Opinião

Juizado especial: prova colhida em produção antecipada no juízo comum

Autores

  • é doutoranda e mestra em Direito Processual Civil (UFMG) LL.M em Direito Empresarial (FGV) membro dos coletivos IBDP IDPro ABEP e Processualistas membro da Comissão de Processo Civil da OAB-MG professora e advogada sócia do escritório Medeiros Guimarães e Maffessoni.

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  • é doutorando em Medicina (UFMG) mestre em Direito (UFMG) consultor da Comissão Especial de Direito Médico do CFOAB e advogado.

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2 de agosto de 2024, 20h24

A Lei nº 9.099/95 procurou estruturar um procedimento simplificado e ágil, com desfecho mais rápido do que aquele entregue pelo rito ordinário previsto no então vigente Código de Processo Civil de 1973.

TJ-MG

Após três décadas, observa-se uma prestação jurisdicional mais célere nos Juizados Especiais [1]. Contudo, fatos como: a demora na designação da audiência, a fragmentação da audiência prevista entre os artigos 21 e 29 entre conciliação e instrução em contraposição ao desejo legislativo de audiência una, o manejo do recurso previsto na norma do artigo 41, a necessidade de julgamento colegiado do recurso inominado, além das dificuldades inerentes à fase executiva, certamente impedem que o desígnio legislativo seja alcançado a contento.

Assim como a rapidez não equivale àquela que foi prometida, as diversas limitações previstas nos artigos 3º e 8º quanto às matérias, valor da causa e partes reduzem o espectro de utilização desta ferramenta.

Para além disso, a jurisprudência dos juizados, simbolicamente representada pelos enunciados do Fórum Nacional de Juizados Especiais (Fonaje), com frequência manifesta no sentido de ampliação dessas restrições [2]. A limitação, no entanto, que possivelmente causa maior impacto é aquela que proíbe a produção de prova pericial no Juizado Especial sob o argumento de levar complexidade à causa e, assim, afrontar o artigo 3º da Lei 9.099. São diversas as decisões nesse sentido, de diferentes Estados:

Consoante se extrai da tese firmada no IRDR nº 1.0000.17.016595-5/001, “a necessidade de produção de prova pericial formal, imbuída de maior complexidade, influi na definição da competência dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, porquanto incompatível com os princípios da simplicidade, oralidade, economia processual e celeridade” — considerando que a questão posta nos autos demanda a realização de prova pericial complexa, mister o reconhecimento da incompetência do Juizado Especial Cível para o processamento e julgamento do feito originário. (TJ-MG – CC: 09055418320228130000, relator: des.(a) Maria Lúcia Cabral Caruso, data de julgamento: 20/04/2023, 12ª Câmara Cível, data de publicação: 26/04/2023)

“[…] verifica-se que a prova documental não é suficiente para comprovar a matéria controvertida, motivo pelo qual indispensável a realização de prova complexa (perícia), a qual, não coaduna com os princípios do Juizado Especial” (TJ-PR – RI: 00012445320208160159 São Miguel do Iguaçu 0001244-53.2020.8.16.0159 (Acórdão), relator: Júlia Barreto Campelo, data de julgamento: 20/09/2021, 5ª Turma Recursal dos Juizados Especiais, Data de Publicação: 20/09/2021)

Prova complexa vedada pela Lei nº 9.099/95 e pelo Enunciado nº 24 do Conselho Supervisor dos Juizados Especiais de São Paulo (“A perícia é incompatível com o procedimento da Lei 9.099/95 e afasta a competência dos juizados especiais cíveis”) (TJ-SP – RI: 00011159820188260366 SP 0001115-98.2018.8.26.0366, relator: Rafael Vieira Patara, data de julgamento: 28/09/2020, 1ª Turma Civel e Criminal, data de publicação: 28/9/2020)

“Vedando a Lei 9.099/95 a realização de prova pericial de alguma complexidade, impossível que a ação pertinente tenha deslinde em sede de Juizado Especial, merecendo extinção aquela que venha diante dele se ver aforada.” (TJ-SC – RI: 03084312420168240008 Blumenau 0308431-24.2016.8.24.0008, relator: Marco Aurélio Ghisi Machado, data de julgamento: 04/08/2020, 2ª Turma Recursal)

O posicionamento acima descrito certamente limita o exercício do o à justiça, na medida em que há diversas causas, de natureza cotidiana e simples, como pequenos acidentes de trânsito, lesões em procedimentos estéticos, discussões contábeis e atuariais em contratos de consumo, apuração de benfeitorias imobiliárias etc., que ficam impossibilitadas de serem tratadas nos Juizados Especiais pela necessidade de produção de prova pericial.

Spacca

Nesta perspectiva, ciente da dificuldade de se modificar este entendimento, consolidado praticamente desde o nascedouro dos Juizados Especiais, a casuística vem tentando apontar caminhos, como a expansão da utilização do artigo 35 da Lei nº 9.099, que traz a inquirição de técnicos em audiência, e o traslado da prova pericial produzida no rito da produção antecipada (artigo 381 do C), no juízo comum, para o âmbito dos Juizados Especiais.

