação determinada, AGUARDE-SE 10 dias úteis para início da operação de retirada e desmonte, dentro ordem da classificação já apontada nos autos

IV) Até 31 de março de 2024, INFORME e COMPROVE a este Juízo o início do plano de ação de retirada e de desmonte com a destruição, a doação ou o descarte devido, sob pena de início da fase de cumprimento de sentença das multa de R$ 15.000.000,00 nos moldes requeridos pelo Ministério Público, quando se analisará a majoração da multa inclusive.

Entretanto, os efeitos da sentença deveriam ter sido estendidos apenas à Bacia do Tarumã-Açu e demais estabelecimentos que não pretendessem se licenciar junto ao Ipaam, no caso, os flutuantes irregulares ou até mesmo aqueles abandonados.

Isso porque o efeito erga omnes das ações civis públicas se refere à competência territorial, como também abrange todas as pessoas enquadráveis na situação, conforme artigo 16, da Lei nº 7.347/1985.

Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Quanto ao tema, o Superior Tribunal de Justiça assenta “porquanto os efeitos e a eficácia da sentença não estão circunscritos a lindes geográficos, mas aos limites objetivos e subjetivos do que foi decidido, levando-se em conta, para tanto, sempre a extensão do dano e a qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo (arts. 468 , 472 e 474 do C e 93 e 103 do CDC )” ( REsp 1.243.887/PR , Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado sob a sistemática prevista no art. 543-C do C, em 19/10/2011, DJe 12/12/2011)

Contudo, a Vara Especializada busca, a qualquer custo, retirar todos os flutuantes da orla de Manaus sob o argumento frágil de possível degradação irreversível do meio ambiente, sem ofertar aos proprietários a possibilidade de defesa, no intuito de infirmar a conclusão do julgador.

Neste ponto, menciona-se o laudo técnico elaborado pelo órgão ambiental — Ipaam,  que atesta a baixa possibilidade de riscos irreversíveis à bacia hidrográfica do Tarumã-Açu, conforme trecho do relatório constante às folhas 2199/2205:

Impacto aceitável

A partir dos dados gerados, nestes quase três anos de monitoramento da bacia do Tarumã-açu, nota-se que este corpo hídrico tem absorvido o impacto de ações humanas de maneira ainda aceitável, entretanto existem muitos pontos monitorados que necessitam de ações imediatas para o controle da qualidade de águas nesta bacia.

Embora o volume de água desta bacia seja grande, e ainda possuir o Rio Negro com meio de diluição dos poluentes originários de ações antropogênicas, medidas de proteção deste corpo hídrico devem ser tomadas imediatamente, sob pena das gerações futuras não terem mais este manancial em condições adequadas de uso.

Por fim, a Defensoria Pública do Estado do Amazonas, na condição de custos vulnerabilis, tem adotado todas as medidas necessárias na tentativa de suspender a ordem de retirada e desmonte dos flutuantes, em especial aqueles utilizados como moradia por ribeirinhos e/ou indígenas.

Inclusive, no dia 20 de março de 2024, teve seu pedido de tutela de urgência parcialmente acolhido pelo juiz substituto da “Vema”, conforme Portaria nº 195/2024 (TJ-AM), às folhas 3551-3555. Assim, a ordem de remoção e desmonte outrora determinada foi suspensa para que os autos fossem remetidos à Comissão de Conflitos Fundiários do Tribunal de Justiça do Amazonas à solução pacífica do problema.

Há, portanto, diversos equívocos presentes no cumprimento de sentença da ação civil pública dos flutuantes, que demonstram a provável extrapolação dos limites objetivos da coisa julgada (sentença), por estender seus efeitos aos flutuantes devidamente licenciados pelo órgão ambiental ou que pretendam se licenciar, sem fundamentação plausível, em violação ao inciso XXXVI, do artigo 5º, da Constituição. Isso, sem dúvidas, prejudica terceiros, sobretudo pela (im)possibilidade de exercício de contraditório e ampla defesa acerca dos seus direitos.

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