É sobre este tema que trataremos a seguir.

Produção antecipada de prova

A produção antecipada de prova é uma ferramenta prevista entre os artigos 381 e 383 do C, constituindo-se como uma “ação que busca o reconhecimento do direito autônomo à prova, direito este que se realiza com a coleta da prova em típico procedimento de jurisdição voluntária” [3].

São três as hipóteses de cabimento, que são independentes: (a) receio de que o decurso do tempo torne a produção da prova difícil ou impossível; (b) a produção da prova possa facilitar a autocomposição; e (c) o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar a propositura da demanda principal.

É cabível a antecipação de qualquer prova, seja ela testemunhal, documental [4], inspeção judicial, depoimento pessoal, pericial e atípica. No entanto, a casuística nos demonstra que sua utilização mais farta induvidosamente está na antecipação da prova pericial, dado que, geralmente, é produzida apenas em fase avançada do processo de conhecimento. Além disso, é a prova com a maior habilidade de viabilizar a autocomposição e justificar ou impedir a propositura de demanda judicial, objetivos expostos pela própria legislação.

Um aspecto fundamental da ferramenta da antecipação está na ausência de prevenção do juízo para a ação subsequente. É isto que nos diz o §3º do artigo 381 ao afirmar que “[a] produção antecipada da prova não previne a competência do juízo para a ação que venha a ser proposta”.

Ou seja, o juízo de eventual e futura ação principal não necessariamente será o mesmo que processou a ação de produção antecipada de prova. Naturalmente, pois a produção antecipada de provas concretiza o direito autônomo à produção da prova, não se vinculando a processo futuro. Além disso, não há decisão judicial sobre a ocorrência ou a inocorrência do fato, nem sobre as respectivas consequências jurídicas (artigo 382, §2º, C).

Nesse sentido, leva-se a crer que é possível produzir a prova no âmbito da justiça comum e, posteriormente, utilizá-la em juízo diverso, inclusive o dos Juizados Especiais.

Utilização da prova pericial produzida antecipadamente no juízo comum em ação principal proposta nos juizados especiais

Sendo certo que a prova pode ser produzida antecipadamente e que não há prevenção do juízo, questiona-se se eventual prova pericial produzida por meio do rito do artigo 381 e seguintes do C pode ser utilizada em subsequente ação distribuída no rito dos Juizados Especiais, sem esbarrar na incompetência dos juizados em razão da complexidade da causa.

Ao se investigar a gênese do entendimento jurisprudencial que veda a produção de prova pericial nos Juizados Especiais, identifica-se três motivos principais:

a) Simplificação do processo: Os Juizados Especiais foram desenvolvidos para oferecer uma alternativa mais célere e simplificada para a resolução de litígios de menor complexidade e valor. Provas periciais supostamente poderiam tornar o processo mais demorado e burocrático, o que vai de encontro a esse princípio [5];

b) Custo e complexidade: a produção de uma perícia pode envolver custos consideráveis, no que toca à contratação do perito e dos assistentes técnicos. Adicionalmente, há perícias que trazem complexidade técnica, o que pode dificultar a compreensão por parte das partes e do próprio juiz, indo de encontro à proposta de simplicidade dos Juizados Especiais e, ainda à gratuidade da primeira instância;

c) Princípios da oralidade, simplicidade e informalidade: ainda que a prática aponte para a progressiva forma escrita adotada nos Juizados Especiais, é certo que no contexto normativo os Juizados têm como princípios norteadores a oralidade, simplicidade, informalidade e economia processual. A realização de perícia teria conflitaria com esses princípios, tornando o processo mais formal e complexo do que o almejado.

Percebe-se, portanto, que todos os elementos que sustentam a não realização de prova pericial nos Juizados Especiais se concentram na formalidade e onerosidade de sua produção, e não no direito material em debate que, por vezes, é de baixa complexidade.

Aliás, o enunciado nº 54 do Fonaje reforça esse posicionamento de que a prova pericial não seria itida por conta da complexidade da sua produção:

Enunciado 54 – A menor complexidade da causa para a fixação da competência é aferida pelo objeto da prova e não em face do direito material.

Isto é, uma vez produzida a prova, a causa deixaria de ser complexa.

Dessa forma, entendemos como absolutamente viável a utilização, em ação principal e subsequente no âmbito dos Juizados Especiais, de prova pericial produzida em procedimento e antecipação de prova pelo rito do artigo 381 e seguintes do C.

Ou seja, é possível produzir a prova pericial no juízo comum e, caso a ação cumpra os demais requisitos da Lei 9.099/95, propor a ação com base na referida prova.

Nesse sentido, entre 14 e 15 de março de 2024, foi aprovado o enunciado nº 750 do Fórum Permanente de Processualistas Civis:

  1. (Art. 381) É issível nos Juizados Especiais a utilização de prova colhida em procedimento de produção antecipada no juízo comum. (Grupo: Direito Probatório)

Conclusão

A vedação jurisprudencial do uso de provas periciais no âmbito dos Juizados Especiais usualmente baseia-se em argumentos no sentido de que a produção de tais provas acabaria por trazer complexidade ao processo, além de afrontar os princípios da oralidade, simplicidade e informalidade trazidos pela Lei nº 9.099/95. Tal entendimento acaba por limitar o o à justiça em casos que envolvem questões técnicas, mas cujo cerne material é de baixa complexidade.

Assim, a possibilidade de produzir provas periciais antecipadamente no juízo comum e utilizá-las posteriormente nos Juizados Especiais surge como uma solução viável para contornar essas limitações, sem comprometer a essência do procedimento sumaríssimo.

A recente aprovação do Enunciado nº 750 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, que ite a utilização de prova colhida em procedimento de produção antecipada no juízo comum nos Juizados Especiais, reforça essa possibilidade e abre caminho para um sistema mais ível. A prática não só preserva os princípios de celeridade e simplicidade dos Juizados Especiais, mas também assegura que os litígios de menor complexidade material possam ser resolvidos com o e de provas técnicas necessárias para a averiguação dos fatos.

 


[1] A título de exemplo, o Relatório Justiça em Números de 2023, elaborado pelo CNJ, aponta que a média de tramitação de processos de conhecimento na Justiça Comum nas Varas Estaduais é de 2,9 anos, enquanto nos Juizados Especiais Estaduais  é de 1,3 anos. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Justiça em Números 2023. Conselho Nacional de Justiça. Brasília: CNJ, 2023. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/s/2023/09/justica-em-numeros-2023-010923.pdf. o em 23/06/2024, p. 211-212.

[2] Exemplificativamente, vemos enunciados que reduzem a competência ou a legitimidade de partes nos Juizados Especiais Cíveis:

ENUNCIADO 8 – As ações cíveis sujeitas aos procedimentos especiais não são issíveis nos Juizados Especiais.

ENUNCIADO 30 – É taxativo o elenco das causas previstas na o art. 3º da Lei 9.099/1995.

ENUNCIADO 54 – A menor complexidade da causa para a fixação da competência é aferida pelo objeto da prova e não em face do direito material.

ENUNCIADO 87 – A Lei 10.259/2001 não altera o limite da alçada previsto no artigo 3°, inciso I, da Lei 9099/1995

ENUNCIADO 89 – A incompetência territorial pode ser reconhecida de ofício no sistema de juizados especiais cíveis

ENUNCIADO 94 – É cabível, em Juizados Especiais Cíveis, a propositura de ação de revisão de contrato, inclusive quando o autor pretenda o parcelamento de dívida, observado o valor de alçada, exceto quando exigir perícia contábil

ENUNCIADO 133 – O valor de alçada de 60 salários mínimos previsto no artigo 2º da Lei 12.153/09, não se aplica aos Juizados Especiais Cíveis, cujo limite permanece em 40 salários mínimos

ENUNCIADO 135 (substitui o Enunciado 47) – O o da microempresa ou empresa de pequeno porte ao sistema dos juizados especiais depende da comprovação de sua qualificação tributária, por documento idôneo.

ENUNCIADO 163 – Os procedimentos de tutela de urgência requeridos em caráter antecedente, na forma prevista nos arts. 303 a 310 do C/2015, são incompatíveis com o Sistema dos Juizados Especiais.

[3] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. 19. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2024. p. 175.

[4] Ressalvado entendimento contrário no sentido de que, no caso da prova documental, deve ser observado, em regra, o procedimento da exibição de documentos (THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Vol. I – 57ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 908).

[5] “[..] permitir que se processe no âmbito dos Juizados Especiais uma demanda […] que exija, pelo objeto controvertido, a produção de uma prova pericial de maior requinte operacional, descaracteriza o microssistema arquitetado pelo constituinte, o qual foi concebido para propiciar uma solução mais ágil e desburocratizada de processos” (TJ-MG – IRDR – Cv: 10000170165955001 MG, relator: Wilson Benevides, data de julgamento: 22/08/2019, 1ª Seção Cível / 1ª Seção Cível, data de publicação: 03/09/2019).

Autores

  • é doutoranda e mestra em Direito Processual Civil (UFMG), LL.M em Direito Empresarial (FGV), membro dos coletivos IBDP, IDPro, ABEP e Processualistas, membro da Comissão de Processo Civil da OAB-MG, professora e advogada sócia do escritório Medeiros, Guimarães e Maffessoni.

  • é doutorando em Medicina (UFMG), mestre em Direito (UFMG), consultor da Comissão Especial de Direito Médico do CFOAB e advogado.

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